Jackson de Figueiredo.
Há pouco tempo, quando um senador da República, mais do que sensatamente, repudiou em alto e bom som a gritaria das ruas como colaboradora dos nossos destinos políticos, foi formidável a grita, não das ruas, mas de todas as galeias de uma desenfreada politicagem capaz de invocar até mesmo as fúrias populares, em prol das suas próprias contrariadas ambições.
Disse-se de quem ousava renunciar o veneno das revoluções como perigosíssimo meio de salvação social, tudo quanto se pôde dizer de um inimigo do povo, fazendo-se a este, ao povo, que é o trabalho, o esforço humilde, dentro da ordem, a injustiça de o confundir com os gritadores da rua, os desordeiros de toda espécie, a espuma negra de todas as sociedades, fermento de todas as revoluções, instrumento de todos os exploradores políticos…
Ora, devem todos esses empresários de má sorte compreender que, de fato, os tempos estão mudados, mas não no sentido que supõem.
Passou, realmente, a época tão necessária do absolutismo e das aristocracias de sangue, mas já vai longe também a da crença ingênua e sincera nos “sagrados princípios” da demagogia, que ensanguentou o mundo, sem que, no seu monstruoso altar, se levantasse a imagem de um só verdadeiro heroísmo, de uma só nobilitante virtude, dignos do sangue derramado.
Aquele triste politicoide que ainda invoca “a gritaria das ruas” como força de remodelação social, não é mais, hoje em dia, que um simples “retardatário”, e, com certeza, está mais divorciado do espírito dos nossos dias que os que pregam, a todo transe, a reação antidemocrática ou falando mais claro, a reação antidemagógica.
Sejam quais forem as formas sociais latentes neste pandemônio, nesta tortura, nesta agitação do “après la guerre”, a verdade é que só uma coisa se faz evidente: que a sociedade se renovará dentro de mais amplo quadro de valores práticos, úteis, e que a política perderá, por força, seu excessivo caráter teórico, pasto de todos os parasitismos, para voltar às suas leis tradicionais da razão e da experiência, isto é, nascidas de princípios universais e apoiadas na tradição, que é a filosofia mesma dos povos dignos da vida.
É neste sentido que nós estamos, se não já a ouvir, pelo menos, na véspera de “L’Éclat de rire de la raison” ante si mesma…
Creu demasiado nas suas forças, acreditou poder sobrepor-se às misteriosas tradições de autoridade na economia da vida social, e o resultado foi que em seu nome “todos os crimes foram cometidos”, e passou a ser o joguete dos mais baixos instintos de todos os audaciosos…
Ao clamor de tantas vítimas acordou a razão e viu bem claro ou está a ver bem claramente que estivera adormecida e, em seu nome, fora a imaginação, fora o orgulho satânico da imaginação o que governara o mundo…
Realmente, como pensa Maurras, um ateu penitente, “a grande condição do sucesso, de dois séculos a esta parte, parece ter sido deslocar, a todo instante, os polos do pensamento; não se conseguiu ser ouvido do público senão criando inteiramente uma constituição política, um systeroa do universo, erigindo em lei os caprichos da imaginação”.
Não somos nós, felizmente, os dogmáticos, os que hoje se honram de “medievante”, não somos nós, os católicos, os que pregam o retorno à tradição, o amor da autoridade, o respeito aos dogmas que essa mesma tradição encerra…
É a voz do positivismo francês, do ceticismo filosófico, cansado de tantos arrojos teóricos, que se faz ouvir e ousa até, não confundindo mais liberdades políticas com Liberdade como princípio de vida social, lançar os piores apodos contra essa crudelíssima deusa da Enciclopédia e da Revolução.
A razão – diz aquela voz – só é razão quando a si própria se limita, quando reconhece que todo o seu trabalho só é útil sobre uma base de fé, quando não desrespeita os marcos dogmáticos de uma tradição religiosa e política, cuja formação se perde na origem dos séculos.
A liberdade como princípio organizador é uma quimera, não existe na história, é força, por conseguinte, destruidora.
“Tem o seu trono ao fundo das regiões inferiores, próximo ao chão e às forças elementares; o que trabalhe e cresce, o que se eleva e se ordena, o que forma as fôrmas da perfeição, é também o que consentiu no entrave e na medida, o que se sujeitou ao sublime freio da lei.”
Não é essa voz como o sinal dos tempos, partida de quem parte?
Como resistir a esta força de bom senso, que sucede sempre aos paroxismos de dor, às grandes provações?
Será invocando a gritaria das ruas? Poderá ela abafar o coro de vozes mais serenas, mais altas, mais nobres? Perniciosa ilusão! É certo que nunca sociedade alguma foi governada dez dias por essa vasa de ambições sem sentido. É certo que, do meio dela, quando alguma vez vitoriosa, jamais deixou de surgir o seu dominador natural, o homem – cristalização de todas as suas penas e todos os seus crimes, aquele ser tenebroso, mas ao mesmo tempo providencial, que se constitui, imediatamente, aliança entre o passado e o futuro, no mais tremendo castigo ao presente, que o elevou.
Napoleão, Lênin… terríveis instrumentos da necessidade social… Quem não pôde descobrir as suas “figuras”, sobrepondo-se às agitações do passado helênico, da decadência romana?
E será, agora, após a mais tremenda provação por que tem passado a humanidade, que meia dúzia de profissionais da politicagem, venha exaltar a revolta e o tumulto como dignos de acatamento?
Quem poderá levar a sério tais declamadores? O povo? Mas é este quem mais cansado já deve estar das encenações ridículas e sangrentas em que, horas após a fogueira dos ódios que se satisfazem, se vê ainda mais pobre, mais degradado, mais desprezado.
É preciso ter coragem de amar este mesmo povo com a rudez de quem dele faz parte e não lhe fala com segundas intenções; é preciso dizer-lhe a verdade, nua e crua, dizendo-lhe, por exemplo, que é desprezível a gritaria das ruas, que desconfie dos que fazem profissão de amá-lo e bajulá-lo…
A verdade é que só verdadeiramente lhe deseja o bem aquele que se coloca acima dos seus louvores e é capaz de ainda hoje repetir serenamente a canção do Infante D. Pedro:
No amo ni punto el amor popular
nio leo quien mucho en el se confia…[1]
29 de julho de 1921.
[1] “Não amo nem um pouco o amor popular, nem aquele que nele muito se confia”.
Nota: longe de termos por Jackson de Figueiredo uma espécie de afeto que nos tornasse acríticos em relação ao nosso patrono, afirmamos que ele, muito provavelmente devido a circunstâncias pessoais — como sua conversão tardia e morte prematura — e ao momento histórico em que vivia, deixou-se influenciar por escritores daninhos, entre os quais estão Charles Maurras, Blaise Pascal e Joseph de Maistre. Publicamos os artigos a título de peça histórica, sem endossar de modo algum os louvores de Jackson a tais escritores.