Jackson de Figueiredo
Frei Luiz de Leão comparava a paz de que pode gozar a alma à paz das estrelas; que a paz, como já dissera Santo Agostinho, é uma ordem sossegada, pode estar no movimento, no progresso de todas as faculdades do espírito, que atuam e vão a seu fim, assim como no exército das estrelas, cada corpo tem o seu movimento próprio e supõe um fim singular, dentro de uma finalidade geral.
Mas onde há ordem há governo, hierarquia de funções e, se do ponto de vista moral, o homem assevera que o sentimento vale tanto quanto a razão ― característica do homem ― já não poderá dizer que a paixão má deve ser menos obedecida que o bom entusiasmo, pois que o seu primeiro ato foi anular o tribunal, o juiz interior, e não lhe vale mais outro critério que o da inclinação irracional.
Não há dúvida, porém, que em certos temperamentos místicos, mesmo da mística não condenada pela Igreja, sobreleva a voz do sentimento à da razão.
Isto, de modo algum, quer dizer que a Mística em si mesma não seja uma ciência tão perfeita como a Matemática, isto é, adequada aos seus fins.
A partir da imaginação, aliás, não é pequena e nem sempre pouco proveitosa às ciências, e o sentimento pode se fazer ouvir e dar as suas próprias razões, como diria Pascal, sem inconveniente algum, desde que não vá de encontro à própria razão, no que esta tem de reconhecidamente fundamental.
E no caso dos místicos da Igreja, ou de caráter católico, ainda o sentimento, por mais livre que fale, estará sempre despido de qualquer funesta inclinação, o que se compreende perfeitamente porque o católico, só porque o é, seja qual for o seu temperamento, só como tal é reconhecido e se reconhece porque se subentende e em tudo afirma uma antecedente confissão de fé nos dogmas da Igreja, que hão de ser sempre respeitados não só pela sua própria razão, como também pelos seus sentimentos.
E dada a grandeza da síntese não só intelectual como sentimental, que esses dogmas representam, a verdade é que o homem pode gerar entre as suas linhas, de infinita majestade, toda a liberdade de que é capaz, sem incindir na licença, na blasfêmia, no desrespeito a Deus e à própria dignidade da sua natureza. É isto mesmo o que com perfeita lucidez demonstrava, há pouco tempo, ter compreendido um dos mais notáveis espíritos da nova geração de pensadores brasileiros, o senhor Tasso da Silveira, insuspeito no caso, pois que na mesma página faz observar que não é um católico. Pois é deste modo que ele fala a respeito do pensamento católico, do que são suas chamadas “portas inexpugnáveis”, cerradas para sempre sobre a liberdade espiritual: “Se ele assim encarcera os espíritos e tem invariavelmente dominado a mentalidade universal através dos tempos, é porque, na sua grandeza e vastidão, abrange o que mais alto, elevado e puro existe no domínio do pensamento moral. Impossível, a nós de hoje, transpor-lhe os limites últimos para ir buscar além algo de grandioso, que não esteja nele compreendido. Mas dentro dos seus princípios, que mundos de maravilha, já olvidados ou por explorar! Cada navegante que sai mar em fora volta mais surpreso do que os precedentes. Daí, não obstante o rigor desses princípios, o grande número de pensadores cristãos, pensadores no sentido mais legítimo da palavra, com seu modo de ser particular, seus pontos de referência originais, seu pensamento todo próprio.”
E nem se pense que, de propósito, esqueço que para muita gente não se deve confundir pensamento católico e pensamento cristão. O senhor Tasso da Silveira mesmo acrescenta: “Considero a Igreja Católica como a fiel depositária da doutrina de Cristo, na sua mais pura expressão”.
Assim, repito, dentro da mais rigorosa doutrina católica, pode mover-se e normalmente expandir-se qualquer temperamento, seja de um imaginativo, por excelência, seja o de um desses puros seres de sensibilidade. O que não tem lugar no sistema moral e intelectual da Igreja é o anormal, o abusivo, a inversão na ordem dos valores psicológicos. E o que é certo também é que o ideal, o padrão dos temperamentos é, para o católico, o de que resulta, na teoria e na prática, o racionalista moderado, o verdadeiro racionalista, isto é, o homem de bom senso, que sabe que a razão é quem lhe dá o título de homem, mas também não esquece que acima desta razão há uma ordem sobrenatural, que lhe não é estranha e até se lhe impõe, mas não totalmente compreensível, senão como existente, na sua essência.
Ora, para que o espírito penetre a íntima contextura da alegria cristã é preciso ter sempre em conta os dois pontos de fé sobre que se levanta toda a concepção cristã da vida, e estes são: 1º ― que o homem atual é um homem decaído e que “a catástrofe do pecado original, tendo alterado a economia do nosso ser”, toda a nossa vida moral é uma vida de esforço. “Pour rétablir et garder par la vie intérieure l’ordre et l’équilibre dans ce “petit monde” qu’estl’homme, il faut depuis, travail, peine et sacrifice”. (Dom Chautard). 2º ― que Jesus Cristo é filho de Deus, é Deus mesmo, veio à terra e se nos deu como exemplo de que só através do sofrimento é possível, não só restabelecer-se a ordem no espírito, como a salvação da eternidade. “Si le christianisme a un sens doctrinal ou historique, il ne saurait être que la restauration compléte du plant primitive de l’humanité”. (Freppel)
Deste modo o que fica claramente compreensível é que a alegria da alma cristã cresce à medida que ela se leva no sofrimento, a exemplo do mesmo Jesus Cristo, seu criador e redentor, ou, como diz Ballester: “a alegria sobrenatural aumenta em nós à medida que a alegria natural diminui”.
“Estai sempre alegres”, recomendava São Paulo aos Tessalonicenses, mas essa alegria era a alegria no sacrifício de si mesmo. É o próprio São Paulo quem o diz: “E se eu sou imolado sobre o sacrifício a vítima da vossa fé, alegro-me e congratulo-me com todos vós”. (Filipenses 2, 17).
Isto não implica, como a muitos espíritos medíocres tem parecido, que o povo cristão deva ter sempre aspecto sombrio, de perene tristeza. Não. Implica, sim, seriedade, sentimento de que o homem é um ser religioso, com um fim superior a cumprir, mesmo nas suas mais terrenas satisfações. Confundir-se a satisfação do viver ― e viver para o cristão é uma conquista da alegria suprema, da eterna bem-aventurança ― com a satisfação das paixões inferiores, dos baixos instintos, com o vício, com a sensualidade, isto, sim, é que é falsear o sentido da vida humana, e encaminhá-la para a mais tenebrosa tristeza, que é a do orgulho vencido.
São do sempre admirável Dom Chautard estas palavras: “Contrairement aux joies du monde, si des epines existent au dehors, les roses subsistent au dedans.
Qu’ils sont á plaindre les pauvres gens du monde! dit le saint curé d’Ars.Ils ont un les épaules un manteau doublé d’épines; ils ne peuvent pas faire un mouvement sans se piquer; tandis queles vrais chrétines ont un manteau doublé de peau de lapin”.
Torna assim ao nosso espírito a palavra de São Bernardo:
Crucem vident, unctionem non vident.
O Jornal, 16 de Maio de 1921.