Jackson de Figueiredo
Meu caro amigo:
Recebi sua excelente carta e permita que lhe responda desta maneira. Diz-me V. que estranha o meu pessimismo com relação às instituições democráticas e à democracia em geral, porque, no seu entender, só a democracia busca realizar no domínio temporal aquilo que, no mesmo domínio, a Igreja, de um plano superior, deseja ver realizado. Creio que aí está, em resumo, o que V. me diz.
Passo, pois, a responder-lhe com a maior simplicidade permitida por assunto tão complexo.
1º – É fato que não pode ser discutido que, na prática, a Igreja sempre procurou conciliar os seus interesses com os interesses do Estado sob qualquer das formas que este tenha adaptado.
2º – A política democrática não tem o privilégio de, teoricamente, pugnar pela felicidade dos povos. Todas as políticas pretendem a mesma coisa.
3º – É absolutamente certo que a prática democrática não tem sido a de melhores resultados no sentido da paz interna de cada povo, e pode-se até afirmar que a sua política internacional, tão idealista quando a sua política nacional, também tem concorrido muito para a atmosfera de suspeição e de desconfiança, de guerra latente, por assim dizer, em que vivem os povos ocidentais.
Mas a verdade é que V., meu caro amigo, não tem coragem de exprimir com toda a clareza, e de extremo a extremo, o seu pensamento, ou melhor, a ideia central de toda a ideologia democrática. Esta é, porém, como todo o mundo sabe, a da possibilidade de um estado de perfeita felicidade social, pela conquista da igualdade, que refará a fraternidade originária, todo esse movimento ideológico sempre sobre o plano de uma liberdade, que se origina, por sua vez, de uma concepção absolutamente individualista dos direitos da consciência.
Ora, o que tenho a dizer-lhe é que, como católico, V. não pode adotar uma tal concepção da coexistência e duração social. Já que nem se pode discutir a sério o que tal ideologia representa em relação a verdadeira origem da vida em sociedade, isto é, de vida do homem histórico, do homem como só se deixa conhecer. E creia, meu caro amigo, que sobre este ponto, não lhe estou a falar em função de vaidade filosófica ou literária. Não. São os próprios documentos pontifícios a fonte de quanto nós, católicos, sabemos, de ciência certa neste sentido. E como tenho mesmo sincero desejo que V. reflita sobre o erro em que está, aqui lhe deixo indicação de um deles, pelo menos, e que me está mais à mão.
Assim, como que respondendo às suas dúvidas, o que diz Leão XIII, na sua alocução em resposta ao Cardeal Oreglia, é que nada há de comum entre a democracia cristã e a democracia socialista, materialista na sua origem e nos seus princípios, e a que tende a legislação de quase todos os Estados modernos, inimigos mais ou menos declarados do direito cristão.
Ademais, basta refletir no suposto direito de revolução que é, por assim dizer, a alma das chamadas democracias contemporâneas. Ora, sobre este ponto, não é só a palavra da Escritura o que o Católico tem a acatar, mas também à dos seus únicos interpretadores autorizados. E a destes, sobretudo, não pode ser alterada por sofismas de quem quer que seja, tão clara e tão positiva se apresenta. Eis, por exemplo, a este respeito o que diz o mesmo Leão XIII proclamado por todo o mundo o mais liberal dos Papas:
Se se verifica que os príncipes se excedem temerariamente no exercício do seu poder, a doutrina católica não permite insurgir-se contra eles, pelo receio de que a tranquilidade da ordem seja cada vez mais perturbada, e a sociedade ainda venha a sofrer mais. E quando o excesso chegue ao ponto de parecer que não há mais esperança de salvação, ensina a paciência cristã a procurar remédio no mérito e nas instantes preces a Deus.
Que quer V. de mais claro e de mais positivo?
Só no caso de atuar um governo manifestamente contra a lei natural e a lei divina, pode o católico recusar obediência, mas ainda assim a Igreja jamais elevou a sedição e a revolta à categoria de um direito.
Medite V., pois, no que aqui lhe digo, e veja se não merece suspeição a sua tendência otimista em face de tudo quanto constitui o que V. chama a política democrática, e a que não posso dar outro nome senão o de política revolucionária e materialista.
Gazeta de Notícias, 12 de janeiro de 1927