Jackson de Figueiredo
O “Memorial de Ayres”, como explica Machado, é “decotada de algumas circunstâncias, anedotas, descrições e reflexões”, a parte relativa a dois anos (1888-1889) da vida, também de “saudade de si mesmo”, entre risonha e melancólica, de um velho diplomata. Talvez notará, quem leia com atenção aquele livro, o mais sutil da nossa literatura, que Machado de Assis fixou àquela hora aziaga da nossa vida, à entrada desta tremenda agonia de trinta anos, fixou, repito, o tipo social que mais alta e nobremente representa todo o esforço da civilização em nossa terra.
O velho conselheiro Ayres, remoendo as suas lúcidas e quase joviais melancolias, preludiava outras, mais pesadas, e menos claras, quero dizer, menos dependentes do temperamento, como resultantes, que vieram a ser, dos acontecimentos em que naufragaram o trono e a segurança nacional. Ia desaparecer da nossa vida social o harmonioso conjunto de liberdade americana e bom senso europeu, com que o Império, tão falho na sua atuação política, ainda assim, nos caracterizara. Assaltada pelos que se apossaram do poder, sem iniciação alguma, a sociedade brasileira seria em breve esta monstruosa massa de covardias silenciosas e berrantes audácias de “parvenus”. Alarmante seria, dentro em pouco, a onda de grosseria. O domínio da educação e das boas maneiras, da sensatez e da seriedade, reduzir-se-ia a uma quase ficção, a um dado da memória nacional.
Muitos o adivinharam e nem todas teriam, como Ayres, aquela brilhante e fria armadura de ceticismo…
Alguns, pois, os que podiam, fugiram dos salvadores do país…
Um daqueles poucos, e natureza diametralmente oposta à do velho Ayres, tendo com ele, de comum, só o que constituía a fisionomia exterior da nossa alta sociedade, — educação, cultura, e bom gosto, de fundo sabor humanístico — um deles foi o conselheiro Jesuíno Marcondes, ex-ministro da Agricultura, e a quem a República foi surpreender no posto de presidente da província do Paraná, sua terra natal.
Não lutou o conselheiro Marcondes. Teve, clara, a noção do declive. Abriu-se-lhe o coração em gesto carinhoso, aconselhou os entusiastas, e os deixou ainda na posse do entusiasmo. Após breve estadia em S. Paulo, retirou-se definitivamente para a Europa e é lá, na Suíça, que, doze anos depois, morria cristãmente e aureolado por um infatigável amor à sua pátria.
Deste amor os testemunhos mais admiráveis ficaram na sua correspondência, que deve ser um dia publicada na sua totalidade para testemunhar também o grão de cultura e a finura de tato a que chegaram os homens públicos do segundo reinado.
O “Jornal do Commercio” de 8 de outubro de 1903, noticiando a morte do nobre exilado, não esqueceu o valor desta correspondência: “Como particular — diz o registro fúnebre — era de um trato afável para com todos; espírito eminentemente religioso e católico, educou sua família nos sãos princípios; amante do brasil, de suas belezas e grandioso futuro, nunca o esquecia em sua correspondência epistolar, cuja elegância só teria para compará-la a de F. Octaviano”.
O elogio ainda era naquela época daqueles que só se ousava dar a poucos, e, no caso, perfeitamente justo.
A um filho do conselheiro Jesuíno Marcondes, Moisés Marcondes, em cujo espírito como que se desdobram a paz e a serenidade cristãs conquistadas pelo velho lutador. Ao fim da sua laboriosa existência, coube, ultimamente, a cadeira a que a Academia de Letras do Paraná deu por patrono justamente aquele grande vulto da história paranaense.
Ora, cabe aqui parafrasear uma palavra de José de Maistre: não há monumento que fale tão alto do caráter de um homem como um coração de um filho. E quem conhece Moisés Marcondes pode dizer que conhece, no Brasil, o que ainda nos resta de delicadeza moral, de ternura educada, de sensibilidade real e profunda, tão isenta de mera “sensiblerie” como de qualquer estudada frieza.
