PRIMEIRO SERMÃO PARA O PRIMEIRO DOMINGO APÓS A OITAVA DA EPIFANIA
Sobre o milagre de Caná e sobre estas palavras de Nosso Senhor:
“fazei como os homens que esperam o seu senhor quando volta das bodas”.
São Bernardo de Claraval
1. O Evangelho nos ensina hoje, meus irmãos, que Nosso Senhor voltou às bodas. Bem, seguindo o conselho de que Ele nos dá noutro lugar, “fazei como os homens que esperam o seu senhor quando volta das bodas” (São Lucas XII ,36). Quando vemos nos campos um homem com a mão no arado ou em um mercado, alguém que vende ou compra algo, acaso dizemos o que estão esperando? Ora, eles não se parecem, quais montes, com pessoas que esperam por algo. Mas quando vemos alguém parado à porta, batendo várias vezes repetidamente e olhando para as janelas, perguntamos o que tal pessoa está a esperar, e ninguém ficaria surpreso com a nossa pergunta. Aqueles que não fizeram ouvidos moucos à voz que os atingiu: “Parai, reconhecei que Eu sou o Deus” (Salmos LXV, 11), assemelham-se a pessoas que estão em espera. Agora, o Senhor virá encontrar aqueles que estão esperando por Ele na verdade e que estão nas mesmas disposições das quais se disse: “Aguardei o Senhor com grande impaciência” (Salmos XXXIX, 2). Ele virá como se voltasse do casamento, seu coração inebriado com o vinho da caridade e esquecido de toda iniqüidade. Para aqueles que não esperam por Ele, virá como um senhor que retorna das bodas e como um homem cujo vinho, que ele bebeu em abundância, dobrou as forças (cf. Salmos LXXVII, 71). Sim, ele estará inebriado e terá esquecido sua propensão pela misericórdia, porque, no que diz respeito a essas pessoas, Deus não saberá mais o que é a piedade. Ele virá, mas com ira, indignado, furioso, por assim dizer. Porém, ó Senhor, não me repreendais quando estiverdes tão animado pela fúria. A partir daqui, discorrerei não só sobre as presentes bodas [de Caná], mas também acerca daquilo que elas me deram oportunidade de falar a vós.
2. Juntemo-nos aos apóstolos, e sigamos o Senhor com eles para ver o que Ele fará, e para crermos como eles. “Faltando o vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: Não têm vinho” (São João II, 3). Ela teve piedade deles em sua bondade e tomou parte em seu constrangimento. O que pode resultar da fonte da Bondade, senão a bondade? Sim, pergunto-vos, como podemos nos admirar que das entranhas mesmas da Benevolência proviesse tamanha benevolência? Será que a mão que manteve uma fruta por meio dia não permanecerá com seu cheiro pelo resto do dia? Que perfumes de Deus não foram, portanto, difundidos nas entranhas de Maria, onde a própria virtude da Caridade permaneceu por nove meses inteiros? Além disso, a Caridade preencheu seu coração antes de ter preenchido seu seio, mas saindo de seu seio, não ficou fora de seu coração. Talvez a resposta do Senhor pareça um pouco dura e severa; mas Ele sabia bem com quem estava falando, assim como ela não ignorava quem lhe falava. Mas se vós quereis saber como ela recebeu essa resposta e o quanto contou com a bondade de seu Filho, ouvi o que ela disse aos que serviram: “Fazei o que Ele vos disser” (São João II, 5).
3. “Ora, estavam ali seis talhas de pedra” (São João II, 6). Devo agora colocar diante de vós essas talhas que devem servir para a purificação dos verdadeiros judeus, quero dizer, os que são judeus de acordo com o espírito, não de acordo com a letra: ou antes devo explicar o significado dessas talhas que lá se encontravam. Enquanto a Igreja ainda não tinha chegado a esse estado de perfeição em que Cristo a fez aparecer diante dEle cheia de glória, sem mácula, nem ruga, ou coisa semelhante (cf. Efésios V, 27), ela precisou ainda de muitas purificações, nas quais a indulgência abundava tanto quanto o pecado, a misericórdia igualmente à miséria [n.d.e: na Antiga Lei]; Para além disso, a graça não tem a mesma proporção do pecado (cf. Romanos V, 15), pois não só apaga o pecado, mas também é a fonte de mérito. Sendo assim, existem seis talhas dispostas na Igreja para aqueles que caem em algum pecado após o batismo: falamos sobre estes porque somos do seu número. Nós despojamo-nos de nossas vestes antigas, mas — infelizmente! — no-la devolvemos para nosso mal ainda maior. Lavamos nossos pés, mas logo os sujamos ainda mais do que no início. Entretanto, assim como em Outro [n.d.e: Cristo] lavamos nossos pés que por outro [n.d.e: Adão] foram sujos, então agora, como somos nós que os sujamos novamente, cabe a nós lavá-los. A água derramada por mãos estrangeiras nos purificou de uma falha que tivemos por alguém que não era nós mesmos. No entanto, não devo apresentar isso como tão alheio para nós que não seja nosso ao mesmo tempo, senão não poderia ter nos contaminado, mas é alheio no sentido de que é sem nosso conhecimento que nós todos nós nos tornamos culpados em Adão, e é nosso, nesse sentido, que, apesar de ter pecado em outro, ainda pecamos nós mesmos, e essa falha nos será imputada por um julgamento justo e impenetrável de Deus. Mas tu não tens desculpa, ó homem: para reparar a desobediência de Adão, você recebeu a obediência de Jesus Cristo, de modo que, se você foi vendido gratuitamente, você também será redimido gratuitamente; Se você morreu em Adão sem o seu conhecimento, também é do seu conhecimento que você é purificado em Jesus Cristo. Quando Adão usou uma mão infeliz sobre o fruto proibido, você não sabia o que o Salvador fez quando Ele estendeu suas mãos inocentes sobre a árvore da salvação. Do primeiro homem fluiu em sua alma o pecado que a contaminou, e do lado de Jesus Cristo, a água que a purificou. Mas agora, contaminado por suas próprias faltas, é em sua própria água que tu terás que te lavar, mas sempre nEle e por Aquele que sozinho limpa o homem de seus pecados.
