Padre José María Iraburu.
Blog Reforma o apostasía, 05.02.2010.
Tópicos:
- O semipelagianismo
- Rejeição católica imediata
- Cânones principais do II Sínodo de Orange (529)
- Bonifácio II confirma o II Sínodo de Orange (531)
- A primazia e a total gratuidade da graça de Deus
– Certamente em seguida vai nos contar sobre os atuais semipelagianos.
– Não duvide. Tenha-o por certo, com a graça de Deus.
Expus as grandes quedas do cristianismo (56-60) [1], limitando-me ao arianismo e ao pelagianismo em suas versões antigas e atuais. E, embora o semipelagianismo implique também uma queda do cristianismo, negando toda a liberdade de graça, preferi tratá-lo separadamente por respeito a seus santos iniciadores, e principalmente porque vou considerá-lo nas versões voluntaristas atuais, bem longe do semipelagianismo puro e simples.
O semipelagianismo é um erro grave surgido no século V em alguns mosteiros do sul da França, como Marselha – por isso chamado de erro massiliense – e Lérins, ilha em frente a Cannes. Foi formulado e divulgado por homens de vida muito santa, como os monges João Cassiano, abade de Marselha (+430), em sua Coleção XIII, São Vicente de Lérins (+445), autor do Commonitorium, e São Fausto, bispo de Riez, anteriormente abade de Lérins (400-490). Eles, claramente afastados do pelagianismo – reconheciam o pecado original, a necessidade de graça e a oração de petição – erravam, no entanto, sobre a primazia absoluta da graça. Querendo reagir contra certas teses de Santo Agostinho, que em sua opinião eliminaram a liberdade do homem em sua colaboração com a graça, chegaram a afirmar que certos esforços da vontade humana precedem a graça e que o princípio mesmo da fé (initium fidei) depende do homem. Foram homens santos, que erraram num tempo em que a Igreja não havia definido a doutrina católica exata sobre a graça.
São Fausto de Riez é o expoente máximo do semipelagianismo (De gratia Dei: PL 58, 783-836). Deus oferece igualmente a todos os homens sua graça salvadora, e aqueles que a recebem generosamente são os que se salvam. Portanto, estes não são propriamente eleitos de Deus (Rm 8,29), mas são eles que se escolhem a si mesmos, merecendo assim a salvação. A predestinação não é, portanto, senão a previsão divina daqueles que livremente vão receber a graça. E é a vontade humana que torna eficaz a graça, e que decide o grau de santidade final, de acordo com o maior ou menor grau de seu generoso esforço pessoal: “Regnorum cælorum vim patitur” (é o esforço que conquista o Reino celestial, Lc 16,16). No final do séc. V, apenas entre os bispos do sudeste da Gália foram levantadas vozes contra a doutrina semipelagiana de católicos tão fidedignos como Casiano, Vicente e Fausto. O De gratia de Fausto foi considerado pelo escritor Genadio de Marseille (+500), erudito sacerdote, como um “opus egregium” [n.d.t.: “excelente trabalho”].
Rejeição católica imediata. Também eram santos – e provavelmente mais santos, digo eu – os que refutaram imediatamente o semipelagianismo, como Santo Agostinho (+430), Santo Hilário (401-449), bispo de Arles, o monge São Próspero de Aquitânia (+450), grande defensor do agostinismo e São Fulgêncio (+533), bispo de Ruspe, no norte da África.
Também o Magistério pontifício, estimulado por esses autores, produziu ao longo do século V várias declarações contrárias ao semipelagianismo, reunidas em um documento, o Indiculus, que foi reconhecido por Roma por volta de 500 (Denz. 238-249). Mas o ensino mais perfeito da Igreja contra o semipelagianismo, na mesma doutrina do Indiculus, foi produzido no II Sínodo de Orange (529), pequena cidade no sudeste da França (Denz. 238-249). Foi presidido por São Cesáreo, bispo de Arles (+543), e confirmado pelo papa Bonifácio II (Denz. 370-397).
É significativo que tanto Hilário, como Próspero e Cesáreo, os três fossem monges de Lérins, e conhecessem bem a doutrina do “semipelagianismo”. Esse termo, por certo, surgiu muito mais tarde, quando aqueles que contradiziam a tese de Pe. Luis de Molina, S.J. (1535-1600), exposta em seu livro Concordia (1588), o acusavam de professar as sententiæ semipelagianorum, ou seja, de reviver os erros massilienses, já condenados pela Igreja.
