Jackson de Figueiredo
Acabara de ler dois ensaios sobre o insondável, o tenebroso, o luminoso William Blake, o de Julien Green, sugerindo quão imprecisa é a linha que separa o visível do invisível, e o de Philippe Soupault, que deixa no espírito a dúvida atroz: de que se trata, aqui: do sobre ou do preternatural?
Talvez fosse por isto. Toda voz de mistério, todo clamor da sombra encontraria doloroso eco no meu coração… Mas o fato é que — tão insensível já ao contato das perversões literárias e tão difícil de comover-me ante a expressão literária do verdadeiro sofrimento — acabo de ler um pequenino e misterioso livro brasileiro que, tocando-me as cordas mais profundas, mais escondidas da alma, me arrancou lágrimas de tristeza e de gratidão. Sim, de gratidão, também, porque é sempre um bem imenso que nos fazem a expressão da dor sincera, do sincero espanto, da fé sincera, da resignação consciente.
O livrinho foi escrito por Álvaro Bomílcar. Relata a vida de um filhinho seu — Ubiratan — que morreu em 1926, com menos de três anos.
“Desejaria — diz Álvaro Bomílcar — desejaria, corajosamente, oferecer vantajosa resposta a estas humildes perguntas:
— Pode uma criança de três anos incompletos, retratar-se numa biografia?
— Pode um pai, torturado de saudades fixar alguma coisa, a um tempo simples e elevada, digna de ser lida, resumindo fatos verídicos, colimando tornar simpática e interessante, aos parentes e amigos, esse pedaço de vida — encanto e graças — de um lindo filhinho arrebatado pela morte?”
Bomílcar quase não responde a estas perguntas. Ele sabe que “a dor gera o poeta”, mas sabe que nada há que valha a lágrima ou o silêncio, em face da dor. Não pode recuar, porém. Precisa falar, precisa desoprimir o coração. E escreve.
Eu estou, porém, no caso de responder àquelas interrogações.
Conheço Álvaro Bomílcar há mais de dez anos, e a diversidade dos nossos temperamentos, tanto quanto as necessidades da vida, nos tem separado, não raro, para bem longe. Mas uma coisa é verdade de que dou testemunho: em poucos homens tenho visto o amor da pátria, tanto como nele, ter a força da fé, e com tanta simplicidade, e tão isento de “pose”, de atitudes heroicas e estudadas.
Pois bem: ao coração de um homem assim nada é impossível no domínio do amor e da adoração. Esse homem pode ser o biógrafo de uma criança de três anos, e pode ser o pai inconsolável, que, transmontando o ridículo, eleve sobre o túmulo do filhinho morto uma grave e dolorida imagem, uma severa, séria e enternecedora figura do mistério, sim, do mistério que está na dor pensada, na dor consciente dos homens.
Porque o livrinho de Álvaro Bomílcar tem feições singularíssima. Nós sabemos o que é a mansa exaltação do “Pour l’Enfant” de Pomairols.
Tu ne fus qu’une enfant humble et liée au sol.
E a verdade é que não são raros os livros comoventes revelando as mesmas angústias. Dizem-me que o “Alma” de Valentim Magalhães, que jamais pude ler, é das melhores páginas que ele escreveu, e Affonso Celso não é o único dos grandes vultos das nossas letras a deixar-nos testemunho de um carinho paterno acima do comum.
O livro de Álvaro Bomílcar, porém, repito, tem feições singularíssimas. Em primeiro lugar ele não mente, o que parece impossível, quando promete uma biografia.
E esta biografia está feita, seguido, quase dia a dia, o desenvolvimento, realmente impressionante da criança fadada a uma “tão próxima eternidade”, apanhados os seus gestos, os seus pequeninos gestos a que a morte veio emprestar qualquer coisa de profético ou de angélico, qualquer coisa reveladora dessa visão direta das coisas e do destino, que deslumbra e aterroriza a nossa imaginação.
E como não impressionar a um pai extremamente amante à palavra de uma criança de três anos, que atrai, ao seu aparentemente reduzido campo de atividade espiritual, a visão da morte e da terra fria?
Eu sei por outros amigos que aquela criança foi mesmo excepcionalmente dotada de inteligência, ou melhor, de ternura inteligente, e posso assim compreender como o ironista, o combativo, o sereno combativo, o sereno ironista que sempre foi Álvaro Bomílcar se viu, de repente às voltas com a imaginação do sofrimento de espanto em espanto, até cair nas garras desse dogma da reversibilidade, que é, afinal, após maltratar-nos tanto, o mais consolador de todos os dogmas.
E não somente nas garras desta dolorosa certeza, mantendo, de modo admirável a nítida consciência do seu cristianismo, e o sentimento de que ele é tudo, e de que só dele é possível esperar. Álvaro Bomílcar viu aguçarem-se todas as pontas, para o alto, da sua sensibilidade, e tornar-se-lhe mais fácil, ou melhor, mais violenta a percepção do mistério que envolve a nossa vida, não já do mistério como ideia ou como ponto de intersecção de ideias, mas do mistério como atmosfera mesma da vida do espírito.
Álvaro Bomílcar então recorda a singularidade das coisas de todos os dias nesta breve vida que se findou. Aparecem as ciganas de todas as vidas, e falaram certo. Aparece a matinta-pereira, agourenta e sinistra, esta a cantar, mas a cantar certo também.
E as páginas vão, assim, tomando uma fisionomia de outro mundo, e, tornando, pois, mais sobrenaturalmente compreensível aquele pequeno vulto humano, ainda quase liberto da escravidão discursiva e tão misterioso e tão grande, e tão feito para eternidade, como o maior dos profetas.
E o pai, crucificado, e por conseguinte remido, na sua dor imorredoira, assim fala, por fim:
“… até que afinal, um dia, vim encontrar algum alívio, reunindo, esquadrinhando e cotejando certos aspectos da Verdade Eterna e restabelecendo sua trama lógica, necessária.
- O Ubiratan nasceu com os dias contados: tinha que cumprir o seu destino;
- Trazia elevada missão: desvendar os mistérios sublimes da Outra Vida a um casal imprevidente, ensimesmado, que se julgava feliz durante 20 anos se inebriava de venturas, sem ter pago ainda o seu tributo de lágrimas;
- Dado que a Dor é a condição primordial da existência finita, e só ela depura, purifica e eleva as almas para Deus, o simples sentimento da saudade seria de pouca monta para a finalidade redentora. Mister se fez que a esse sentimento se juntasse um suplício mais pungente: o remorso de haver concorrido para a perda desse filho amado (Álvaro Bomílcar se acusa das mais pequeninas faltas na orientação que deu ao tratamento do filho!).
Isso sim aumentaria a penitência imposta pelo Juiz Supremo; mas imposta a mim somente, a mim que tantas vezes agi impulsionado por vaidade ou orgulho!
Bebi nestes pensamentos o vinho amargo da Consolação…”
E quem não o beberia?
Leia-se com verdadeira humanidade esta simples página de contrição cristã, e ver-se-á que vale ouro neste mundo. E compreender-se-á também que só Jesus Cristo é, de fato, senhor das almas, e que só Ele ainda faz milagres de alegria e de serenidade na “face atormentada do planeta”.
Gazeta de Notícias, 07 de março de 1928.