Jackson de Figueiredo
Li todo este já famoso livro de André Siegfried “Les États-Unis d’aujourd’hui”, com os olhos do coração e da consciência para além das suas páginas: lendo outras, as da nossa própria história, a história do Brasil, de toda a América Latina, de tudo isto, enfim, que constituirá aos olhos proféticos de um Berdiaeff, por exemplo, o mais obscuro recanto do que ele chama o Extremo Ocidente.
E, deste ponto de vista, o livro de André Siegfried, pelas suas garantias de serenidade e objetivismo, poderia provocar a elaboração de dez outros na consciência de todo observador brasileiro, e em geral de todo latino americano.
Bastaria o problema da imigração, tão somente ele, ou a análise dos resultados da assimilação yankee em comparação com o que se passa entre nós.
O domínio de tais meditações é campo largo para a construção de algumas obras, que o Brasil, aliás, necessita ver nascer, para que possa atentar um pouco no que vai realizando, um tanto ao Deus dará.
Mas o que me interessa agora é, fazendo abstração desses problemas particulares, arrancar à obra de Siegfried matéria para algumas interrogações sobre o sentido geral da nossa vida, sobre o espírito da nossa atividade coletiva, a face íntima, interna, do que, como todos os outros povos, temos também o direito de chamar a nossa civilização.
Com surpresa para quem está acostumado aos quadros clássicos do que poderemos chamar, por nossa vez, de romantismo sociológico — o que André Siegfried apreende como resultado imediato do regímen de ousadas iniciativas particulares na vida social e política dos Estados Unidos, é, com o disforme desenvolvimento da indústria e do comércio, a formação de um tipo novo de civilização — realização por absurdo dos ideais de Rousseau — e no qual é o indivíduo e a família que tendem a se anular em proveito da sociedade.
“A velha civilização da Europa, é preciso reconhecê-lo, não atravessou o Atlântico. A renovação americana não é somente, como geralmente se crê, no grau das dimensões, mas na natureza mesma das concepções. Alguns dos mais magníficos progressos materiais não foram nele obtidos senão após um sacrifício, o de certos privilégios do indivíduo, que o velho mundo justamente colocava entre as conquistas mais essenciais de seu esforço civilizador”.
É a custo desse sacrifício que os Estados Unidos podem olhar para a Europa como para uma “terra de pobres” e para a Ásia como para um “continente de miseráveis”.
“Mas, diz André Siegfried, o que há talvez de verdadeiramente novo na sociedade que realiza tais maravilhas, é que todas as energias, inclusive as do ideal e quase que também, as da própria religião, concorrem para esse mesmo fim produtivo: está-se em presença de uma sociedade de produção, dir-se-ia de uma teocracia de produção, que visa finalmente produzir coisas ainda mais do que homens”.
E daí poder saber-se que, no país em que o operário tem o seu Ford e salário correspondente aos ganhos da média burguesia de quase todos os outros países do mundo, este conforto custa “o preço trágico de milhões de homens reduzidos ao automatismo do trabalho”, problema de que o próprio escol norte-americano se preocupa como de um verdadeiro perigo para o seu material humano.
E, termina Siegfried a sua exposição:
“Assim, no momento em que os Estados Unidos conhecem um estado de prosperidade como jamais viu o mundo, o observador imparcial sente-se preso de uma dúvida: esse inaudito domínio dos bens da terra conduzirá, afinal, a uma mais alta civilização? Iniciadora das forças modernas da grande produção industrial, a Europa se detém, espantada, ao perceber as consequências extremas que, logicamente, acarreta a sua prática. Estaria no seu destino aceitá-las? Não se arriscaria, pelo contrário, a comprometer assim uma civilização anterior, incompatível, e que era talvez a sua personalidade?”
André Siegfried vê-se bem que tende para a manutenção do meio termo europeu.
“Menos que entre a Europa e a América — diferença geográfica — não se tratará, no fundo, de uma oposição entre duas idades sucessivas de nossa humanidade ocidental correspondendo a duas concepções da vida: a do homem considerado, não somente como agente de produção e de progresso, mas como espírito independente e como fim em si mesmo; e a da grande produção industrial, servindo-se na conquista industrial de todo o indivíduo? Deste ponto de vista, singular perspectiva, certos traços aparecem comuns à Europa e à Ásia: alarga-se a discussão, tornando-se um diálogo entre Ford e Gandhi.”
Se André Siegfried viesse observar o que se passa no Brasil, que diria do nosso estado de alma atual? E que nos aconselharia? E, de extremo a extremo da curva moral que se desenrola do Extremo Oriente ao Extremo Ocidente (humano e não meramente geográfico) em que ponto julgaria que já nos colocamos com aspirações de perpetuidade?
Se a Europa escuta, a esta hora, na própria consciência o diálogo entre Ford e Gandhi é compreensível que a nossa cena interior ainda é mais animada.
Nós ouvimos também, ainda hoje, indiscutivelmente, e bem mais que os Estados Unidos, em qualquer fase da sua história, a voz da própria Europa, da Europa que está em nós, nas nossas instituições e nas próprias feições mais determinadas, assim como nas mais indefinidas do nosso Cristianismo.
Somos formalmente cristãos e objetivamente católicos, no sentido escolástico dos termos, o que nos diferencia quase de modo notável não só dos Estados Unidos mas também dos países a que devemos o ser.
Mas quem terá razão em meio ao nosso meio apagado mas existente tumulto interior: Nabuco vendo ainda na Europa o sentido de nós mesmos ou a pregação do sociologismo de feira que vive a apontar-nos os Estados Unidos como padrão de vida superior?
E não significará o próprio embaraço da situação em que nos achamos, a existência de um complexo diferenciado, isto é, que já somos, por nossa vez, uma personalidade à parte, definida, pelo menos em relação às que nos veem de fora?
Porque é certo que o gesto ainda mal definido para nós mesmos já poderá ter levado a outrem a convicção de uma personalidade definitivamente hostil ou simpática à sua alma.
O fato de ser a ideia católica a dominante de um meio como o nosso, tal qual o americano de origem, favorável às extremas diferenciações individuais, já é só por si bastante significativo de um equilíbrio interno, de que nós próprios raro temos consciência, atordoados, às vezes, como somos, pelas rebeldias de superfície, resultantes naturais do crescimento artificial imigratório, que sobrepomos ao desenvolvimento normal do nosso eu histórico.
E é o que eu quisera ouvir dos pensadores da geração a que pertenço: a lição sobre a atitude que, de direito, deve ser a nossa, e a atitude que, de fato, já adotamos.
É claro que Gandhi ainda nos interessa menos do que à Europa.
Que devemos dizer de Ford?
Que nos resta do sentido europeu?
E até onde nos devemos guiar por ele?
Gazeta de Notícias, 4 de janeiro de 1928