Jackson de Figueiredo
O ilustre constitucionalista, general Nepomuceno Costa, pouco antes desta celeuma que, em derredor de seu nome, vai por aí rolando, proibira aos seus comandados (cidadãos brasileiros) qualquer espécie de manifestação religiosa, dentro dos seus quartéis. Estes, os referidos quartéis, sob a direta fiscalização do ilustre general constitucionalista, passaram a ter vida normal dentro da Constituição, mas, numa zona moral para além, ou para aquém, ninguém sabe, da consciência brasileira.
O que me traz a público é o desejo de saber quantos foram os jornais do Rio, quantos foram os oposicionistas gaúchos ou cariocas da Câmara Federal que então protestaram contra os pruridos hermenêuticos do ilustre general…
Não, não me lembra que tivesse havido um só protesto em favor dos pequeninos, humilhados na sua fé, para não dize em favor da nação, mais uma vez posta à margem, pela irrisória prepotência do primeiro Coquelet de 5ª classe, com a força na mão.
Mas, por último, que houve? O famoso Cabanas (ex-tenente da polícia paulista que declara, em livro, ter mandado fuzilar diversos brasileiros) quis fazer uma conferência em Juiz de Fora, em proveito, já se vê, de sua rubra gloríola de façanhudo revolucionário. A coisa ia passar-se sem o menor relevo, porque o mineiro não é amante de espetaculosidades, e o famoso Cabanas já disse tantas coisas de si mesmo que, todos sentem, quase nada mais tem a dizer. Mas, o general Nepomuceno Costa não é guarda da Constituição que possa dormir, mesmo quando apenas agite a atmosfera da sua rigorosa vigilância o zumbido de um besouro… E foi o que se viu… O general bradou pela Constituição. Em S. Paulo, um grupo de políticos caiu na asneira de animar-lhe o zelo constitucional. Não precisou mais nada. O homem incendiou-se, e esquecido da função e do que constitui a essência mesma da disciplina militar, atirou-se no vácuo… Ei-lo, aos olhos do todo o mundo, como o homem que virou estrela: a dizer ou repetir coisas sem nexo. Ele há de fazer respeitar pela razão ou pela força a sua cara Constituição, ele é um assombro de coragem e de resolução. Não Minas, não há leis que não as que ele já estudou e sabe que são boas. Ordem sua não é desrespeitada. Pouco se lhe dá a carantonha da ditadura judiciária… Com ele não tem conversa, braço é braço, Constituição é Constituição.
Vamos falar com franqueza: diante de uma tão insólita manifestação de vaidade, poderia haver outra atitude que não a da indiferença? Esta forma aguda de constitucionalite que enferma, de vez em quando, alguns dos nossos militares, já é, sabidamente inofensiva. Todos nós sabemos que o regímen normal a ele resiste e que, quando muito, o governo só deve preocupar-se com as suas consequências se surge como manifestação coletiva, ou, visivelmente, como atividade de pau mandado, isto é, quando se sente que toda a sua enfunação vem de um mefistofélico sopro de exploração política, destas que se deixam ficar à sombra, nos bastidores da intriga nacional.
Mas não é evidente que, no caso Nepomuceno Costa, se trata de uma simples mania, e de todo em todo limitada à atividade de uma imaginação individual já bastante enferma?
Ninguém ligara a menor importância aos seus furores constitucionalistas contra a crença, isto é, contra a consciência dos seus subordinados da 4ª região militar… E então, porque, agora, esta celeuma toda? Será maior o presente atentado contra a chamada liberdade de pensamento? Parece que não, e há a notar ainda que o primeiro por lá ficou, se me não engano, com força de lei… e o segundo cai por si próprio, ao peso do ridículo.
Que significa, pois, a grita dos jornais vermelhos e dos deputados amigos de Cabanas, de Miguel Costa, de Izidoro & Comp.?
Eis o problema, e, já então de aspecto tão grave, que o governo o deve examinar com o maior sangue frio, para não ceder nem uma linha em tudo quanto julgue capaz de o diminuir ou enfraquecer aos olhos da nação. O governo deve notar, desde logo, que aos olhos dos que bradam contra o “atentado”, o que menos importa é a própria Constituição, Constituição que eles não só têm desrespeitado nestes últimos anos, mas publicamente aconselhado a que a desrespeitem todos os militares, todos aqueles que têm armas na mão. E a prova é que o próprio Cabanas e dezenas de outros revolucionários, disseram e redisseram, sob todas as formas, e não faz muito tempo, coisas iguais e outras muito piores que as agora murmuradas pelo general Nepomuceno, e não só as bradaram, como as executaram, com aplausos e franca animação da parte das mesmas vestais que, presentemente, tão zelosas se mostram pelo respeito à Constituição.
O sofisma, porque apareça bradado, com ar de clamor, de indignação e de assombro, nem por isto deixa de ser sofisma. O que o governo tem a zelar, pois, neste momento, não é propriamente sobrea incontinência de linguagem do seu engraçado cabo de guerra, mas sobre a intriga soez e miserável que, mais uma vez, reponta e quer fazer do Exército o seu campo de cultura mórbida.
Bom ou mau o general Nepomuceno Costa, o governo deve guardá-lo no seu museu de raridades republicanas, mas jamais sacrificá-lo aos mentirosos ódios que estão fantasiando, em derredor do seu nome um dilúvio de intenções subversivas e anticonstitucionais. Se o governo souber sorrir ante a nova encenação dos elementos revolucionários, verá como, dentro em pouco, aos brados mentirosos se substituirá o mesmo silêncio, que já substituiu outros brados não menos estentóricos e não menos mentirosos. Porque é claro que a feição propriamente política de tal intriga, esta não tem o menor valor. Minas e S. Paulo não estão governados por insensatos ou levianos. O que é preciso é não deixar penetrar de novo o seio do Exército, que se refaz, os germens da politicalha argamassada com a lama das calçadas do Rio de Janeiro.
Não há quem não saiba que o Brasil vive, de tempos para cá, não de superstições constitucionais, mas do bom senso e da coragem dos seus homens de governo. O regímen de absoluta insinceridade estabelecido na vida política da nação, só tem tido este único corretivo: o desprezo do Chefe do Executivo pelas balbúrdias de amigos e inimigos “profiteurs” dos outros poderes, O Sr. Washington Luis tem ainda uma ocasião a aplicar este corretivo, o único capaz de preservar as forças armadas da renovada investida revolucionária. É deixar morrer no pó do desprezo as insinceríssimas objurgatórias da esquerda. É deixar o general Nepomuceno na dúvida, que deve agora atormentá-lo, da sua capacidade constitucionalista.
E é esperar também a hora, ainda distante, da medição de forças políticas. Porque ela virá, mas sem tempestades, sem trovões nem coriscos, se entre os políticos de São Paulo e de Minas, acima de qualquer outra preocupação, houver a preocupação do bom senso, a convicção de que o Brasil precisa mais de bom senso do que de fictícios entusiasmos.
Gazeta de notícias, 21 de setembro de 1927