Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Jackson de Figueiredo

Ainda não é a tristeza. Ainda não é a melancolia, esperança do consolo. Por ora é a dor que dilacera, a dor que torna a gente incapaz de pensar e que procura o silêncio. Era o silêncio que eu queria guardar agora sobre a morte de meu grande amigo. O silêncio que ele guardou quando morreu Mario de Alencar. Quantas vezes me disse ele não ter conseguido nunca escrever qualquer coisa sobre Mario. A saudade era mais forte, como agora é mais forte do que tudo o que me vem ao coração. E não sei como poderei arrancar algumas palavras à sombra imensa que me envolve. Aqueles que o conheceram me compreendem. E aqueles que não o conheceram precisam compreender.

Jackson de Figueiredo foi o nosso grande incompreendido. Fora do pequeno círculo daqueles em quem ele sabia despertar as amizades mais ardentes, as dedicações mais absolutas, pois nunca houve um criador de amigos igual a ele – longe desse círculo de chamas descia sobre ele a nuvem mais espessa das incompreensões. E que ele sequer não procurava pelo amor das situações definidas, dos limites precisos e claros.

Não era possível a indiferença perante ele. Ou a dedicação ou o retraimento. Ou na luz ou na sombra. Pois em todas as coisas, tanto em sua vida como em seu pensamento, ele foi o grande definidor, aquele que fez da definição dos deveres a própria raiz de sua atitude perante a vida.

De modo que, visto de longe, visto de fora da zona luminosa em que irradiava aquela misteriosa faculdade de atração que possuía como ninguém – os homens o julgavam apenas pela coragem de suas atitudes, pela dureza das verdades que proclamava, pela intransigência dos seus princípios.

E faziam dele o intolerante, o dogmático, o reacionário, capaz de todas as violências e pactuando com todas as opressões.

E era de ver então o imenso sorriso de desdem com que ele contemplava a incompreensão que o cercava, as calúnias de que era vítima, as ameaças que recebia. Parecia um orgulhoso ou um estoico. Seguia impávido e tranquilo, tanto mais tranquilo de aparência quanto maior era o borborinho que subia contra ele.

E, entretanto, no fundo de sua alma não havia nem orgulho nem estoicismo. Havia apenas o mais humano dos homens.

UM HOMEM

Pois eu confesso que nunca vi até hoje uma alma que me desse mais o sentimento da nobreza e do infinito do ser humano do que a dele.

Estou certo de que aqueles que me estão lendo e o não compreenderam (ou pensam que o compreenderam) estão achando exagerado o que estou dizendo. E, entretanto, eu juro que não é. Eu quisera ter forças, ter lucidez, ter talento bastante para convencer aqueles que de boa fé o desconheceram em vida. Eu quisera mostrar que tudo aquilo que parecia criar em torno dele uma aura de irritação e de afastamento, tudo aquilo escondia o coração mais dolorosamente vivo, o coração mais tragicamente vivo que jamais pulsou no Brasil.

Pois o que havia nele, acima de tudo, era esse gênio de vida, essa ânsia das fontes puras, das almas sinceras, dos sofrimentos reais. Quando nós dizemos dele que foi um realista, não queremos apenas dizer que a sua visão política era uma visão direta das nossas realidades, era a oposição a todo romantismo, a toda ideologia, a todo libertarismo individualista. O que queremos dizer é que ele amou a Realidade acima de tudo, em todas as coisas, em todas as pessoas.

A realidade e a pureza. Tudo o que era dúbio, morno, falso, tudo o que fugia à exibição patente das raízes, que traía a insinceridade, a ausência de convicções, o interesse egoísta – tudo isso lhe parecia uma traição à vida, uma traição à lei divina da Vida.

E daí a coragem inaudita com que foi subindo, passo a passo, o seu Carmelo interior.

Pois a sua vida interior foi a vida mais dramática que é possível concebermos. Se Deus me der vida para publicar a sua correspondência íntima, é possível que nesse dia as suas próprias palavras consigam dissipar as incompreensões, e marcar o lugar de relevo excepcional que o seu nome merece na história de nossas letras. Em suas cartas é que estará refletido o que foi a sua vida verdadeira, o que foi o drama tremendo de sua vida.

Pois nesse homem de aço, nesse lutador que, na hora do perigo, quando era preciso expor a sua vida, estava sempre na primeira linha, destemido, intrépido, incapaz de uma hesitação – nesse soldado incomparável havia uma alma de criança, uma alma de poeta delicadíssimo, uma alma de boêmio. As coias mais contraditórias se juntavam nessa alma de uma complexidade infinita, de uma integralidade assombrosa.

Ah, bem podemos dizer dele que nada do que é humano lhe foi estranho! O maior elogio que se podia ouvir de sua boca era dizer de alguém que era – um homem.