Adorando — e é perdoável aqui o termo — adorando, por assim dizer, a memória do Pai, Moisés Marcondes não se restringiu a um simples discurso acadêmico, em que a apologia teria que limitar-se a uma documentação de sabor literário. A um filho, cristãmente orgulhoso, seria sempre preferível a clara beleza da verdade, que ali tinha às mãos, em múltiplos documentos de uma intimidade espiritual como raras ter-se-ão estabelecido no seio de uma família brasileira.
É assim que vem à luz, se bem que ainda em retalhos, no curso da biografia empreendida pelo filho amante, esta correspondência de Jesuíno Marcondes, em que tantas e tão formosas lições pode buscar a plêiade de homens novos, que se esforçam, neste momento, por salvar-nos da ruína e da desagregação.
Ela é tão profética às vezes, e às vezes retrata tão bem a situação atual — e não raro quando nada mais fazia que retratar a de então — que não se poderia, sem leviandade, trazê-la para páginas de jornal.
Convicto, como todos os vencidos do liberalismo monárquico, de que a Monarquia estava morta, ele sentia, no entanto, e de modo irresistível, que o problema nacional tomava esse ar de fuga e esquivança ante qualquer solução lógica dentro do nosso temperamento social.
“Parece-me — dizia ele em 92 — parece0me no ar todo o nosso edifício social; e não se vê quem inspire sólida confiança. Não sei se uso óculos escuros, ou se realmente tudo está negro. ”
Ainda hoje, se vivesse, poderia, como é evidente, repetir as mesmas palavras. Saído de um regímen logicamente pessoal para um regímen em que o pessoalismo é pura consequência de necessidades mais fortes que palavrões e frases feitas de um idealismo inferior, ainda hoje o país parece “solto no ar”, uma coisa que não se sabe bem para onde vai.
E o velho conselheiro, em 1894, dava sem querer o traçado geral do programa que deve ser o de todo o brasileiro digno deste nome, programa bem mais sério que todos os que ele próprio poderia delinear com maiores detalhes:
“Monarquia ou República, que importa? A dignidade da nação brasileira o que não pode dispensar é um governo que respeite as suas liberdades e lhe garanta a justiça. ”
Como se vê, aí estão “liberdades” e não a Liberdade dos ideólogos malsãos. Como se vê, o que aí se pede é justiça e não o sentimentalismo que nos vai levando a crueldades sem número.
Mas não só por esta feição da vida do nobre político paranaense, o livro de Moisés Marcondes se impõe às letras e ao sentimento nacional.
A obra de Nabuco é um monumento de historiador, e não lhe faltou o testemunho favorável do próprio Jesuíno Marcondes. O historiador tem ali o vulto de um sacerdote do amor filial, mas que não esquece os mais rigorosos preceitos litúrgicos, como sob a ação de presença de um público de corte. No livro de Moisés Marcondes, esse sacerdote traz mais suave e mais encantadora humanidade.
O sacerdote é um filho para quem não há feição paterna que não mereça o mesmo culto, mas culto de oração e de enlevo, todo carinho, de si para si, como esquecido de que fala a gente estranha, ou certo de que fala a gente que ama aquela memória como ele a ama também.
É por isto que não me temo de afirmar que o livro de Moisés Marcondes é único em nossa história literária e nenhum como ele apresenta da família brasileira o tipo perfeito, o tipo cristão, aquele que é preciso não deixar morrer sob a onda do metequismo avassalante.
Quando ainda jovem, Jesuíno Marcondes assim falava à mulher escolhida para esposa:
“Há para mim na religião certa ternura, semelhante à do amor, assim como sinto no amor certa solenidade, que se parece com a religião. ”
Como isto é expressivo de uma alma verdadeira, integrada na tradição brasileira, toda ternura e amplitude religiosa!
Moisés Marcondes, filho de um tal Pai, conservou também esta virgindade de alma, que lhe dá o direito de ser um guia da mocidade da sua terra.
O que ele diz do amor filial, o que ele diz do amor paterno, não é um simples comentário à vida do grande homem de quem descende. É também um fruto da sua própria íntima experiência, da sua peregrinação entre os homens, sem outras armas, no entanto — entre todos os brutais desassossegos — que as poderosas e invencíveis armas da bondade e da serenidade cristãs.
Gazeta de notícias, 28 de abril de 1926