Jackson de Figueiredo
Lembro-me dessa tarde. Sentado, junto a mim, na calçada do modesto cemitério que domina essa encantadora cidadezinha, V., como eu, olhava melancolicamente a paisagem já incerta, sem linhas definidas, a esvaecer-se no crepúsculo que descia sobre as coisas.
Havíamos discutido muito e fôra o problema da morte o que mais nos preocupara.
E eu lhe disse: – Enfim, este é, no fundo, o único problema. Que há que, na vida, não se limite com a morte? …
V. estava realmente cansado, porque nada me poderia surpreender mais que a sua resposta, sem relação, pelo menos na aparência, com o que eu acabara de dizer:
– Pois tenho conhecido descrentes bem felizes…
Lembro-me também que silenciei durante algum tempo, caminhando ao seu lado, pois, a sua resposta, dera-a V. como sinal de volta à cidade, que ali e acolá se pontilhava, ao longe, de luzes ainda pálidas.
Depois lhe disse: – Sim, pode ser, gente muito medíocre.
E até em casa nem mais uma palavra adiantamos sobre o assunto.
Desviou-nos, primeiro, daquele nosso debate, a curiosa cena que V. sabe como se gravou em minha memória: o pobre Chico Gato a miar, a fingir de gato de verdade, aos saltos, ao recuos, assanhando-se ou a dar mostras de escorraçado, enquanto o sisudíssimo Desidério, o cantador cego, que é aí como um rei da viola, nela acompanhava aquela incrível cantilena, e adivinhava, e talvez estivesse mesmo a ver com os olhos da imaginação as loucuras do seu amigo …
Que pequeno, mas também que singular problema aquele! Que faz afinal este bicho na face do planeta? Pois de Aristóteles a Chico Gato será tudo uma só espécie? Pois de Santo Tomás a Desidério, tudo um mesmo adivinhar, um mesmo vencer de trevas, o gênio em atividade como a loucura? …
Fui ruminando estas coisas, e V. ruminaria estas ou outras parecidas.
Tudo isso, porém, hoje se reavivou, dentro de mim, do modo mais inesperado. E como o pudera prever, acaso, ao tomar do livro, que ainda tenho diante de mim, para transmitir-lhe o que nele assim me chocou, e assim me levou de encontro a essa já então meio apagada hora de minha vida?
Mas, é, meu caro Camillo. que esse livro me trouxe mais uma dolorosa confirmação àquela minha frase de fim de conversa… Sim, pode ser gente muito medíocre…
O que é certo, meu amigo, é que o homem tem sede de verdade, e das formas de crer é a descrença a única que se não harmoniza com a verdade.
Que a descrença é também uma crença, penso que V. não me contestará e me compreende. Realmente, a descrença nunca pode ser absoluta; é, simplesmente, uma seleção de atos de fé, mas – note bem – seleção que a um só critério sujeita cada inteligência: ao da crença absoluta em si mesma, nos seus recursos próprios, pois o homem que não crê no sentido religioso, por exemplo, é aquele que acredita mais na sua mesquinha experiência de três ou quatro dezenas de anos, do que na experiência da humanidade, na sua totalidade, e em tantos séculos quanto são os da sua história.
E poderá dizer o descrente que existe alguma coisa de positivo, de verdade, a sustentar a sua alma? Não é a descrença ato de negação? Porque se ele diz que é a verdade o que resulta da descrença, então confessa que não é da descrença que vive e, sim, da verdade, que – note também – implica sempre uma crença – dado que toda verdade parcial só é reconhecida por ato de fé, – não existe ciência do particular – quando mais não seja neste sentido de que a subtraiu ao indistinto do todo.
Subentende o homem que a razão merece fé, desde que busca conhecer seja o que for. É ou não é assim?
Além disso, nunca homem nenhum soube jamais resolver o que é a vida – e todas as verdades mesmo as mais universais, serão parciais dentro dessa outra, a vida que ele tem que aceitar como um fato, pura e simplesmente como um fato – o que equivale dizer que tem de aceitá-la como aceitamos, nós, católicos, as verdades reveladas, as verdades que a razão natural, só por si, jamais poderia atingir. Que de mais triste que essa descoberta do nosso vaidoso irmão sem crenças – de que, de todos os modos, o mundo se lhe impõe como dado de fé?
Ora, o que há, assim, é uma permanente contrariedade entre o descrente e o modo de ser normal do homem, isto é, entre a razão e a sua atmosfera própria, que é uma atmosfera de fé. E onde há contrariedade não há paz. Não será de um tal choque, nas profundezas mesmas desse abismo, que é o ser, que decorrerá felicidade, sobretudo quando o descrente for mais que uma razão, uma consciência vulgar, sem força para penetrar o motivo da sua própria invalidez. E, entretanto, V. não negará, e ninguém, de boa fé poderá negar que o crente não conhece aquela íntima contrariedade entre a sua própria consciência e a atmosfera que ela respira. É fato, de ordem experimental, a felicidade que sente o homem de fé mesmo em meio das maiores vexações – e é o que facilmente se compreende, pois que nunca a tormenta, por mais poderosa, pode alcançar o fundo desse oceano da alma que repousa sobre a fé. Se não há contrariedade entre a essência de um ser e o meio em que está, se a vida mesma, que é esse meio, se impõe como fato superior à inteligência, e o homem, que é aquele ser, vive inteligentemente, certo, porém, de que maior que a sua inteligência é a vida – então o que se estabelece é uma harmonia tão profunda que nada pode perturbar seriamente. Se o essencial permanece em paz, seguro de si mesmo, tudo o mais pode ser perturbado e revolvido.
Não tem real importância, no quadro da vida. Que muito é que caiam duas, três, vinte folhas da árvore, se o tronco está bem firme sobre a terra?
Não se arreceie, pois, do que se passa em sua alma, de tempos para cá.
Não tenha medo do erro. Se V. conhece a Jesus Cristo, se V. sabe onde está a verdade, não há como duvidar que o erro será vencido. V. já está para além, para muito além da região a que não cruza a estrada real.
Os atalhos por onde anda V., a esta hora, pisando espinhos, ferindo-se, maltratando-se, não apagarão jamais em sua consciência a lembrança do caminho largo, que V. bem sabe corre próximo, está ao alcance do primeiro impulso vigoroso da sua fé para libertar-se do que a obscurece e abate.
Não sei se V. ainda se lembra daquele trecho de autor predileto, que eu tanto gostava de lhe citar ao tempo em que discutíamos, e foi a véspera da sua atormentada conversão.
Aqui fica para que V., mais uma vez, possa revivê-lo no seu coração: “Nous voyons bien qu’il n’y a de salut pour nous que dans une amputation; mais nous n’avons pas recourage de la faire de nos propres mains. Dieu, dont l’amour ne connaît pas la faiblesse, veut bien nous rendre ce douloureux service”.
Não esqueça V. esta lição da mais alta sabedoria: que a virtude é a paixão ordenada, a paixão que não se dá como fim de si mesma.
Não tenha medo, pois, do fantasma que está a perturbá-lo na sua vida interior. Procure ver a relação de eternidade que há, que deve haver, entre ele e a sua alma. Verá que, a essa luz, ele se fará também uma imagem de beleza.
Gazeta de notícias, 11 de abril de 1928.