Ele há de ser sempre, esse partido, onde quer que, atualmente, se forme, por toda a superfície da terra, o daqueles que, desilusos de todas as maiúsculas do racionalismo de feira, tenham a dignidade de confessar o grosseiríssimo erro em que se sentiam morrer para as mais nobres aspirações da alma, de confessar, por exemplo, que muito mais que a tal Liberdade (com l grande) vale uma só das liberdades que qualquer espécie de governo, organizado sob a inspiração do pensamento cristão, lidimamente cristão, sempre assegurou todos os homens de bem. E é justamente todo aquele ser que, se sabendo capaz de livre determinação na ordem moral, dentro dela soube apreender a significação superior da vida em sociedade, que requer leis e o respeito a elas, mesmo quando aparentemente ou realmente são injustas.
O homem de bem não as transgride nunca, porque sabe que a ordem social sofrerá mais do que uma violenta destruição do erro, que nela se infiltrou, do que da sua conservação, por mais algum tempo, mas sempre passageiramente, pois é certo, todos os homens devem ter a certeza inabalável de que o erro não resiste à ação da verdade. Esta é eterna e o erro só tem por si algumas horas do tempo, que passa.
A vida em sociedade, seja qual for a organização desta, há de conter sempre injustiças, porque toda a obra reflete as qualidades do material de que é feita, e o homem foi, é e será, até que Deus lhe mostre a saída deste terrível mistério, que é o da sua atual existência, um ser dotado da mais clara luz e envolvido na mais densa treva, um ser pecaminoso, um ser sofredor e ambicioso, capaz de todas as virtudes e sempre sujeito às baixas inclinações, amante da verdade e adorador de si próprio no altar de cada um dos seus erros.
A história é, porém, como que a experiência da razão social em marcha ascendente para o ideal da sociedade cristã, e o homem de bem, o que se fila a esse partido da experiência, é aquele que tem a irredutível convicção de que o erro será vencido onde quer que se apresente, vencido, não por outro erro, como a violência, os atos de força bruta, mas pelo protesto sereno das consciências, pelo sacrifício de todo egoísmo, pelo exemplo de obediência ao princípio que, momentaneamente, parece protegê-lo, mas não pode impedir que como erro seja visto e combatido, no terreno da discussão, da análise depuradora, que é o que constitui mesmo a vida normal das sociedades.
O pior dos males sociais tem sido e para sempre será a Revolução, a perturbação dessa normalidade, que não é o morno apodrecimento do organismo social, mas a plenitude da sua vida regulada pelas leis da razão histórica. Estas leis podem falhar aqui e ali, na sua aplicação, mas, por isto mesmo que são leis, leis imortais, não há que temer que não reconquiste o terreno perdido, que não refaçam a parte deteriorada desse tecido de justiça, que deve ser o da sociedade como ser vivo e inteligente.
Mas é certo que uma lei qualquer, tanto no mundo psíquico como no mundo moral, não é repentinamente que se impõe, em toda a sua extensão, ao conhecimento dos homens. Ela também tem a sua história, que é a história do desenvolvimento do espírito humano no sentido que ela orienta. É primeiramente, a simples verificação da constância de certo fenômeno, após, a sua generalização, e ainda depois a apreensão das suas consequências, neste ou naquele domínio da vida.
As leis da razão histórica, as leis que a experiência dos séculos há verificado, são, pois, como os dogmas, necessidades permanentes do espírito humano, que como que lhe servem de lastro para que navegue com mais segurança pelo mar eternamente desconhecido, através do qual busca a realização dos seus ideais.
Também como os dogmas jamais se transformam ou envolvem, mas como dizia o grande pensador norte-americano, nós é que nos envolvemos dentro deles, conhecendo-os melhor, penetrando mais sabiamente a sua íntima contextura.
Por conseguinte, dirá todo homem que de corpo e alma se dê a esse partido da experiência: “Se tenho a certeza de que é possível uma bem, mas elevada justiça social, quem primeiro dela se deve mostrar crente, sou eu próprio, e a minha atitude prática deve ser igual a do sábio no seu laboratório, que não será com blasfêmias, gritos e revoltas que seguirá nas suas pesquisas, mas com obediência às leis que regulam as relações entre a sua subjetividade e o mundo exterior, com paciência entre as falhas do seu próprio instrumento e as esquivanças da luz, e a complexidade perturbadora das relações que vai descobrindo e demonstrando-lhe a ingênua simplicidade das suas primitivas ideias”.
Quem quiser resumir, por exemplo, a história do mundo ocidental, fará a verificação de que estas são as suas linhas gerais: – As injustiças naturais de uma civilização que a Igreja Católica, pouco a pouco, conseguirá impor, a custo do mais terrível esforço intelectual, a custo dos mais ingentes sacrifícios e dos mais nobres martírios, a um mundo cujos principais elementos eram as perversões da sociedade pagã em decadência e os agressivos instintos do bárbaro, essas injustiças, pretenderam os chefes vitoriosos do monstruoso crime, que foi a Reforma, destruir pela violência das paixões desbridadas, que eram então tudo quanto se chamava Razão, Consciência moral, Liberdade religiosa.
Pode-se dizer que, pela primeira vez, assim, vitoriosamente, ressurgiam as mesmas perversões da decadência Greco-romana e a grosseria sensual do bárbaro, na órbita do mundo cristianizado. A Revolução substituiu a persuasão, a luta doutrinária, as pacíficas transformações do direito na esfera social, e de novo se viu predominar o cezarismo em política e o individualismo mais desenfreado, mais caracteristicamente pagão, em todos os departamentos da vida social. A revolução francesa nada mais fez que universalizar esse horrível crepúsculo da inteligência humana, que, desde então, se deixou ficar em segundo plano, no mesmo cenário em que imperam, em seu nome, todas as baixas instintividades em luta que não cessa, contra todas as conquistas de uma civilização racional, feita de observação, experiência e bom senso, no domínio intelectual, de moralidade e sacrifício, no domínio moral, de atividade informada por tudo isto no domínio prático, propriamente econômico. Mas dessa região crepuscular há de sair a razão humana e ainda aqui mesmo analisaremos os dados com que devemos contar para essa salutar reação, contra os instintos revolucionários do paganismo sobrevivente, mas ainda – veremos – não vitorioso – e nem mesmo convicto de que o será – dessa eterna seiva cristã de que realmente vive tudo o que há de verdadeiramente forte e são neste mundo.
Jackson de Figueiredo, 26 de março de 1922.