Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Voluntarismo semipelagiano (III) – Sintomas

Padre José María Iraburu.
Blog Reforma o apostasía, 13.02.2010.


Artigos anteriores desta série:

I. Semipelagianos antigos
II. Versões atuais

Tópicos deste artigo:

  • Antropocentrismo medíocre, vontade própria e mudanças de humor
  • Preocupações
  • Impossíveis a paz e a alegria inalteráveis
  • Fuga sistemática do martírio
  • Horror à cruz, buscando eficácias
  • Que tristeza

– Isso de sintomas soa a doença.
– E isso é precisamente o voluntarismo entre os cristãos fiéis, uma doença espiritual, cujos sintomas devem ser conhecidos, para alcançar a cura com a luz da verdade e a força da graça divina.

Semipelagianismo. Já vimos suas principais teses. Graça e liberdade, a parte de Deus e a parte do homem, concorrem, como causas co-ordenadas, para fazer o bem. É a ação do homem, cooperando com a graça divina, que a torna eficaz. Deus ama a todos igualmente, e a maior santidade é fundamentalmente determinada pela maior generosidade do esforço humano. A iniciativa da vida espiritual é realizada, de fato, pelo homem. Etc. Dessa doença espiritual, que nos bons cristãos poderíamos chamar simplesmente de voluntarismo, se seguem efeitos terríveis, que são sintomas próprios de uma doença grave.

Antropocentrismo medíocre, vontade própria e mudanças de humor. O voluntarismo mais ou menos semipelagiano é congenitamente medíocre, embora à primeira vista pareça às vezes o contrário. O voluntarista, não partindo da iniciativa de Deus, mas de si mesmo, de seu leal saber e entender – e atendo-se normalmente às suas inclinações pessoais – isto é, partindo de sua própria vontade, vai propondo-se certas boas obras concretas, assumindo que, uma vez que são boas, Deus necessariamente lhe dará sua graça para fazê-las. O voluntarismo pessoal ou institucional, partindo da iniciativa humana, ainda que inclua um belo conjunto de boas obras, sempre a estabelece proporcionalmente às forças do homem: daí sua mediocridade congênita. E assim o voluntarista vai levando adiante, como pode, sua vida espiritual, à sua maneira e modo de ser: em vão desencorajado quando não obtém sucesso e em vão satisfeito de si quando os cumpre.

Preocupações. Partindo o cristão na vida espiritual de si mesmo, é inevitável que viva tenso e preocupado. Não acaba por “fazer-se como criança”, para se deixar levar pacificamente pela mão de Deus, entrando assim no Reino de sua paz e alegria. Não termina de abandonar-se confiadamente à iniciativa, muitas vezes surpreendente, do Espírito Santo. Não põe seu maior empenho em discernir a vontade de Deus, às vezes tão contrária aos nossos intuitos. E nunca entende que a proa de seu navio deve sempre ser a oração da petição: “pedir luz para conhecer Sua vontade e a força necessária para cumpri-la” (Or. I dom. T.O.). Focado em si mesmo e em suas obras, não se centra em Deus e em sua obra. Não há como viver assim com a paz e a alegria própria dos filhos de Deus.

Mas não há sequer um problema de consciência sobre suas preocupações. Parece-lhe que na vida do homem, com tantas vicissitudes possíveis, favoráveis ​​ou adversas, elas são normais, isto é, são inevitáveis. Na prática, ele não crê que o abandono confiado no amor providente de Deus possa afastar toda ansiedade e inquietação, mantendo a pessoa em uma paz contínua e inalterável. Não intenta não se preocupar porque lhe parece impossível consegui-lo, nem mesmo com a ajuda da graça. Este cristão voluntarista ignora que a palavra de Cristo “não vos preocupeis” (cf. Mt 6,25-34), não é apenas um conselho, é um mandamento, e que Ele, com certeza, nos dá sua graça para poder cumpri-lo. As preocupações consensuais são, pois, pensamentos ruins, tão ruins quanto pensamentos obscenos consentidos. São matéria de confissão sacramental.

“Descarrega sobre o Senhor os teus cuidados, e Ele te sustentará” (Sl 54,23). “Quando se multiplicam as angústias do meu coração, as tuas consolações deleitam a minha alma” (93,19). “Encomenda ao Senhor o teu caminho, espera n’Ele, e Ele procederá. Descansa no Senhor e espera n’Ele” (36,5.7). “Logo que me deito, em paz adormeço, porque só tu, ó Senhor, me pões em segurança” (4,9; cf. 3,6).

