Jackson de Figueiredo
Como se sabe, o romance de Bernanos, Sous Le Soleil de Satan, abriu à literatura religiosa um campo que, até ontem, só um ou outro espírito mais audacioso como Huysmans, por exemplo, ousara entrar, mas em rápidas e fugitivas excursões.
Bernanos, pelo contrário, é um explorador aramado de todos os recursos da caça e da guerra, perseguindo monstros e levantando aves misteriosas, naquela não menos misteriosa imensa planície do fato vulgar de ordem religiosa devocional, planície que, no entanto, ‒ como se fatos pudessem roubar a ideias um caráter tão paradoxal ‒ esconde abismos tenebrosos, lutulentos, assassinos, e montanhas mais altas que todo o voo, que é preciso subir passo a passo, maltratando-se, ferindo-se, para maravilhar-se, ao fim com a sensação de ter a fronte mergulhada em luz viva e acariciante.
Naquele romance no lado da braveza, da selvageria, de uma alma de mulher, queda um salto mortal da luxúria à santificação, ao lado do degradado na hipocrisia, luz, de repente movendo-se sobre a areia do caminho humilde, o vulto cem vezes mais luminoso que o mais luminosos dos astros, do justo ignorado… Os personagens, por terem este relevo, não são, no entanto, situados em posições caracteristicamente dramáticas. São, como os de Proust, tais quais os encontramos, todos os dias, nas horas vulgares de todos os dias.
Mas a Bernanos não interessa somente a agônica vibração, que a superfície da existência de cada um dos homens reproduz em miséria e lirismo, o surdo, rouco, espantoso rugir da sexualidade, como origem da vida.
Ele principia por negar sem desconhecer esse processo interior, que seja aquela a origem assim da miséria como da poesia que perfazem a vida.
A grandeza característica da obra de Bernanos é a luta da alma cristã com a dúvida, e não com a dúvida metafísica, não com a dúvida do cético, mas com a dúvida cristã, a dúvida sobre o seu próprio mérito, tanto mais grave quanto ela se agita sobre a delicada base dessa eterna e quase indefinível questão da gratuidade da graça.
Note-se, porém, que não há tese no livro de Bernanos, mas somente a verificação dramática de um estado de alma que parecerá impossível nos dias que correm, àqueles que só vêm deles ou o falso brilho do progresso material ou as dores mais superficiais que, únicas, abrangem zonas muito extensas.
Pois bem: o que surpreende em Sous Le Soleil de Satan é a reprodução da mais complexa e dolorosa posição de uma alma de crente em face de sue destino, isto é a acuidade cristã criando à vontade o terror de qualquer benefício ou esperança, de qualquer consolo próprio da fé, por um lado, porque surgiu o desejo de reproduzir Jesus Cristo, por outro lado, porque a Deus mesmo, quem, provocando a reversibilidade das dores dá a certas almas o privilégio de ultimar, por assim dizer, a salvação do mundo, o que só se compreende porque no sacrifício infinito, suficiente do filho de Deus, estavam de antemão, pesados esses sacrifícios ulteriores de criaturas de eleição.
Mas o que na verdade desequilibra a imaginação mais velante ‒ como a alguém que “noué des deux mains á la pointe extrême du mat perdant tout á coupe équillibre gravitacionnel verrait se creuser el s’enfler sous lui, nom plus la mer mais tout Pabime sideral, et beuillante a ties trillions de lieues pécume des nebuleuses em gestation au travers da vide que rienne mesure et que va traverser as chute ternelle”, ‒ o que na verdade esmaga a consciência mais cristã é a verificação do que Deus consente, de como Ele se humilha, de como se deixa deformar na imagem com que se reflete nessas almas formidáveis.
“Existem morais completamente novas mas não se renovará o pecado”, diz Bernanos, mas o que raros pressentem é a multiplicidade de meios de processos de formas e maneiras com que a graça se manifesta no meio das trevas do mundo.
Bernanos apresenta-nos uma alma para quem o sobrenatural é quase a natural atmosfera em que se movem, mas ‒ vede bem a complexidade do problema ‒ com a desoladora convicção de que é através o preternatural e demoníaco, o satânico, que lhe cabe a sua parte de lucidez em face da vida.
O martírio de um homem como o padre Donissan escapará aos olhos carnais que são os da maioria dos homens.
“Olhos tão grandes para ver tão pouco”, diz o verso feliz do nosso poeta, e nós sabemos quão pouco é o que se vê ainda daquilo que é mais visível nos domínios da vida.
Seja como for, coisa que só cegos por desejo de cegueira, não verão é que há coisas absolutamente misteriosas, misturadas ao trivial da existência, e que é tão inexplicável a enormidade dos sofrimentos que sobrecarregam uma alma, como o poder imenso que outras exercem do meio mesmo das torturas mais formidáveis. Porque há almas a que a dor parece distender em toda a sua altura de dignidade humana, mesmo quando fora natural que se curvassem esmorecidas e esmagadas definitivamente.
Mas o que há de mais curioso, a meu ver, em relação ao fato literário que o romance de Bernanos representa ‒ isto é, a estilização, digamos, de dores, de sofrimentos, de agonias que sói o “sol de Satã” iluminando, explica, é a confirmação que a história e a crítica acabam de lhe trazer logo após a sua aparição como aparição não menos ousada do livro de Émile Dermenghem La Vie et les Révelations de Marie des Vallées.
Em primeiro lugar, Émile Dermenghem é um dos escritores mais sérios, pelo saber, e mais comoventes, pela intensa sensibilidade intelectual, da nova geração de críticos franceses. O seu “Joseph de Maistre Mystique” pode-se dizer que marca uma se da crítica religiosa e filosófica, em relação ao gigante das solrées. Ele honra, pois, a Bernanos, vindo, como veio, a documentar de modo mais cabal, o que a sua intuição de artista, adivinhou o que lhe foi possível ver e ouvir, mas naturais reservas não lhe permitem desvendar como os nomes próprios dos seus protagonistas.
