Jackson de Figueiredo
O protestantismo é essencialmente fraco em matéria de organização social, por isto mesmo que lhe falta uma hierarquia definida e apropriada a fins universais. Ele foi sempre em qualquer das suas formas, um fator de diferenciação nacional, e tão exagerado que se pode apontar a Reforma como a fonte mais direta do desequilíbrio a que evidentemente está sujeito o sistema de forças ocidentais, a que ainda comumente denominamos a civilização cristã.
Uma prova dessa fraqueza, se bem que indireta, mas impressionante, tem-na dado quase todos os grandes vultos do protestantismo que, como Leibniz, por exemplo, ousam encarar demoradamente o problema da organização mundial.
Mas uma coisa é a verificação desta verdade histórica, outra é reconhecer a boa fé com que, ainda hoje, protestantes da mais alta envergadura cultural e do maior prestigio e reconhecida autoridade, se batem por uma solução cristã, para as angústias da terrível crise social e política que atormenta o homem contemporâneo.
E no momento em que apelintrados analfabetos tratam como coisas de nenhuma valia os fundamentos cristãos da sociedade brasileira, não seria desrazoado que nós, católicos, lançássemos mão de autoridades não suspeitas de catolicismo, senão em defesa dos interesses nossos, nacionais pelos menos, para mostrar a esses primários, do nosso pedagogismo de empréstimo, sem orientação, nem mesmo para o mal, o que ainda esperam do cristianismo os homens mais representativos da cultura europeia, realçada, em muitos deles, por múltiplas e graves responsabilidades no domínio da política internacional.
Um nome a citar, entre os primeiros, é, sem dúvida, o do Sr. Max Huber, presidente da Corte Permanente de Justiça Internacional de Haya, e de quem acabo de ler, na tradução francesa da Sra. Gabriela Godet, o discurso pronunciado em Munich a auditório acentuadamente protestante, sobre o tema: “A Política Internacional e o Evangelho”.
Lá estão, na página fulgente, as mesmas sombras de indecisão doutrinária, que enfermam as mais diversas tentativas de universalização protestante, consequentes da impossibilidade de delimitar a moral evangélica, se, em última análise, é a consciência individual quem dela decide, é a ela que cabe definir e decidir dos destinos da Igreja.
Mas, postos de lado esses erros invencíveis, digamos assim, da doutrinação protestante, que admiráveis lições ainda resultam da atitude do homem forte e culto, que ainda confia mais no espírito do Evangelho que na força das armas e no multiplicado orgulho, que esteriliza a ciência contemporânea.
Max Huber, abstraindo as causas diretas deste estado de coisas reconhece que jamais o dilema de escolher entre Cristo e César premiu com tanta força a consciência do homem, como em nossos dias, quando, quebrada a unidade natural do Estado e da Religião, tal como a entendia a antiguidade pagã, tendemos à exclusividade, ou melhor, à absoluta predominância do Estado como regulador da atividade humana, e isto após a sentença com que Jesus Cristo, no dizer de Kurth, feriu de morte o cesarismo e criou uma nova ordem social, em que o princípio civilizador não se diferencia nunca do cristianismo.
Mas se para nós, católicos, se para um homem como Kurth, a inovação cristã é clara e compreensível, em todas as suas consequências morais, porque a Igreja, se nos apresenta como órgão perfeitamente caracterizado, em que se encarna e vive a energia nova, da liberdade, não já como simples condição civil, mas como direito a que, nem a própria “Cidade” da concepção pagã, pode ferir, sem tirania, não é menos admirável o protesto da consciência cristã, quando ela parte de homens a quem os erros do passado escureceram o sentido real e positivo da Igreja Eterna.
“O Estado com a sua ‘moral’ especial, suas condições de vida e suas necessidades de ordem puramente natural, afirma-se ao lado de Deus e do reino de Deus, procurando suplantá-Lo.
“Esse império simultâneo do Estado e de Deus (mesmo quando o Estado não reclamasse para domínio seu absoluto, que uma parte ínfima) deve ser necessariamente intolerável à consciência cristã.”
Eis aí a primeira afirmação de Max Huber, como eco, sente-se bem, das múltiplas e angustiosas verificações, fáceis de fazer na história moderna dos povos mais progressistas, que a chamada Reforma entregou, sem outra defesa que não a do bom senso cristão, às férreas mãos de um estatismo, ainda mais sistemático e, sobretudo, ainda mais imoral que o estatismo, ainda mais sistemático e, sobretudo, ainda mais imoral que o estatismo pagão, tão temperado pela força de tradições, em que mais de um pensador tem procurado distinguir, não só os dados de uma primitiva revelação, como até mesmo o que chamam as bases naturais da dogmática cristã.
Mas onde comove a palavra de Max Huber é no ponto em que ela, sem esquecer uma só das aflições do presente, ousa dirigir-se ao futuro.