Impossíveis a paz e a alegria inalteráveis. O voluntarista ignora que o homem não foi criado para querer autonomamente desde sua própria vontade, nem mesmo para querer coisas boas. Foi criado para querer o que a Vontade divina quer em sua providência. Ele deve querer, como dizia Santa Maravillas, “o que Deus quer, como Deus quer e quando Deus quer”. Qualquer vontade humana, desvinculada ou contrária à vontade divina, cria necessariamente no homem preocupações, ansiedades, medos, tristezas vãs, alegrias vãs… “Porca miséria”. O homem tem que querer tudo, só e aquilo que Deus quer: nem mais, nem menos, nada mais, não importa quão bom seja. “Seu alimento” deve ser fazer sempre, com a ajuda da graça, a Vontade divina, e não a sua, não importa quão “santa” ela seja – o que não pode sê-lo, se é própria – é tão difícil de entender?…

Fuga sistemática do martírio. O voluntarismo, em qualquer de suas formas – pelagiana ou semipelagiana – exclui por princípio o martírio, isto é, a Cruz de Cristo. A ruína do cristianismo no Ocidente nos últimos séculos vem principalmente deste erro.

Os católicos, como humildes discípulos de Jesus, sabem que todo bem é causado pela graça de Deus, e que o homem colabora na produção desse bem deixando-se mover livremente pela moção da graça, ou seja, se move movido pela graça divina. Deus e o homem estão assim unidos na produção da boa obra como causas subordinadas, na qual a principal é Deus e a instrumental e secundária o homem. Os cristãos fiéis à vontade de Deus movem-se movidos por ela, incondicionalmente, sem cálculos humanos de eficácia previsíveis.

Por isso, ao combater o mal e promover o bem sob a ação da graça, não temem ver-se marginalizados, presos ou mortos. Uma vez chegada a perseguição – que de uma maneira ou de outra é contínua no mundo – nem sequer passa pela cabeça deles pensar que essa fidelidade marcial, que pode lhes trazer desprezos, marginalizações, empobrecimentos, desprestígios e diminuições sociais ou mesmo a perda de suas vidas, irá parar a causa do Reino neste mundo. Estão certos de que a docilidade incondicional à graça de Deus é a mais proveitosa para a evangelização do mundo, embora possa eventualmente trazer consigo proscrições sociais, penalidades e morte. Estão, portanto, prontos para o martírio.

– O voluntarismo antropocêntrico, pelo contrário, produziu nos últimos séculos um falso cristianismo, que ignora a primazia da graça, a absoluta primazia da vontade salvífica de Deus – tão desconcertante às vezes: a Cruz. Muitos cristãos pensam que a boa obra, em última análise, procede apenas da força do homem (pelagianismo), ou, no máximo, que vem em parte de Deus e em parte do homem (semipelagianismo).

E logicamente, nessa perspectiva voluntarista, os cristãos, tratando de proteger sua parte humana, não querem perder a própria vida ou ver sua força e prestígio diminuídos; além disso, eles consideram impossível que Deus queira fazer bens que possam exigir marginalização, perseguição ou morte dos fiéis. Deus “não pode querer” sob nenhuma circunstância que o homem arranque seu olho, mão ou pé (Mc 9,43-48), pois essa diminuição da parte humana enfraqueceria necessariamente a obra de Deus no mundo.

Consequentemente, evitam seja qual for o martírio, em consciência, em qualquer de suas formas. Tentam, por todos os meios, estar bem situados e considerados no mundo; procuram, tornando-se cúmplices ao menos passivos de tantas abominações mundanas, estar bem com os poderosos do mundo presente. Dessa maneira, eles podem servir melhor ao Reino de Deus na vida atual. “salvando sua vida” neste mundo, esperam conseguir que sua parte humana colabore melhor e mais efetivamente com a parte de Deus na salvação do mundo.

Igualmente a Igreja e cada cristão devem evitar qualquer confronto com o mundo, evitando qualquer atitude que possa desacreditar o Evangelho diante dos mundanos, ou dar origem a perseguições, pois uma Igreja enfraquecida e martirizada, enfraquecida em sua força humana, não será capaz de colaborar efetivamente com Deus, não poderá servir no século atual à causa do Reino. Tudo o que é uma perda de influência social, de possibilidade de ação, de imagem atraente, é uma miséria, não tem graça alguma. O martírio faz mal até à saúde… Assim pensam sob a influência do Pai da Mentira.

A Igreja voluntarista, colocada no mundo em transe do Batista, diz para si mesma: “Não direi a verdade ao rei, porque se o fizer, ele cortará minha cabeça e não poderei continuar evangelizando. Devo proteger antes de tudo o ministério profético que Deus me confiou”. Quantos bispos, párocos, teólogos, pais de família, professores, missionários, leigos comprometidos e paroquianos de todo tipo pensam e agem assim! Pelo contrário, sabendo que a salvação do mundo é obra de Deus, a Igreja, a verdadeira Igreja de Cristo, diz e faz a verdade, sem medo de parecer pobre e marginalizada. E é aí que, sofrendo perseguição, evangeliza o mundo: “não é lícito que você tenha a esposa de seu irmão”.