Quando encontrava um homem, uma fonte de vida, uma centelha real de verdade, não indagava se pensava ou não como ele, e fechava os olhos a tudo o que o farisaísmo vulgar repele com precaução. Era um homem e bastava, uma imagem viva de Deus, uma qualquer coisa de verdade, dessa verdade que foi sempre a luz de sua vida.

Porque, a meu ver, aquilo que ele deu à nossa geração, acima de tudo, foi o amor à verdade.

O AMOR À VERDADE

A obra de regeneração que ele operou, a obra de impregnação no espírito de nossa mocidade, dos homens da geração de antes da guerra, como das novas gerações que vão surgindo – pois uma alma como a dele só estava bem entre os moços, não apenas os moços de idade e sim todos aqueles que tivessem uma alma moça, livre e desinteressada – essa obra de renovação foi essencialmente a de restabelecer o gosto pela verdade.

E nisso está, creio eu, o sentido profundo de sua obra. Num país de indiferença e de acomodações, numa mocidade como a de seus companheiros de geração, toda ela corroída de ceticismo, numa era de decadência sutil e de abandono – ele soube reinstalar o amor à verdade, a inteligência da verdade. Pois o estado a que tinha chegado essa nossa geração dos sacrificados, como ele dizia sempre de nós, era justamente o de preferir a dúvida à verdade, por nos parecer a atitude de duvidar mais inteligente que a de afirmar.

O efeito de sua ação patente, e sobretudo de sua ação obscura, foi o de restabelecer a inteligência da verdade. E assim vencer o ceticismo nas suas fontes mais perigosas e ocultas.

E daí a sua obra incansável de restaurador da Fé. Foi o seu amor à vida e à pureza, foi a sua dedicação inabalável à pesquisa de todas as realidades, que o levou à Grande Realidade, à verdade integral. Nunca se contentou com meias verdades. E a sua volta à Igreja Católica representou um ato de fé na verdade integral. Foi um alargamento de sua visão da vida, o desdobramento máximo de toda a sua compreensão do universo.

Mas deu esse passo definitivo, sem cortar senão as amarras com as forças negativas, com as forças destruidoras. Conservou, ao contrário, na obediência absoluta as doutrinas mais puras, mais ortodoxas da Igreja Católica, todas as ligações com a vida, com os recantos mais humildes e obscuros da vida. Ele amava sobretudo os homens simples e as coisas esquecidas. Lembro-me bem que, em uma de suas cartas de há poucos meses, ele interrompia bruscamente o que vinha dizendo, para meditar sobre um pequeno inseto, imperceptível, que ia passando por sobre o papel da carta. E não pôde continuar a dizer o que queria. Pois imediatamente aquela imensa capacidade de transcendentalização, que ele levava sempre às coisas mais banais da existência, o levou, por sua vez, às meditações profundas sobre a existência, a propósito desse mísero inseto quase invisível que cruzou com a sua pena.

Tal a superioridade que ele deu sempre a mais miserável das vidas, em comparação com as mais brilhantes das ideias. Nada o seduzia que não fosse a expressão real, autêntica, primordial da vida.

UMA ALMA VIVA

E por isso foi a alma mais viva que jamais conheci. A alma em cujos abismos interiores se chocavam sempre as ideias contraditórias, os sentimentos mais complexos, as aspirações e as resignações mais absolutas. Vivia entre o tudo e o nada. Mas não entre os extremos. Vivia os extremos. Tinha acesso de impulsividade terrível e ao mesmo tempo a mais absoluta negação de si mesmo, o dom mais desinteressado de si mesmo a todas as causas nobres e justas.

E daí a idealidade absoluta do seu realismo. Nunca pensou em si senão para dar de si. Nunca procurou o seu próprio bem, senão em função de algum bem maior, dos seus amigos, da sua pátria, da Igreja de Cristo.

E só os que tocaram de perto essa capacidade incomparável de ser bom, sem que fora soubessem que ele era um bom, só os que se queimaram um pouco e se aconchegaram muito a essa lareira sempre crepitante de amizade quase inconcebível – o que pode saber que as minhas palavras não são as palavras da amizade e sim as da verdade, as da verdade mais patente aos olhos dos homens que querem ver.

Jackson de Figueiredo, o nosso Jackson, morreu na miséria. Mas deixou atrás de si alguma coisa de infinitamente mais nobre – um grande exemplo. Oxalá possamos meditar profundamente o que ele foi para cada um de nós em particular, e o que representou, em geral, para a sua geração o que só o futuro poderá compreender integralmente.

Oxalá saibamos todos viver como ele morreu – lutando contra as ondas.

Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde)

O Jornal, 6 de Novembro de 1928