Jackson de Figueiredo
[Nota dos editores: longe de termos por Jackson de Figueiredo uma espécie de afeto que nos tornasse acríticos em relação ao nosso patrono, afirmamos que ele, muito provavelmente devido a circunstâncias pessoais — como sua conversão tardia e morte prematura — e ao momento histórico em que vivia, deixou-se influenciar por escritores daninhos, entre os quais estão Joseph de Maistre, Charles Maurras e o próprio Blaise Pascal, aqui mencionado positivamente. Publicamos o artigo abaixo a título de peça histórica e de crítica literária, sem endossar de modo algum os louvores de Jackson de Figueiredo ao pensador francês.]
A meu ver é perder tempo discutir o Piolin e o pau-brasil como madeira de lei em campo literário, mas compreendo perfeitamente o que se passa na consciência de um homem tão nobre como Tristão de Ataíde, forçado há anos a esse estafante balanço de uma literatura como a nossa.
Há momentos em que a indignação ou a objetivação do desprezo não reconhece outros limites que não os traçados pela covardia. E quem não é covarde, por mais delicado que seja, há de um dia surpreender-se, em plena feira, a lutar, corpo a corpo, com mercadores e palhaços.
A hora presente é, na vida brasileira, uma hora assim, provocadora até da pior tristeza, que é a que faz rir.
Mas não esmoreçamos.
Tangenciando essas angústias, esperanças de ordem moral, belas esperanças, cortam também os turvos horizontes do Brasil contemporâneo.
Ora, uma dessas esperanças é a lucidez e a honestidade com que a inteligência da juventude brasileira vai, de tempos a esta parte, encarando o problema religioso, ou melhor, esse conjunto de problemas a que o apologista francês pôde chamar questões de vida e de morte.
Note-se, por exemplo, como à nossa mocidade cabe também o ”hantée” de Vinet, como observador do pensamento moderno em relação a Pascal. Publique, já lá se vão cinco anos, um ensaio sobre essa influência, tão dramática quão reconfortante, e pude ver, sem irritações da minha vaidade e com bastante animação ao meu orgulho de brasileiro, que, de norte a sul do país, foram dezenas as manifestações de um profundo sentimento pascaliano, e não poucas vezes acompanhados de altos e nobres testemunhos de saber.
Agora, com que íntima alegria vejo mais um fruto de oiro dessa agitação vital, e que nos fala tão impressionadoramente das forças misteriosas que se agiram no fundo da nossa alma.!
Marcelo Nunes, o autor de “A Ânsia Eterna” ou “Mistério de Deus, do homem e do amor em Pascal”, como se apresenta, este jovem, à minha cansada consciência, cansada de lutar com estes mesmos mistérios, e não só mais na angústia fortificante da vida interior, mas também no triste aprendizado da vida de tempestade, da vida que se desenrola, vulgar e hostil, sobre chão de esperança e sacrifício?… Ele me aparece como um fantasma de mim mesmo, da juventude morta, mas também da eterna juventude que só quem sofreu dessas inquietações e dessas tristezas, em face do mundo, logo, ao deparar-se com ele, tem a graça de poder senti-la dentro de si, a iluminar as ruínas interiores, que o tempo vai fazendo…
Tão tímido, Marcelo Nunes, tão infenso a vaidades literárias, que nem mesmo se deixa conhecer pelo nome que recebeu na pia batismal. Mas, o que é singular é que tal timidez se possa conciliar com um espírito libérrimo, pois, para quem tenha olhos de ver, é isto, esse espírito de liberdade, essa sobreposição da personalidade à individualidade, o que caracteriza as páginas de fulgente mas velado carinho deste ensaio sobre Pascal.
Falar de Pascal, para um individualista, cercado das circunstancias da vida americana, será sempre uma exasperação de vaidade e destemor do ridículo.
Marcelo Nunes tem o vivo sentimento de que não é armado desse espírito individualistaque se pode aspirar à honra de conviver com Pascal.
Por isto, o que, à primeira vista, oferece o seu livro é a tentativa de uma adaptação dos “Pensamentos” à nossa língua, e, quando muito, a escolha do comentário de autores reconhecidamente autorizados na matéria.
Mas o ensaio revela muito mais, muitíssimo mais mesmo, para, repito, quem tem olhos de ver.
As distinções estabelecidas, as divisões, apreendidas, naquele agitado oceano de ideias, a escolha sutil do que requer sutilidade para ser posto em destaque, no vasto mundo revelado por aquele penetrante sentimento da vida, tudo isto é a prova de que o espírito pascaliano penetrou, e fundamente, a consciência e o coração do jovem brasileiro.
Ele sabe falar assim, do iluminado âmbito de sua modéstia:
Uma das maiores conquistas do cristianismo é a primazia da intenção sobre o fato — princípio sobre o qual se baseia toda a doutrina da Nova Lei — a supremacia do espírito todo poderoso, porque é capaz de chegar a Deus, sobre o corpo miserável, sujeito às exigências ínfimas da matéria e limitado às sensações da animalidade.
A singela margarida, tão decantada pelos poetas ingleses — oferecida, em campo verde sob o céu purpúreo de tarde estival, pelo pastor apaixonado à sua bela — significa o mesmo amor, simboliza a mesma paixão, representa o mesmo ideal que o rico colar entregue ao som de orquestra e ao reluzir de lâmpadas elétricas, num ambiente afidalgado…
A minha homenagem a Pascal é a furtiva ‘daisy’ que, a custo, achei no campo estéril de meu pensamento…
Este ingênuo falar não afaste das páginas de Marcelo Nunes os espíritos que se julguem mais impiedosos na análise e na crítica.
“A Ânsia Eterna” não lhes revelará o que por aí se chama um literato, nem mesmo um atormentado do Piolin ou do pau-brasil…
Revelar-lhes-á uma coisa mais séria, muito mais séria mesmo: um espírito, um alto e nobre espírito com todos os pudores e formosuras da eleita juventude, que tem olhos para as coisas divinas.
Gazeta de Notícias, 14 de abril de 1926