O caso com que lida Dermenghem, é, porém, de quase três séculos passados, e não havia mais recear ferir a modéstia ou as susceptibilidades de quem quer que fosse, com esse revólver de arquivos ricos de matéria tão singular e perturbadora quão realmente edificante.
Émile Dermenghem conta-nos a história de Marie des Vallées, uma pobre aldeã, cuja vida foi, como a de seu mestre e senhor, pedra de escândalo para o bom senso e a moral dos homens vulgares, cuja morte foi causa e origem de ardentes lutas entre aqueles mesmos que estavam então no mundo como guardas da fé.
Nasceu Marie des Vallées, em Saint-Sauveur-Lendelin em 15 de fevereiro de 1590, de uma família, que, logo após a morte do chefe (e Marie ficará com 12 anos), juntará a desordem moral aos rigores da pobreza.
Não me interessa narrar de que gênero foram as torturas morais, as tentações e combates de alma sofridos por Marie des Vallées alvo que foi de mil armadilhas de feiticeiros e demônios, que chegou a temer mais aqueles do que estes contra os quais o sinal da cruz era arma infalível… E quase arrostar o ridículo o tratar pela imprensa de um assunto desta ordem. Mas a documentação sobre as manifestações demoníacas na vida da pobre aldeia é destas que só podem fazer sorrir a quem não seja capaz de crítica. Todavia, não havendo identidade de forma entre os fenômenos demoníacos na vida de Marie des Vallées e os que Bernanos descreve da vida do Padre Donissan, o que há a acentuar é a atmosfera demoníaca criada em redor de certas almas eleitas como força mística privilegiada para o maior sacrifício que pode fazer uma alma cristã e a sua maior aproximação, por conseguinte, de Jesus Cristo, ou melhor, do tipo de homem proposto aos homens.
Deste ponto de vista do tipo histórico de Marie des Vallées é realmente o mesmo que Bernanos realiza literariamente com o Padre Donissan.
Resumindo o que foram as lutas da atormentada camponesa, diz Dermenghem: seus inimigos queriam fazê-la passar por uma falsa mística; todo seu estado deveria ser apócrifo satânico, condenado.
Seus amigos, pelo contrário, aceitavam tudo em bloco, para não a abandonarem a seus adversários, cedendo em um só ponto. O Padre Eudes escreveu uma longa e bela memória para justificar teologicamente a atitude de sua penitente e inspiradora. Sua argumentação é sedutora e refuta sem réplica as críticas extravagantes de Bagire e de Dufour. Seja como for, contentemo-nos com dizer que se podem fazer certas distinções o sustentar que a vidente confundiria, por vezes, a inspiração divina propriamente dita e as vozes de seu próprio subconsciente, sem que de forma alguma fique em dúvida a santidade de Marie des Vallées, a autenticidade de seus estados místicos, de sua “troca da vontade” e de sua “deificação”.
“não temos a descabida pretensão de fechar este debate. Mas pode-se dizer, no entanto, que este ponto de vista é menos sedutor, menos grandiosos, menos logicamente patético que a concepção integral de uma compaciente figura da natureza humana, chamada à divindade, “feita pecado” como o Cristo na cruz, carregando o mal universal e a cólera de Deus, privada de todas as consolações, mesmo espirituais, e sofrendo até a excomunhão, para a salvação do mundo.”
Foi esta concepção integral da compaciente, a visivelmente adotada por Dermenghem. Mas quem não verá que a página citada poderia estar entre as muitas em que Bernanos assume o papel de historiador, gravemente objetivo, como que só forçado a raciocinar, uma ou outra vez, sobre fatos que desejava expor pura e simplesmente?
Não me resta dúvida, pois, que da antecipada confirmação que foi a vida de Marie des Vallées outros, melhor do que eu, saberão partir para mais subtil e mais segura penetração do problema de psicologia religiosa, que representa a vida do Padre Donissan tão ousadamente agitado por Bernanos.
Ora, que mais pode desejar um homem de arte que esta feição da reversibilidade, como um astro no firmamento da verdade humana, da verdade histórica, dor real, dor vivida, por uma verdadeira criatura de Deus, e não só de imaginação e de poesia?
Como, depois, disto, ousar sorrir do que ela representa?
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História só…
Tenho sabido que o velho Conde de Laet, após o carreirão com que nos demonstrou a sua ainda apreciável firmeza de pernas do lugar onde assentou, me atira, de vez em quando, uma ou outra chalaça…
Vá descansando, velho Conde, descasando e “maginando”… Pois é de esperar que ainda, antes de morrer, consiga abrandar no seu coração católico o ódio ao homem que nada mais fez que demiti-lo de diretor do Pedro II, por amor do Brasil, isto é, porque não desejava que aquele grande estabelecimento de ensino viesse a cair no mesmo lastimável estado em que se acha o círculo Católico…
Espero esse momento porque é claro que, passada a rajada de ódio o Sr. Conde de Laet tratará de si mesmo, quero dizer buscará defender-se das positivas acusações que lhe estão a fazer o bom senso e interesse católico… Se não quer fazer isto, deixe, ao menos, a direção do círculo católico, porque infelizmente a piedade que merece há anos da autoridade eclesiástica, não o comove nem o concilia a resignação…
Reflita o Sr. Conde que não tem o direito de sacrificar completamente uma instituição como o círculo, só porque não encontrou ainda, de que parte da Igreja, um pulso forte que repita o gesto do Sr. Bernardes em relação ao Pedro II.
Gazeta de Notícias, 16 de março de 1927