Feita a análise das “Provinciaes”, Pascal aparece-nos com a estranha figura de um grande crente, com justiça condenado pela Igreja. Com justiça. Ninguém mais do que ele próprio condenara o que, depois, o tornou suspeito ante a suprema autoridade do Catolicismo.
Em verdade, dissera Pascal: “Il faut n’aimer que Dieu et ne haîr que soi” (XXIV-59) e no entanto, ele, que também dissera que “a história da Igreja é a própria história da verdade” (XXIV-31), valorizou bem mais as suas próprias conclusões sobre o homem e as suas relações com Deus, do que o testemunho da Igreja.
É certo que, entregando-se ao Jansenismo, tinha o mesmo pensamento dos fundadores daquela seita, isto é, pensava que a Igreja Católica não era mais a verdadeira Igreja de Jesus Cristo, e que só o Jansenismo, o que quer dizer, a Igreja depurada dos seus males, seria a verdadeira Igreja.
Eis o orgulho na sua expressão máxima: um homem, um grupo de homens, procurando com a só autoridade das suas dúvidas, derrubar a obra dos séculos, e pode-se dizer que Pascal teria sido o maior das duas últimas grandes glórias intelectuais da Igreja, se não fora o orgulho de que se temia, mas de que não pôde se esquivar.
Pascal esqueceu o que já lhe ditara a própria sabedoria… “O Cristianismo é estranho: ele ordena que o homem se reconheça vil e mesmo abominável” e toda “a glória do homem está neste doloroso conhecimento” (XII-5, I-3).
Ademais, ele fizera até padrão de glória da religião que queria defender, ser ela “a única religião contra a natureza e contra o senso comum” (XI-9). Ora, porque suporta-se Pascal acima do homem vil e abominável?
Também dissera: “O coração tem sua ordem própria; o espírito tem a sua, que é por princípio demonstrações, a do coração é diferente. Não se prova que se deve ser amado, expondo em ordem as causas deste amor: isto seria ridículo” (VII-19).
Entretanto, nem mesmo esta atitude conservou em face da Igreja e ousou mesmo atacá-la porque se negasse a condenar a grande maioria dos seus filhos. Julgou-se só com uma razão a que a fé, o coração não alumiava, senão com a luz do mais sinistro orgulho. Como se pode compreender que até a fé possa sofrer tão desastrosos desvios? Mesmo porque é preciso notar que o Catolicismo era o seu ideal cristão, e ele se julgava um bom católico. Sua irmã Jacquelline, às imposições da Igreja, respondeu deste modo: “On ne peut être retranché de l’Église malgré soi. C’est l’esprit du Christ qui est le lleu de l’union.”. Certo foi esta também a opinião de Pascal e é, no entanto, a de qualquer protestante.
Mas teria tido Pascal consciência clara do seu próprio individualismo? Creio que não. Ao estudar-se a obra de Pascal, no que diz respeito à Igreja, deve-se antes do mais, ter em conta a época em que ela foi feita, como a nossa transição, de luta terrível entre as tradições do espírito humano e o espírito de novidade.
E não é certo que Pascal veio a ser invocado por mais de um revolucionário? Não é que pelo horizonte espiritual de alguns assassinos de Luiz XVI passou a sua sombra gigantesca como a personificação do gênio inquieto e doloroso de sua raça? Amargas ironias do destino… E com Pascal foram múltiplas…
Não há de negar que as “Pronviciaes” antes avivaram o heroísmo da Igreja, e, ferindo-a na sua gente mais alta e mais santa, levantou-a, por isto mesmo, aos olhos dos indiferentes, chocados assim, não só pela evidente injustiça daquela guerra, como pela gravidade dos problemas agitados.
Mas não era esta a intenção dos reformadores que inspiraram o gênio tempestuoso do panfletário, e não se pode negar também que o individualismo religioso teve, desde aqueles dias, um padroeiro genial, invocado a todo instante, não esquecido em qualquer debate. É certo que Pascal também dissera que “a autoridade dos reis se apoiava na loucura dos homens” (V-8), mas talvez sem ser preciso sofisma algum, poder-se-á dizer que não há ceticismo na essência de uma tal asserção. Basta lembrar que o dogma da queda era a base da sua filosofia. O espírito decaído, debatendo-se como um louco entre a espera do pecado a que se arrojou e a luz suprema que o atrai, só encontra uma paz relativa sob o guante das leis do Estado, instituído por Deus.
Pascal viria encontrar-se neste ponto com um dos mais terríveis lógicos do materialismo político, Hobbes, que, a par do seu menor conhecimento da natureza humana, via no Estado uma pura necessidade da nossa inferior condição de seres egoístas. Somente o que era loucura para o apologista cristão, era maldade essencial para Hobbes, e Pascal, mártir e herói, conhecia o sacrifício e a bondade, ao passo que o cortesão inglês, nos seus noventa anos de vida, só conseguiu ver egoísmo, brutalidade e hipocrisia, num jogo mecânico de forças sociais.
Mas o individualismo é tão próprio a envenenar certas raças, que é triste conhecer as consequências da filosofia de Pascal, durante dois séculos, no seio da sociedade francesa, contrastando com os resultados da filosofia de Hobbes atuando sobre o temperamento inglês, se é verdade que a Lange (Hist. du materialisme) não escaparam as causas mais importantes do equilíbrio político daquele povo.
Quanto a Pascal, que há de dizer dele, além do que se possa lastimar da sua obra?
O pensamento humano vai, muitas vezes, além do próprio homem que o representa, em cada momento de nossa história. Envolto nele, o homem é como uma sombra da grandeza de Deus, e alonga-se por cima das nuvens – até a região luminosa, entre os astros… Mas é dos ombros da nossa fragilidade, da nossa pequenez, que se alteia esta sombra, e nós temos os pés na lama, o ar infecto, sofredores de uma condenação misteriosa… E a grande sombra luminosa pode oscilar, podemos vê-la traçar círculos grandiosos no azul infinito e, pouco a pouco, apagar-se em si mesma. Assim pode acontecer ao homem de gênio, filho dileto de Deus, porque não é raro que o mais querido há de fazer de filho pródigo… Pascal foi um deles…
Jackson de Figueiredo, 28 de Setembro de 1920.