Jackson de Figueiredo
Minas como centro do que se pode chamar, no domínio moral, o sistema brasileiro, acaba de dar mais uma prova formidável de que não é vã a afirmação de que já temos um caráter próprio, e a consciência do que somos. Pode-se dizer, sem medo de errar, que é à existência desse bloco central, de cinco ou seis milhões de brasileiros, verdadeiramente brasileiros, protegidos contra o Oceano desnacionalizador, e traduzindo na sua vida social e política a média entre os nossos excessos ao Norte e ao Sul do país, que devemos a perpetuação das nossas tradições em toda a sua pureza e integridade, isto é, como forças reais nascidas da experiência coletiva, provadamente vivificadoras. Porque, o que não é raro esquecer é que como diz Petitot na sua admirável “Introdução à Filosofia Clássica ou Tradicional”, “a tradição não se impõe só porque seja tradição. Não é por que sejam tradicionais, que as opiniões são razoáveis; é porque são razoáveis que elas são tradicionais”.
É assim que Minas pode com orgulho proclamar-se entre nós a terra católica por excelência, por mais falhas que apontem nos elementos formais da sua vida religiosa. O sentimento mineiro é essencialmente católico e, daí, a prudência e a finura, um certo ar de bonomia, que mal encobre a firmeza e a determinação do filho de Minas, e, deste, passam a informar toda a coletividade mineira caracterizando-a, em todas as suas vitórias sobre expressões de aparência mais enérgica e mais viva da vida nacional.
Vejamos quantas vezes, por exemplo, a história política brasileira terá tido uma representação tão séria e tão profunda, tão natural, tão edificante, como a que Minas acaba de dar-nos, num simples quadro festivo, como foi esse da posse do Sr. Antônio Carlos.
É o Episcopado mineiro que se move para, no próprio coração político do grande Estado, traçar os sinais misteriosos da benção; é um governo que se inicia sob o fulgor da palavra cristã, experiente de dois mil anos de luta contra todas as “moléstias crônicas” do espírito humano. É mais ainda: é o próprio chefe de Estado quem deseja que essa palavra, fugindo a toda indeterminação, delimite, sobretudo, “os deveres do homem público revestido das funções do poder”, e, como remate àquela profissão de fé coletiva, é ele ainda, o mesmo homem de governo, quem se felicita de compreender o que o poder civil deve à Igreja Católica na grande obra de civilização que o povo mineiro tem edificado.
Não é ao venerando arcebispo de Diamantina – tão ilustre pelas virtudes da inteligência como pelas do coração – que me cabe aqui focalizar.
Falou como príncipe da Igreja e como quem à majestade das graças do seu estado, junta o saber, a cultura moral e política que só esta Igreja a que pertence pode oferecer, verdadeira cultura, corpo, em toda a sua perfeição de unidade e não inorgânico ou mal argamassado montão de ideias e semi-ideias, sem filiação histórica, sem testemunho de experiência, sem vida interior.
O que aqui me cabe assinalar é a palavra do homem de Estado que indiretamente, em lembrar-se talvez de tais lezírias da vida política americana, castiga, das alturas da terra brasileira, os pedantocratas, cruéis ou simplesmente imbecis, que ousam levantar contra a escola de disciplina a que a América deve a alma que tem – porque não se há de considerar a sua alma essa ou aquela expressão mais persistente do instinto depredador e infamatório – a mão sacrílega do selvagem redivivo…
Antônio Carlos, tão fúlgida quão discreta e, por isto mesmo, poderosa representação da cultura política brasileira é assim que os fulmina, a esses inimigos pérfidos ou ridículos da civilização americana:
O governo temporal em Minas, no passado e no presente, está preso, pelo maior reconhecimento, à ação benemérita daqueles a quem a sabedoria do Santíssimo Padre tem confiado a direção espiritual dos mineiros.
Do sucesso político que, no Império e na República, tem coroado, sobretudo no terreno moral, o esforço dos que nasceram e vivem em meio das nossas queridas montanhas, sempre foi e vai sendo fator preponderante a atuação do nosso episcopado, por si e na diretriz com que orienta o clero católico.
Pregando o acatamento às leis, o respeito às autoridades constituídas e a observância dos deveres que incumbem aos cidadãos, no lar e na sociedade, os príncipes da Igreja, em nossa terra, têm concorrido, decisivamente, para a formação do caráter patriótico, que, transmitido de geração em geração, permite ao povo mineiro orgulhar-se do patrimônio moral e cívico que pôde até agora constituir.
E, por fim, resumo da experiência de quem traz no sangue a energia educada, a calma, a serena, a lúcida e provada energia de três gerações de edificadores da América, a afirmação categórica:
Errará gravemente o governo que não se utilizar da grande força que é a religião, para levar avante todas as construções que idealize e se proponha realizar.
Não faz muito tempo, no outro extremo do Continente, o Chefe de Estado da maior, da mais forte da mais progressista nação americana, o presidente Coolidge, não falava de outro modo:
Se pôde o nosso país alcançar algum sucesso político, se vive o nosso povo apegado à própria constituição, é porque as nossas instituições estão em harmonia com as suas crenças religiosas.
Daí a importância da vida religiosa da Nação. Assegura-lhe livre exercício o estatuto fundamental do país. Se progrediu a América, no terreno econômico, se é ela hoje em dia a mansão da justiça e da liberdade, é graças às profundas convicções religiosas do seu povo.
Jamais me cansarei de reproduzir palavras como estas.
E entre a América livre e o Brasil livre, que poderá surgir na terra americana que possa pretender ferir de morte o espírito civilizador, a majestade e a força do cristianismo?
Não. A história da humanidade não é a “rudis indigestaque moles” que Brunetiére apontava àqueles que esquecem que só a Providência, que só a sua hipótese, pelo menos, é condição de inteligibilidade desta mesma história.
E o homem de Estado, isto é, o homem que se torna fator direto da história, não é digno de ser respeitado, se olha a vida dos homens como coisa ininteligível, como vaga monstruosa e sem sentido, de interesses e paixões.
E o povo que suporta o jugo desses cegos perigosos, pobre povo esse, lastimável é a sua vida, e triste o seu destino, se Deus mesmo não lhe desligar as mãos, e não lhe quebrar tão desmoralizantes algemas.
Felizmente, o Brasil parece livre para sempre de tiranias tais contra a sua consciência de povo cristão, e o exemplo agora de Antônio Carlos abre perspectivas ainda mais gloriosas à divina modeladora do nosso caráter social.
Do Brasil, se não se pode afirmar que é um país civilizado de norte a sul, em toda a extensão do seu território, pode-se dizer, pelo menos, que já possui uma civilização, e perfeitamente caracterizada. E esta é a que tem a sua mais perfeita expressão em Minas Gerais.
Gazeta de Notícias, 15 de Setembro de 1926.