Jackson de Figueiredo
Escrevo ainda um pouco espantado da verificação feita há dias, pelo meu coração, ante o cadáver de Moisés Marcondes, de que nós, homens, mesmo os melhores, somos bem mais adaptáveis à dor, ao sofrimento, do que geralmente pensamos.
E se assim não fosse, em que pese às nossas vaidades românticas, como explicar que resistamos a golpes tão profundos e, às vezes, amiudados, máxime quando alguns deles logo se nos impõem como irremediáveis?
É dos vinte e cinco anos em diante que o mundo como que principia a desfazer-se em derredor de nós, porque até essa idade, a nossa força é mais de simpatia e de atração, de configuração, digamos, de uma paisagem espiritual, que pode vir a compor-se de mais este ou aquele vulto de alma, mas todos, de entrada, sujeitos a um ambiente já formado, e que não poderão alterar.
Mas é dali para frente, que se inicia e vai crescendo, cada vez mais, o fundo de saudade, ou melhor, o plano de melancolia, dominado pelos sepulcros, pelas estátuas mutiladas, pelas ruínas — pelas ruínas, sim, essas “obras de arte”, as mais singulares, como notava Zimmel, testemunhos, a um tempo, do derrotado esforço humano e da soberana indiferença da natureza, eterna produtora de formas. Testemunhos serão também de coisa mais profunda: de que a natureza é apenas “figura” do invisível; sua indiferença “figura” da eternidade a que tende o que nos parece passageiro; e figura ainda da redenção esse verde da hera, esse sorrir das flores sobre a velhice, a ruinaria do que o homem edificou.
Mas não consola o raciocínio se o sofrimento ainda tem as garras da surpresa e da atualidade.
Quando Moisés Marcondes publicou a obra-prima de carinho, de sentimento cristão, de inteligência da brasilidade, que é o seu “Pai e Patrono”, eu podia escrever sem receio de exagerar, pelo muito que já então lhe devia: “E quem conhece Moisés Marcondes pode dizer que conhece, no Brasil, o que ainda nos resta de delicadeza moral, de ternura educada, de sensibilidade real e profunda, tão isenta de mera “sensiblerie” como de estudada frieza”.
Desde que o perdi tem sido este o meu cuidado: imitá-lo ainda no momento em que a tristeza parece inimiga da moderação.
Porque a minha confissão poderá ter aqui, pelo menos, o valor de satisfazer a vaidade psicológica dos meus mais odientos injuriadores: os homens a quem mais tenho admirado e amado neste mundo tem sido sempre os que me humilham pela felicidade do temperamento, os que o tem tal como eu desejara ter, simples e moderado, perfeitamente católico, o que quer dizer, perfeitamente humano, levando, naturalmente, normalmente a toda paixão e a toda atividade à luz da razão ou à segurança da fé. Só sei viver com os outros, brutais e apaixonados, como eu, filhos, como eu, deste século XX, que Nietzsche profetizava o século clássico da guerra.
Mas desde que os encontro, — aos homens como Moisés Marcondes — eles passam a constituir para mim uma antevisão, senão da outra vida, ao menos da realização, em mim, desse ideal cristão, pelo qual, tenho combatido tanto e principalmente contra mim mesmo.
E o pensamento se me esvai triste e fugidio, como quem foge de si próprio.
Que homem foi esse, enfim, de quem ninguém quase falava nesta feira de vaidades, e que, assim, ao morrer, faz subir, no coração dos que o conheceram, esta onda de fundo, tão pesada de amargura mas coroada por tantas bênçãos da saudade mais pura?
Quem saberá dizer o que foi Moisés Marcondes?
Será possível encará-lo como um produto próprio do nosso meio? Que influência não terá tido sobre o seu caráter, sobre o seu espírito a sua longa permanência nos meios europeus?
Talvez seja impossível responder de modo absoluto a estas perguntas, mas o caso individual de Moisés Marcondes não interessará tanto ao crítico e ao historiador da nossa sociedade, como a realização social que, antes do mais, nele se verificava, como se aspira numa flor, vindo do mais íntimo da profunda vida de toda a sua contextura, o perfume mais casto.
E foi o conhecimento do seu tino social, talvez, o que mais impôs à minha consciência o dever de defender, no Brasil, esse “sentido europeu”, já invocado por Joaquim Nabuco, e que a meu ver, com todas as nuanças próprias ao nosso temperamento geográfico, será sempre, moralmente, a garantia da nossa extremo-ocidentalidade, ou melhor, da nossa perfeita integração ao espírito orgânico do Cristianismo.
Mas que imensa influência não terá tido só por si na formação de Moisés Marcondes, aquele nobilíssimo espírito de Jesuíno Marcondes — seu pai e patrono, em todos os sentidos — pai de quem ele não desejou mais do que ser o ideal realizado, e o foi, de fato, com todos os mais discretos e mais serenos brilhos da bondade?
Ora, Jesuíno Marcondes, tal como no-lo apresenta Moisés Marcondes na sua fúlgida tela de amor filial (e no-lo apresenta de modo a não deixar dúvida sobre a identidade entre o ser real que ele foi e a reconstituição que ali está, feita sobre documentos os mais íntimos) quem pode dizer o que nele foi mais interior, mais natureza sua própria: o homem da sua terra, do seu torrão natal, do Brasil tradicional, do Brasil brasileiro, ou o homem a quem a Europa ofereceu o repouso de todas as lutas e até o repouso final?