Nem o Estado amoral, visto por um Spengler, por exemplo, como necessidade cósmica, nem o “cosmopolitismo nivelador e mecânico, que não encontra apoio algum no Evangelho”.
Outro é o sentido da vida, outra deve ser, pois, a atitude do homem contemporâneo, renovada a sua fé cristã, o que quer dizer a sua verdadeira fé em si mesmo, pois não é outra coisa o persistir, como diria místico à maneira de Saint-Martin, na sua própria lei.
É o magistrado eminente quem não foge às afirmações que mais contrariam, de face, o fetichismo progressista dos nossos dias:
A moral cristã não é a moral da felicidade. Seu fim não é a paz exterior entre os homens, mas a íntima harmonia entre o homem e Deus; dessa harmonia é que decorrerá a paz entre os homens.
Ela tudo vê sob o ângulo da eternidade. O universo sensível e temporal é apenas o reflexo, a consequência e o efeito do mundo invisível e eterno.
O cristão tem, pois, de recusar estima exagerada a esforços que tendam à paz exterior, à organização exterior. O pacifismo de fins puramente utilitários é talvez tão estranho ao cristianismo como o que costumamos chamar militarismo.
E não é que a organização exterior deva ser desprezada pelo homem cristão. “Toda a vida coletiva, lembra Max Huber, tende à forma, à organização”. O que é preciso é levar a essa mesma organização o espírito do homem renovado por Jesus Cristo, isto é, do homem para quem todo pensamento deve estar em relação com Deus, tem Deus por centro e não o seu próprio eu.
É o amor exagerado do próprio eu o que anima o estatismo contemporâneo, demonstra-o Max Huber, e é partindo daí que não lhe é difícil explicar porque as paixões mais destruidoras vieram a dominar quase completamente a vida internacional, “e não só das nações poderosas, que dirigem a política mundial, como a dos Estados de importância secundária e a dos pequenos Estados”.
Pois bem: o juiz eminente não se teme de afirmar, alto e bom som, que não é possível sair desse caminho de doutrinação sem apelar de novo para Jesus Cristo, e não há objeção a que não faça frente com o destemor de quem sabe, que tem por si a verdade.
Àquela que diz respeito à “impossibilidade prática” de aplicar os princípios cristãos à política — a mais difícil talvez das que se apresentam à consciência do homem público — ele responde com a serenidade de quem, conhecendo a vida pública, através uma prática que lhe dá toda a autoridade, não esquece que sempre foi o exagero a origem das piores negações:
L’Evangile — diz ele — ne veut et ne peut pas être en compromis avec le monde et les possibilités humaines; il nous montre le chemin que nous devons suívre; si nous y engageons, confiants dans la puissance de Dieu, beaucoup deschoses qui nous samblarent irréalisables se trouveront devenir possibles
L’homme n’accomplit rien de parrait par ses seules forces. Si la perfection était noa nas le but, mais la condition de l’effort moral, il nous faudrait renoncer á pratiquer la morale chrétienne (eu diria a ácida moral objetiva) car il existe presque tonjours, dans quelque domaine que ce soit (non seulement en politique et dans la vie economique, mais aussi dans les rapports purement individuels et humains) um abime entre ce que son les actes et les pensées d’um homme et ce que lui prescrit la loi d’amour.
É esta a perfeita lição do bom senso, contra a qual não há sofisma que possa vingar impunemente.
O essencial a esta hora, diz Max Huber, não é medirmos as dificuldades que temos a vencer para que o espírito cristão novamente informe e fortaleça a atividade política. O essencial é lutar com a plena consciência do nosso direito, do direito que tem o homem cristão de repelir, como inimigos da sua própria humanidade as instituições e as tendências imorais que se vão insinuando ou já estão implantadas, com o favor de um suposto neutralismo de Estado, a arma por excelência de que se serviram sempre todos os verdadeiros inimigos da fé cristã.
Max Huber não ignora que, ante afirmações como as suas, o que mais se ouvirá de todos os lados, será a dolorosa interrogação: Mas, eu, que posso fazer?
Não é menos admirável que muitas outras das suas respostas, esta com que atende à aflição descabida:
La question importante n’est pas: ‘Que puis-je faire?’ Mais bien: ‘Que dois-je faire?’. Et celui qui conçoit tout ce que cette question implique, se sent écrasé par la grandeus et la difficulté de la tache, par as profondeus et son étendue. Mais c’est á celui qui est conscient des bornes de son humaine faiblesse que s’adressent les paroles de St. Paul: ‘Quand je suis faible, c’est alors que je suis fort’.
Como difere esta da linguagem do nosso pernosticismo cientificista! E, num edifício social como o nosso, que ruínas se preparam, se persistem os erros condenados por Max Huber?
Gazeta de Notícias, 3 de novembro de 1926