Jackson de Figueiredo
Em um livro publicado em homenagem a Charles Maurras, e em que se encontram poemas, perfis, juízos e opiniões de Anatole, Barrés, Bourget, Daudet, Dimier, Mauclair, Reté e vinte outros dos grandes nomes da França contemporânea, nomes que simbolizam talvez vinte doutrinas contrárias, mas um só ardente patriotismo. Emile Sicard assim resume o seu pensamento em relação ao maior publicista francês de nossos dias:
“Ele é como uma ilha de fé e honestidade contra que se quebram todas as vagas da inveja e da ambição.”
Fé e honestidade! ― eis tudo, tudo quanto necessita um espírito para não ser na vida um simples literato ou um simples político, mas um homem, um verdadeiro homem: ser destinado a progredir, a se tornar digno de Deus, sob o peso mesmo do sofrimento: “Tu comerás o teu pão no suor do teu rosto.”
A vida de Charles Maurras, basta que se examine superficialmente para que se sinta que, de toda ela, irradia a melancolia e profunda verdade que é como o selo divino sobre as grandezas humanas: a gravidade da dor sobre as vitórias do esforço heroico.
Em verdade, imagine-se que horríveis os aspectos, que sangrentos os cenários deste mundo em que Charles Maurras não se quis deixar dominar pelo medo nem pela embriaguez das hecatombes, nem pela volúpia de mentir a si mesmo e aos seus irmãos de infortúnio, em meio do incêndio que vai devorando os restos da dignidade humana sobre a terra.
“Le Machiavel du Risorgimento latin tel apparaitra Charles Maurras a nos fils.” Eis o que disse Fernand Gauzy, tentando um paralelo impossível dentro do campo do que chamou de razão experimental em política. Forte loucura! Entre o político que verificava a existência do mal e aconselhava a sistematização do mesmo mal como o governo e o pensador que, penetrando o mal em todos os seus segredos, não tem outro fim senão combatê-lo sem descanso ― o paralelo é absurdo. Outra é a glória, outro o martírio de Charles Maurras.
Quem poderá jamais interpretar o sofrimento deste homem que, tendo podido avistar o porto da salvação, a todos cede o roteiro e indica o caminho certo, mas já não tem mais força para seguir também?
Tenho cem vezes meditado o trágico desta atitude de Charles Maurras em face da Igreja e ainda não vi outro que se lhe compare. Batalhando em prol da felicidade humana, Maurras não vacila no dizer a verdade: a Igreja Católica, eis a salvação, eis o templo em que encontrareis ordem e paz. Ide a esse templo, meus irmãos.
Mas a si próprio que diz Maurras? O que acaso se lhe ouve, do seu diálogo íntimo, vale pouco, bem pouco mais que um sorriso da mais triste amargura. Alma de altíssima formosura, até a sua desilusão é harmoniosa, confunde-se com a beleza e a alegria. Mas, neste mundo, quantos os enganos!
Pode a beleza estar no contorno da lágrima mais triste.
Tendo em horror o espírito de negação, Charles Maurras é a obra mais dolorosa que este espírito, eminentemente destruidor, pôde fazer, se se pode dizer assim. A miserável atmosfera que respirou a sua mocidade intelectual, ainda era aquela que envenenara Musset. E quando as almas se sentirão libertas de tais misérias? “L’orguell humain, de Dieu de l’egoist, fermait ma bouche á la priére, tandis quem mon ame effrayrée se réfugiait dans l’espoir du néant.” Não poderia ser esta a confissão de Charles Maurras? A verdade, porém, é que muito cedo morreram em sua alma aquelas energias que fazem o cristão integral, o católico integral e, adorando a beleza, só a forma de toda a beleza pôde apreender e possuir, pois a essência lhe há de escapar eternamente, dado que até esta, só a verdadeira ideia de Deus pode guiar.
Ele sabe, como nota Bruno Durand, que “a Igreja Romana não é somente a guarda vigilante da ordem. Ela é mais e melhor do que uma harmoniosa e tradicional hierarquia. Ela é a reguladora natural de todos os impulsos do coração, a sábia diretora das aspirações da alma para as regiões superiores”. É ele próprio quem diz admirar o Catolicismo “em razão do ritmo moral, da medida interior de que a virtude imediata é estabelecer espontaneamente uma larga unidade de pensamento e de coração”.
Entretanto, a sua própria personalidade foge a esta unidade, na angustiosa admiração, no grande e doloroso amor, digamos assim, à Igreja, amor e admiração puramente intelectuais, porque o seu próprio coração não tem mais força e nem sequer acompanha a inteligência vitoriosa, senhora da verdade. Este, o seu amaríssimo caso. Só um cego não verá entre os esplendores da sua vitória sobre a anarquia moderna, a sombra do seu próprio individualismo, muda, dominada, sim, mas ainda viva.
Haverá comércio possível entre a luz e as trevas? ― perguntava São João da Cruz ― não se deve sair primeiro destas para entrar àquela? E o grande místico respondia a uma tal pergunta com as próprias palavras da Escritura: “Lux in tenebris lucet, et tenebrae eam non comprehenderunt”.
Entretanto, força é confessar aqui que a treva compreendeu a luz e, sem deixar de ser treva, caminha dentro da luz e diz a quantos o ouvem: banhai-vos desta luz.
Charles Maurras, como diz Pedro Decoqs, “realiza, ele, descrente e pagão, este paradoxo desconcertante de falar da Igreja Católica em termos em que brilha, a par da mais viva admiração, uma inteligência às vezes excepcional dos seus inesgotáveis recursos. Esta Igreja ele está pronto a defender com todas as suas forças e a compreende melhor, em certos pontos, que alguns dos seus filhos”.
Ateísmo, ou melhor, positivismo ― o que quer dizer ceticismo ― e adoração da ordem em todos os domínios da vida ― eis os dados contraditórios de filosofia de Charles Maurras, o que Pedro Decoqs chama os seus postulados filosóficos.
Como, porém, esta necessidade da ordem não a restringe Charles Maurras em qualquer domínio da vida, sendo a ordem sua paixão dominante, veremos, ao lado de Pedro Decoqs, como o seu paganismo se fez, pouco a pouco, o mais atento defensor da Igreja Católica, nestes tempos de anarquia, desordem e desrespeito ao bom senso.
O Jornal, 18 de Março de 1920.