E o problema assim se revela com feições novas e estonteantes. Então esse Brasil, que formou Moisés Marcondes, de que este foi o tipo por excelência, já existia, de fato, vivo de vida própria e, ao mesmo tempo, com aquele “sentido europeu”, que é, a esta hora, o que nos vai faltando, de onde, o estarmos como que marchando para fora de nós mesmos.
Como ter de tudo isto uma visão segura e objetiva?
Mas, o sofrimento ante esta morte tem também, pela força mesma da sua intensidade, suas irrupções para os lados da serenidade e da resignação.
A obra do velho amigo não morrerá.
E ele, desde que a realizou, é o que sentíamos todos, ele próprio não vivia mais senão porque aprazia ao semeador ver florir a sementeira, à luz do sol. Mas, ele sabia que após as flores viriam os frutos, ele tinha uma imensa confiança no “exemplo” que nos apresentara, a nós, moços, e lhe era, por isto, indiferente quase, morrer mais cedo ou mais tarde.
Quando publicou em 1923 a primeira série dos seus “Documentos para a História do Paraná”, parecia sua intenção mais secreta preparar-nos para uma fase de justiça nova, de justiça verdadeira ao esforço dos nossos antepassados, de justiça não geométrica, de justiça humana aos fastos da grande raça histórica que devemos realizar integralmente nesta face do planeta. Daí a ressurreição daqueles documentos tão esclarecedores de nossa formação; mais ainda: o cuidado de amoroso com que, em cada uma das notas finais do volume, ele ajusta a uma humanidade compreensível e sã tantos dos tipos controvertidos do nosso período embrionário.
Era necessário, porém, completar esta documentação do que somos, ou melhor, do que poderíamos e deveríamos ser, se com mais força se acentuasse a tendência do nosso escol social a proteger, no seu curso, as mais límpidas correntes espirituais, que conosco surgiram para a vida nesta parte do mundo.
O filho amante compreendia que em ninguém melhor do que no pai extremoso lhe fora possível buscar o tipo dessa já afastada realização, de cujos processos nos vamos afastando leviana e criminosamente.
E foi por isto que mais do que a Nabuco o preocupou o homem que foi seu pai, não como político, mas como representante de uma alma social, coletiva, misto de natureza e de história.
“A obra de Nabuco — disse eu quando noticiei o aparecimento de “Pai e Patrono” — é um monumento de historiador, e não lhe faltou o testemunho favorável do próprio Jesuíno Marcondes. O historiador tem ali o culto de amor filial, mas que não esquece os mais rigorosos preceitos litúrgicos, como sob a ação de presença de um público de corte”. No livro de Moisés Marcondes, esse sacerdócio traz mais suave e mais encantadora humanidade.
O sacerdote é um filho para quem não há feição paterna, que não mereça o mesmo culto, mas culto de oração e de enlevo, todo carinho, de si para si, como esquecido de que fala a gente estranha, ou certo de que fala a gente que ama aquela memória como ele a ama também.
É por isto que não me temo de afirmar que o livro de Moisés Marcondes é único em nossa história literária, e nenhum como ele apresenta da família brasileira o tipo perfeito, o tipo cristão, aquele que é preciso não deixar morrer sob a onda do metequismo avassalante.
Quando ainda jovem, Jesuíno Marcondes assim falava à mulher escolhida para esposa:
“Há para mim na religião certa ternura, semelhante à do amor, assim como sinto no amor certa solenidade, que se parece com a religião”.
Como isto é expressivo de uma alma verdadeira, integrada na tradição brasileira, toda ternura e amplitude religiosa!
Moisés Marcondes, filho de um tal pai, conservou também esta virgindade de alma, que lhe dá o direito de ser um guia da mocidade da sua terra.
O que ele diz do amor filial, o que ele diz do amor paterno, não é um simples comentário à vida do grande homem de quem descende. É também um fruto da sua própria íntima experiência, da sua peregrinação entre os homens, sem outras armas, no entanto — entre todos os brutais desassossegos — que as poderosas e invencíveis armas da bondade da serenidade cristãs.
E foi assim, em plena posse desta bondade, desta serenidade, seguro de ter dado àquela santa memória tudo quanto de melhor juntara no coração, foi assim que Moisés Marcondes, ele próprio uma realização ainda daquele perfeito tipo do brasileiro cristão, caminhou até os braços da morte, mistério que não o atemorizava e antes lhe sugeria um mais largo perdão para os erros humanos.
Se em alguém já se realizou, sob os meus olhos, a bondade, a virtude social católica, em toda a sua excelência, foi em Moisés Marcondes: extrema facilidade nos movimentos de uma hierarquia, de uma disciplina racional de sentimentos os mais naturais e os mais simples.
Moisés Marcondes foi o cristão que mais me trouxe sempre à memória aquela palavra do humanismo devoto: “se nous savions bien nous servir de notre naturel, que nous deviendrions surnaturels!”
E, de fato, Moisés Marcondes era desses homens que tornam mais compreensível uma outra existência de eterna felicidade.
Gazeta de Notícias, 21 de março de 1928.