Principais cânones do II Sínodo de Orange. O sofrido leitor me permitirá – à força – transcrever boa parte dos cânones deste maravilhoso Sínodo provincial (Arausicano). Sua doutrina foi especialmente levada em consideração nos debates do Concílio de Trento. Esses cânones devem ser lidos com muita atenção, porque (1) como é normal nos antigos sínodos e concílios, sua formulação é extremamente densa, precisa e concisa; e (2) porque afirmam algumas grandes verdades, muito esquecidas hoje até pelos católicos mais fiéis. Se hoje a maioria dos católicos não praticantes é apóstata ou pelagianos, boa parte dos praticantes é mais ou menos afetada pelo semipelagianismo. Temos de comprová-lo mais tarde. Atenção, então:
Can. 1 e 2: O pecado original existe, e não no sentido de Pelágio, mas no da Igreja.
Can. 3: “Se alguém disser que a graça de Deus pode ser conferida por invocação humana, e não que a mesma graça faz com seja invocado [Deus] por nós, contradiz o profeta Isaías ou o Apóstolo: “fui encontrado pelos que me não buscavam; claramente me descobri aos que não perguntavam por mim” (Rm 10,20; cf. Is 65,1)”.
Can. 4: “Se alguém insiste que Deus espera nossa vontade para purificar-nos do pecado, e não confessa que até o querer ser purificado se produz em nós por infusão e operação sobre nós do Espírito Santo, resiste ao mesmo Espírito Santo, que por Salomão disse: “a vontade é preparada pelo Senhor” (Prov. 8,35: em LXX), e ao Apóstolo que prega zelosamente: “Deus é o que opera em vós o querer e o executar, segundo o seu beneplácito” (Fl 2,13)”.
Can. 5: “Se alguém disser que está naturalmente em nós o aumento e mesmo o início da fé… se mostra inimigo dos dogmas apostólicos… “tendo esta confiança, de que aquele que começou em vós a boa obra, a completará até ao dia de Jesus Cristo” (Flp 1,6)… “A vós vos é dado por amor de Cristo não somente que creiais n’Ele mas também que sofrais por Ele” (1,29), e: “pela graça que fostes salvo, mediante a fé, e isto não (vem) de vós, porque é um dom de Deus” (Ef 2,8)”…
Can. 6: “Se alguém disser que se nos confere divinamente misericórdia quando sem a graça de Deus cremos, queremos, desejamos, nos esforçamos, trabalhamos, oramos, vigiamos, estudamos, pedimos, procuramos, chamamos, e não confessa que pela infusão e inspiração do Espírito Santo se dá em nós que creiamos e queiramos ou que possamos fazer, como se deve, todas essas coisas; e condiciona a ajuda da graça à humildade e obediência humanas, e não consente que é dom da graça mesma que sejamos obedientes e humildes, resiste ao Apóstolo que disse: “que tens tu, que não recebestes?” (1Cor 4,7), e: “pela graça de Deus sou o que sou” (1Cor 15,10)”.
Can. 7: É enganado pela heresia quem “afirma que pela força da natureza se pode pensar como convém, ou escolher algum bem que se relacione com a salvação da vida eterna, ou consentir à pregação salvífica e evangélica… “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5), e: “não que sejamos capazes por nós mesmos de algum pensamento (sobrenaturalmente bom), como vindo de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus” (2Cor 3,5)”.
Can. 8: Erra quem “insiste que possam vir à graça do batismo uns por misericórdia, outros, no entanto, por livre arbítrio… O próprio Senhor prova isso, atestando que não alguns, mas “ninguém pode vir a Mim, se o Pai que Me enviou o não atrair” (Jo 6,44); assim como ao bem-aventurado Pedro disse: “Bem-aventurado és, Simão Bar-Jona, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas meu Pai, que está nos céus” (Mt 16,17); e o Apóstolo: “ninguém pode dizer Senhor Jesus, senão pelo Espírito Santo” (1Cor 12,3)”.
Can. 9: “Sobre a ajuda de Deus. É uma marca do dom divino quando pensamos retamente e quando contemos nossos pés da falsidade e da injustiça; porque quantas vezes trabalhamos bem, Deus, para que trabalhemos, opera em nós e conosco”.