Horror à cruz, buscando eficácias. Os cristãos afetados pelo pelagianismo ou semipelagianismo, por seu caminho, tão razoável, vão pouco a pouco, quase insensivelmente, alcançando silêncios e cumplicidades cada vez maiores com o mundo. Vemos isso em uma de suas formas mais escandalosas em muitos “políticos católicos”, absolutamente estéreis para a causa de Cristo. Eles querem guardar a cabeça apoiada nos ombros e manter seus assentos… Cessa então a evangelização dos povos, das instituições e da cultura. É assim que agem aqueles que disseram estar determinados a impregnar do Evangelho todas as realidades temporais!

Não será incomum assim que o avô, um piedoso semipelagiano conservador, tenha um filho pelagiano progressista; e é provável que o neto desça mais um passo e chegue à apostasia. De todos os quais falo mais plenamente em dois livros, Cristo ou o mundo e O martírio de Cristo e dos cristãos.

Quando o bem e o mal são ditados pela maioria – seja uma maioria real ou fictícia, induzida pela mídia e pelos poderes políticos martírio aparece como uma opção mórbida e excêntrica, oposta ao bem comum, insolidária com a sociedade em geral. Os cristãos semipelagianos não querem, de maneira alguma, enfraquecer a parte humana com a qual pretendem colaborar com o Salvador: ficam calados, disfarçam-se e fazem o que for preciso “para não serem perseguidos pela cruz de Cristo” (Gl 6,12). Reconheçamos que esse erro grave costuma ser inculpável em bons cristãos, porque sofrem uma “ignorância invencível”, de fato invencível neles, porque ninguém lhes disse a verdade evangélica. Mas outras vezes é culpável, quando se envergonham do Evangelho e do Magistério apostólico: silêncios clamorosos, contracepção habitual, cumplicidades com o poder político perverso, conflito de valores, moralidade de atitudes, opção pelo mal menor, situacionismo, consequencialismo, etc.

De acordo com essa visão, o bispo, o reitor de uma escola ou de uma universidade católica, o político cristão, o pároco de sua comunidade, o teólogo moralista em seus escritos, é um cristão não apresentável, que não está à altura de sua missão, se pelo que diz ou faz causa grandes perseguições do mundo . Com suas palavras e ações, é evidente, ele desprestigia a Igreja, causa ódios e desprezos do mundo, portanto atrapalha as conversões e é causa de divisões entre os cristãos. Deve, pois, ser silenciado, marginalizado ou retirado pela própria Igreja. Embora o que eu digo e faço seja verdade e bom, mesmo que seja o mais puro Evangelho, mesmo que mantenha perfeita fidelidade à tradição católica, mesmo que diga ou faça o que todos os santos disseram e fizeram. Fora com ele: não queremos mártires. Na vida da Igreja os mártires são uma chatice, uma vergonha, um desprestígio. Eles não devem ser tolerados, mas efetivamente reprimidos pela própria Igreja.

Que tristeza. Se o martírio implica um fracasso total – a cruz do Calvário – se consiste em sofrer uma rejeição absoluta do mundo, é claro que o martírio é algo sumamente mal, algo a ser evitado como seja. Para o mesmo bem da Igreja. Alguns cristãos tolos podem pensar que a Igreja que evita o martírio, a que “guarda sua vida” neste mundo, será uma Igreja próspera, atraente e alegre na vida atual. Mas isso é como supor que a esposa infiel, que se entrega ao adultério, será uma mulher feliz. Não, é exatamente o oposto, é uma mulher muito triste. O que alegra o coração humano é o que vem de Deus: o amor, a fidelidade, a abnegação, a rendição no amor. Pelo contrário, a infidelidade é uma traição ao amor e só pode trazer tristeza. Os mártires são alegres e os apóstatas são tristes. “Em verdade, em verdade vos digo que, se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto. O que ama a sua vida perdê-la-á; e quem aborrece a sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna” (Jo 12,24-25). É assim. É a palavra de Cristo.

José María Iraburu, sacerdote.


Traduzido por José Almeida Jr. a partir da publicação original em castelhano, disponível em https://www.infocatolica.com/blog/reforma.php/1002131116-63-voluntarismo-semipelagiano-2

Nota: esse artigo compõe uma série de cinco artigos sobre o voluntarismo semipelagiano – erro muito bem apontado pelo Padre José Maria Iraburu em seu blog – a qual publicamos aqui com o intuito de expor e afastá-lo dos católicos e apostolados hodiernos, conquanto divirjamos do pe. Iraburu ao tratar os lefebvrianos como cismáticos, como se vê em outros artigos do mesmo blog.