Jackson de Figueiredo
A tendência dos povos e, em geral, dos indivíduos de cultura latina (e assim dizemos dos que ainda conservam, pelo menos, o íntimo sentido da civilização que, a uma certa hora, culminou na França, na Itália, e na Península Ibérica), a tendência desses povos e desses indivíduos – e, principalmente, dos que, dentre eles, citei por último – foi sempre a da simplificação de todos os problemas da vida. São dogmáticos, por excelência, e o espírito geométrico é o que os inspira, de um a outro extremo da sua atividade. Inferioridade? Julgo que não. E nunca há verificar-se inferioridade no que acentua um caráter próprio, uma natureza à parte.
E onde me afasto do doutrinarismo do genial António Sardinha – a voz europeia mais autorizada no nosso caso – é justa e unicamente, na constatação das causas imediatas da tendência que é também nossa, e bastante acentuada, para a universalização da nossa maneira de ser.
Quando Spengler afirmava (por exemplo) que “os hispânicos souberam, primeiro que ninguém, imprimir uma diretriz mundial à sua concepção da Vida”, nada mais fazia que dar, a contragosto, testemunho, por isto mesmo mais valioso, da “identificação do gênio da Península com a essência pura do Cristianismo”, isto é, lembro eu, com um espírito eminentemente simplificador na ordem moral, mas não que tal simplicidade se faça por eliminações e subtrações absurdas do que constitui a vida do homem e, sim, pela sistemática hierarquização não só das ideias, mas também de todos os seus instintos e paixões. Daí “esse ‘corpo’ de princípios gerais, de costumes tão dúcteis, sujeitos ao mesmo pensamento” e do qual diz Maurras que nada há comparável no mundo, “corpo móvel, temperado de hábitos profundos”, e que, sendo a igreja propriamente militante, é o que constitui, para quem de fora o veja, a catolicidade. “A afinidade do gênio hispânico com a noção do ‘homem’ – tal como o Ocidente o concebeu e divulgou”, é assim que a compreendo, ou consigo apreender, e só daí em diante me é fácil e sobremodo agradável seguir o pensamento de Antonio Sardinha nas suas consequências, a um tempo generosas e realistas.
Foi sobre semelhante noção – dizia ele em página imorredoura – que a Europa se fez possível e sobre ela grande parte da América. Carecemos de pedir ao Tomismo a sua admirável distinção entre ‘pessoa’ e ‘indivíduo’ para melhor abrangermos o que separa a civilização ultramontana dos hispanos, da civilização utilitária, encaminhada apenas à conquista do ‘relativo’ – apanágio daquelas raças que os substituíram no domínio e partilha do Orbe.
E depois:
Mas, partida do ‘indivíduo’ como fim de si próprio, a civilização dita ‘contemporânea’, é uma civilização de ‘consumidores’, e não de ‘criadores’. Recorrendo agora aos conceitos de Oswaldo Spengler, ao apresentar-no-la como dividida entre o conceito da ‘riqueza’ do inglês e o conceito do ‘dever’ do prussiano, anotaremos que ‘riqueza’ e ‘dever’ supõem sempre o ‘indivíduo’ – valor centrífugo e errático, sobrepondo-se à coletividade e procurando subordiná-la ao seu império transitório. Contrariamente, os hispanos, não tendo do ‘homem’ uma ideia de ‘indivíduo’, mas de ‘pessoa’, a sua expansão determina-se por um irreprimível instinto universalizador, porque a ‘pessoa’ se lhe manifesta em inteira coincidência com a humanidade.
(A Aliança Peninsular).
Compreende-se agora o porquê em nós, hispano-americanos (e dou aqui o sentido que dava Sardinha à palavra hispanos) é tão profundo o instinto de unidade cultural, que, desde a aurora do movimento libertador do Continente, tem procurado, de tantos modos, objetivar-se em afirmações de unidade política, ora, no sentido interno de confraternização de interesses, ora no sentido externo de uma liga defensiva desses mesmos interesses, com relação aos interesses europeus.
Ora, tudo quanto um realismo outro, enfermado de ceticismo, possa apontar como realidades negadoras ou em contrário dessa tendência americana, creio que não invalida a serena verificação desse fato, tão constante em toda a extensão da história da América, que quase se pode chamar uma lei da sua consciência coletiva, isto é, o da manifestação clara e positiva desse desejo, desse anseio, dessa aspiração, de um direito americano, de que a só determinação ou delimitação ideal, já implica, não só o senso de relações políticas singularizadas pelo meio, mas também uma concepção moral da vida internacional própria dos povos americanos.
Razoável uma tal aspiração? Baseada em realidades reais ou em realidades puramente ideológicas?
O tempo, unicamente, será capaz de responder-nos, ele, “gerador e destruidor de prodígios”.
Seja como for, porém, creio que ainda não é esta a hora para afirmar-se ou negar-se nem mesmo a utilidade ou a ação malfazeja de uma tal aspiração na vida política do Continente.
Há, no entanto, um aspecto deste problema que, desde já, creio seria necessário sujeitar a uma severa análise, por que, antes de sua perfeita definição, será de todo impossível a definição mesma do sistema de ideias e sentimentos de que até agora só temos uma intuição generalizada. Quero referir-me ao caso norte-americano, em face às demais soberanias do Continente.