Can. 12: “Como Deus nos ama. Tal Deus nos ama, como devemos ser por seu dom, não o que somos pelo nosso merecimento”.
Can. 13: “Da reparação do livre arbítrio. A liberdade da vontade, enfraquecida no primeiro homem, só pode ser reparada pela graça do batismo. O que foi perdido não pode ser devolvido, senão por quem pode dá-lo. Daí que a própria Verdade diga: “Se o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres” (Jo 8,36)”.
Can. 18: “Que por nenhum mérito se precede a graça. Boas obras devem ser recompensadas, se forem feitas; mas a graça, que não é devida, as precede para que sejam feitas”.
Can. 20: “Que o homem não pode nada de bom sem Deus. Muitos bens Deus produz no homem, que o homem não faz; nenhum bem, no entanto, faz o homem que não outorgue Deus que o faça”.
Can. 22: “Do que é próprio dos homens. Ninguém tem de si próprio senão mentira e pecado. E se alguém tem alguma verdade e justiça, vem daquela fonte divina”.
Can. 23: “Da vontade de Deus e do homem. Os homens fazem sua vontade e não a de Deus, quando fazem o que desagrada a Deus; mas quando fazem o que querem para servir à vontade divina, mesmo quando fazem voluntariamente o que fazem, a vontade, no entanto, pertence Àquele por quem se prepara e se ordena o que querem”.
Can. 24: “Dos ramos da videira. De tal modo estão os ramos na videira que nada dão à videira, mas dela recebem do que viver”…
O Sínodo conclui com uma profissão solene da fé católica, escrita por São Cesáreo de Arles, na qual reafirma a doutrina conciliar, acrescentando mais argumentos e citações bíblicas. “Também professamos e cremos firmemente que, em toda boa obra, não começamos nós e depois somos ajudados pela misericórdia de Deus, mas que Ele nos inspira primeiro – sem que preceda bom mérito de nossa parte – a fé e o amor a Ele”.
Bonifácio II confirma o Segundo Sínodo de Orange (531: Denz. 398-400): “Vós definis que a reta fé em Cristo e o começo de toda boa vontade, conforme a verdade católica, são inspirados na alma de cada um pela graça de Deus preveniente”, portanto, “não há absolutamente bem algum segundo Deus que ninguém possa querer, começar ou terminar sem a graça de Deus”.
A primazia e a total gratuidade da graça de Deus é o que está em jogo nestas gravíssimas questões. É muito significativo que a Igreja tenha dedicado seus primeiros Sínodos e Concílios a definir, antes de tudo, as realidades mais importantes da fé católica: a Encarnação do Verbo, a Santíssima Trindade, a graça divina… O semipelagianismo – posterior ao pelagianismo, já condenado pela Igreja –, estimando que a graça de Deus é igualmente oferecida a todos, e que é a liberdade humana pessoal a que, com sua maior ou menor determinação, decide as boas obras, praticamente coloca a iniciativa da vida espiritual no homem. Consequentemente, a maior ou menor santificação da pessoa é principalmente uma questão de sua “generosidade” na colaboração com a graça. E consequentemente… etc. Já veremos isso.
Há alguns anos, em uma formação que dei sobre a graça divina a uma vintena de católicos especialmente qualificados, passei no início – confesso que com certa perversidade – um questionário prévio, com uma dúzia de frases (verdadeira/falsa) extraídas literalmente de Concílios, de São Fausto de Riez, de Santo Tomás de Aquino, etc. Creio recordar que havia entre eles três católicos, três pelagianos e quatorze semipelagianos.
Eu terei trabalho nos próximos artigos.
José María Iraburu, sacerdote.
[1] Artigos 56-60 do blog Reforma o apostasía. Acesse-os em: https://www.infocatolica.com/blog/reforma.php/1211240939-0-indice-del-blog-reforma-o-a
Traduzido por José Almeida Jr. a partir da publicação original em castelhano, disponível em https://www.infocatolica.com/blog/reforma.php/1002051032-61-voluntarismo-semipelagiano
Nota: esse artigo compõe uma série de cinco artigos sobre o voluntarismo semipelagiano – erro muito bem apontado pelo Padre José Maria Iraburu em seu blog – a qual publicamos aqui com o intuito de expor e afastá-lo dos católicos e apostolados hodiernos, conquanto divirjamos do pe. Iraburu ao tratar os lefebvrianos como cismáticos, como se vê em outros artigos do mesmo blog.