Estas palavras estão no hino das Primas [n.d.e: do Breviário].
4. A primeira dessas talhas e a primeira das nossas purificações é a compunção da qual que lemos que o Senhor disse: “Enquanto o pecador se ressentir em seu coração, não me lembrarei de nenhuma das suas iniquidades” (cf. Ezequiel XVIII , 21-22). A segunda é confissão, pois ela lavou todos os pecados. A terceira é esmola, como vemos no Evangelho: “Dai contudo esmola eis que todas as coisas serão puras para vós” (São Lucas XI, 41). O perdão dos insultos é a quarta; porque dizemos em oração: “Perdoa-nos as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (São Mateus VI, 12). A quinta é a mortificação da carne, por isso pedimos na oração para sermos purificados pela abstinência, a fim de cantar a glória de Deus. A sexta é a submissão aos preceitos, seguindo o exemplo dos discípulos que mereceram ouvir essas palavras, e Deus quer que nos tornemos dignos de ouvi-las também: “Vós já estais puros por causa da palavra que vos anunciei ” (São João XV, 3). É verdade que eles não se assemelham àqueles de quem é dito: “Minha palavra não penetra em vós” (São João VIII, 37), pelo contrário, estavam sujeitos à palavra do Salvador assim que o ouviram. Estas são as seis talhas que foram preparadas para nos purificar; elas serão vazias ou cheias de vento somente se nos servirem apenas a vanglória. Pelo contrário, estarão cheias de água se forem resguardadas pelo temor de Deus, pois o temor do Senhor é uma fonte de vida. Sim, o temor do Senhor é uma água, uma água que pode não lisonjear o paladar, mas cujo frescor tempera admiravelmente o ardor de maus desejos; finalmente, é uma água que apaga os dardos inflamados do inimigo. Mais uma semelhança entre temor e água é que sempre procura o mais baixo, de modo a levar nossos pensamentos às profundezas, também gosta de descer, caminhando pelos lugares horríveis de uma alma terrificada, de acordo com essas palavras: “Irei às portas do inferno” (Isaías XXXVIII, 10). Mas por efeito do poder de Deus, esta água é transformada em vinho quando a castidade perfeita afasta todo o medo de nossas almas.
5. Diz-se que essas talhas eram de pedra, menos para indicar a dureza do que para mostrar a fixidez. “Cada uma continha cerca de duas ou três medidas”. As duas medidas representam dois tipos de temores; o primeiro de nos vermos talvez um dia a precipitar-se no inferno, o segundo de nos ouvirmos eventualmente excluídos da vida eterna. Mas como estas são coisas que podem não acontecer, e a alma pode adular a si mesma por um dia de penitência depois de ter passado uma parte da vida nos prazeres dos sentidos, e assim [achar que] escapar do inferno e céu, é bom acrescentar um terceiro medo aos dois primeiros, um medo bem conhecido de homens espirituais, e ainda mais útil em relação ao tempo presente. Aqueles que conhecem o alimento espiritual não temem nada mais do que dele ficarem privados. Isso ocorre porque qualquer pessoa que tenha aplicado as mãos em empreendimentos fortes sente a necessidade de alimentos fortes. Aqueles que passam a vida em obras de barro e tijolos estão satisfeitos com as palhas do Egito; Para nós que temos um longo caminho a percorrer, precisamos de alimentos mais fortes para continuar nossa jornada. Mas este alimento é o pão dos anjos, é o pão da vida, é o nosso pão diário. É a dele que nos fala a promessa feita a nós que receberíamos cem vezes nesta vida. Da mesma forma que aos mercenários se dá seu pão diário enquanto durarem seus trabalhos, reservando-se a recompensa para o final, assim o Senhor nos dará a vida eterna no fim; Mas Ele nos mostra e nos promete o cêntuplo nesta vida [n.d.e: terrena]. Não é de admirar que todos aqueles que já receberam este cêntuplo têm medo de perdê-lo? Aqui está a terceira medida, que é relacionada às duas primeiras apenas disjuntivamente, ou para dar a entender que o cêntuplo não é prometido a todos, mas apenas àqueles que abandonaram tudo.
Traduzido por Ludmilla Oliveira a partir do texto francês disponível em <http://www.clerus.org/bibliaclerusonline/es/jko.htm#bt>.
Revisado por Leonardo Brum.
[Segue abaixo o texto da Missa correspondente]