Como orientar-nos, nós, hispano-americanos, descendentes culturais de portugueses e espanhóis, em relação à soberba projeção, na América, de um temperamento coletivo e de uma cultura tão diversos dos nossos? É aí, penso eu, que se faz mister a correção filosófica de uma concepção política de puro senso comum, como a que tem guiado a maioria dos povos latino-americanos…
Realmente o instinto particularista, nunca de todo anulado, e o senso comum nos separam da América do Norte, ajudados também pelo temor que o forte, mesmo entre irmãos, inspira sempre. Ademais a autoridade de que os Estados Unidos têm sabido usar em benefício de desmandados, pródigos e irrequietos, jamais poderá ser estimada por aqueles que, às vezes, sob a frágil e espaventosa couraça de vaidades enormes, se sentem sempre próximos de iguais fraquezas…
Esta é que é a verdade pura e que, graças a Deus, só muito de leve pode atingir o Brasil, porque não creio que outro povo do Continente já tenha dado tantas provas, como nós, de confiança no irmão poderoso.
A este privilégio de sensatez, creio, porém, que nos tem levado, não só a consciência de nossa relativa força (em comparação com os Estados Unidos, de um lado, e com os demais povos americanos, do outro) mas a situação, em si mesma, singular, que temos no seio da América Latina ou hispânica.
Mas esta sensatez política não será dependente de circunstâncias deste momento histórico, e, em verdade, de uma utilidade passageira, imediata, quiçá geradora de grandes prejuízos para o futuro do Brasil, de sérias perturbações da sua unidade moral?
É a esta grave pergunta que suponho só poder responder uma filosofia política que revele toda a confiança que só os princípios católicos sabem inspirar, e que, de todo adequados à consciência tradicional do Brasil, não sei realmente até onde o poderão ser no caso dos demais povos de ascendência hispânica.
De fato, só no realismo tomista verificar-se-á esse cuidado com que “os que amam a vida e querem vive-la” devem ressalvar, a um tempo, o valor da ideia simplificadora e a sempre maior extensão e profundeza da realidade, a que ele esquematiza, para empregar uma excelente expressão bergsoneana. É daquele realismo, que informa toda a atividade social católica, a afirmação, nem sempre lembrada, é certo, mas essencial ao sistema, de que “a realidade transborda do conceito.”
E é por isso que, parecendo um processo simplista o da simplificação católica, isto é, o que abstrai uma hierarquia da indefinida realidade, e a esta modela num “corpo” de doutrinas, parecendo simplista, repito, é o mais complexo interiormente, o de mais difícil apreensão, pois nenhum pede maior tensão intelectual, dado que as suas verdades fundamentais terão que defender-se sempre de se perderem de novo, no indefinido da vida, como meros fatos de experiência.
Ele sabe que para ser integralmente verdadeiro, tem que ser finalista, hierarquizante, pois, perpetuamente, o que quer dizer, vivendo de divisões e distinções e dando à ideia um papel criador ou revelador de uma segunda realidade, a da relação entre a vida relativa e a vida no absoluto, na perfeita realidade ou, falando cristãmente: a vida em Deus.
Funda-se, pois, no realismo cultural da nossa formação católica, a distinção entre a vida moral, propriamente, e a vida política, entre os nossos caracterizados processos internos e o destemor com que ousamos correr paralelamente a uma corrente de ideias e sentimentos, perfeitamente definida e visivelmente diferente da que representamos, e, na realidade, somos.
É o próprio instinto universalizador da “personalidade” que herdamos da Península, que, sobrepondo-se aos temores e incertezas da nossa “individualidade”, nos leva a ser, na América Latina, o amigo leal dos Estados Unidos, mesmo porque a amizade é sempre o sinal certo da falta de temor.
E o que se pode, em verdade, afirmar, é que o Brasil, agitado na sua superfície moral, no que poderíamos chamar o seu temperamento moral – bastando para explicar isto o desnivelamento contínuo a que estão sujeitos os países de emigração – é um país de consciência, de caráter perfeitamente definido, e que se sabe irredutível a qualquer diminuição duradoura ou essencial.
O mais importante, porém, a quem observe os fatos da altura mesma dos princípios que sutilmente os informam, creio que é a verificação da nossa “real” extralimitação de uma ordem moral ou jurídica puramente americana, o que ainda melhor esclarece a nossa atitude de sempre em relação aos Estados Unidos.
O que Nabuco chamaria talvez “a volta à Europa”, atua em nós, a meu ver, não como uma simples tendência ao reconhecimento do que devemos aos nossos avós, mas como a força mesma originária da nossa personalidade cristã. A tradição cristã é que nos hierarquiza ideias e sentimentos e nos mantém dentro do particularismo nacional, mas conserva ao nosso finalismo o seu caráter universal.
O fato de reconhecermos e acatarmos a persistência de um ideal americano não impede ou, até agora, não tem impedido a persistência, em nós, das características de uma personalidade nacional, obedecendo em tudo às leis da formação particularista dos povos cristãos, que visam, consciente ou inconscientemente, pouco importa, mas visam unicamente o mais perfeito estados social, o perfeito equilíbrio das liberdades individuais. Daí um finalismo que não pode conhecer unidades outras que não as naturais na história do cristianismo.
E a nuanças artificiais na ordem dos sentimentos tão profundo são às vezes causas geradoras de espantosas catástrofes…
Gazeta de Notícias, 04 de maio de 1927.