Jackson de Figueiredo
De todos os livros que a revolução tem produzido, confesso que, até agora, só um me impressionou fortemente. Ele anda por aí com o título mais pacífico deste mundo: “AGRARISMO e INDUSTRIALISMO”…
Assina-o um misterioso Fritz Mayer*, em quem nunca ouvi falar e, segundo indicação da capa, o livro foi impresso em Buenos Aires.
Fosse lá ou fosse aqui, a verdade é que Fritz Mayer é um grande conhecedor da nossa vida social e política em todos os seus aspectos, tendo de cada um deles, quando menos seja, intuições verdadeiramente impressionantes.
Existe Fritz Mayer ou é um nome de guerra? Pouco importa. O que importa a mim é verificar que há, no Brasil deste momento, mais um homem digno de respeito segundo o critério que, único, me parece também digno de respeito, isto é, o de dividir a nação em dois campos perfeitamente limitados – de um lado, o dos que sabem o que querem – e Fritz Mayer está deste lado – do outro – o dos que não sabem o que querem, e são, por isso, os verdadeiros perturbadores da nossa vida política, seus arruinadores, porque é arruinar um país o aniquilar-se o caráter de seus homens, o endeusar-se a balburdia, a confusão, a anarquia, só pelo prazer de falar, de aparecer, de ganhar popularidade, quando não por piores motivos.
Ora, Fritz Mayer está, como disse, entre os poucos que sabem dirigir o seu esforço moral, tem um ideal, deseja alguma coisa de claro e positivo, de perfeitamente definido. Ele escreve o primeiro ensaio marxista-leninista sobre a revolução no Brasil. Quer a revolução radical, completa, a absoluta reversão da nossa tábua de valores psicológicos, morais, sociais e políticos. Julga o industrialismo uma causa geradora deste alto espírito revolucionário, e o opõe ao agrarismo que alimenta no país as raízes do que ele chama o nosso espírito feudal. Ilusão? É o que me parece, mas é lógico, é frio, é objetivo na sua análise do nosso atual estado de coisas – é o que é forçoso reconhecer – desde que se reconheça a legitimidade histórica do seu ponto de vista. Eis o que compreendo e até respeito, como já confessei, e não me dói que Fritz Mayer me aponte como um dos tipos mais bem caracterizados do reacionarismo, “um filho espiritual dos absolutistas como José de Maistre, Pobiedonostzev, para a autoridade do direito divino, etc”?
É a pura verdade.
Se eu tivesse a força e a autoridade, só a força me arrancaria a mais leve parcela do que julgo os alicerces cristãos da sociedade brasileira, e, justamente, o que nela me horroriza não são os homens como Fritz Mayer nem os princípios que ele representa. A eles o combate franco e leal, e mesmo, algumas vezes, sem mercê nem piedade. É assim que eles amam o combate e Fritz Mayer não só o aconselha como expõe uma teoria perfeitamente una e coerente dos processos lógicos da revolução, de que fazem parte a extrema violência e a rapidez dos movimentos. “Para nós – diz ele – o erro fundamental da primeira tentativa de destruição dos elementos feudais do país, a 5 de julho de 1922, e também da segunda, a 5 de julho de 1924, foi a inexperiência política, o desconhecimento dos segredos da arte séria que é a da insurreição armada. Esta tem suas leis já conhecidas desde Marx e Engels: rapidez de ação; ofensiva brutal, violentíssima; atacar de frente; decidir-se a afrontar todas as consequências; atacar de imprevisto; alcançar cada dia novos sucessos; não dar tempo ao inimigo de reunir as tropas dispersas; manter o ascendente moral produzido pela primeira vitória”.
O que realmente me horroriza é o que Fritz Mayer tão bem designa como o nome de confusionismo, o nosso confusionismo, essa tremenda prática de crime e delitos, de sacrifícios e heroísmos sem finalidade, sem causas sérias, sem fins sérios, sem causas realmente pesadas e meditadas, sem fins concebidos, seriamente visados, originada toda ela num incrível caos de vaidades e interesses mesquinhos, aqui, ali, confusamente animada por semi-ideais e semi-desejos, e toda, absolutamente toda ela, valendo pouco mais – essa prática confucionista – que a oca verbiagem que a exprime…
É daí o que se vê: é, num plano, a autoridade que duvida de si mesma, e a cada passo parece pedir desculpa de ser autoridade; no outro, a rebelião que não ousa confessar-se digna de si própria, capaz d ser o que quer ser, sempre a crucificar-se na mais repugnante hipocrisia, fazendo absoluta questão que se afaste do juízo sobre a sua atividade qualquer ideia de violência, de ambição, de dureza.
Vê-se que um país em que predomina esta mentalidade, caminha francamente para a ruína, pois é um país onde a base de toda a atividade política é a mentira, a covardia, a negação mesma da consciência moral coletiva. Esta pode ser afirmativa – força é reconhece-lo – até em atos de destruição e violência – mas nunca neste eterno vir a ser da rebeldia à sua descaracterização ideal.
O resultado não podia ser outro que a imbecilidade triunfante – seja quem for o vitorioso – Autoridade ou Revolução – o resultado não podia ser outro que não este macabro, dramático, fúnebre carnaval que estamos vendo, há anos, saído ninguém sabe bem de onde, a marcar passo na Avenida, a demonstrar que não tem traçado algum, e que é incapaz de viver para além do falso ambiente de ovações que partem do seu próprio seio…
Neste ponto Fritz Mayer tem razão: um país em que os responsáveis políticos não sabem que revolução não é somente o tiroteio e a dinamite; um país em que os revolucionários são, mesmo quando confessam alguns fuzilamentos, uns verdadeiros S. Franciscos de Salles em ação, pode esquecer-se das lições da filosofia política tradicional e católica, mas não arrisca muito se vier a conhecer, não um ensaio teórico, mas uma lição prática de marxismo-leninista.
Não é isto conclusão de desespero.
Pelo contrário. É a conclusão do homem de fé, que é aquele que não esquece a lição do mestre, citado por Fritz Mayer, de que “as revoluções, às vezes, vêm do céu… como o raio”.
E contenta-me também jamais ter esquecido essa outra lição de um irmão espiritual de José de Maistre: “Nas crises políticas o mais difícil para um homem de bem, não é cumprir o seu dever, mas conhece-lo”.
Fritz Mayer julga que conhece o seu.
Há de concordar que jamais poupei esforço para conhecer o meu e defini-lo de modo mais claro possível.
O homem marcado, mesmo da marca do diabo – de que falava Julio Maria – eis o que com sinceridade, quando não amo, pelo menos respeito e acato. O combate mesmo é, às vezes, uma prova deste respeito.
O que é triste é lutar contra o dilúvio das larvas, das negações em essência, que ainda temem mais um impulso de objetivação, que o próprio apagamento total no seio da morte.
Gazeta de Notícias, 30 de março de 1927
* Pseudônimo utilizado pelo militante comunista Octávio Brandão. O livro, em verdade, foi impresso no Rio de Janeiro e não em Buenos Aires, como constava na edição.