Jackson de Figueiredo
Decepcionado de quase todas as lutas, posso dizer, no entanto, que nada me atrai tanto, ainda hoje em dia, como as bandeiras de guerra, as bandeiras dos que fazem a guerra justa, dos que guerreiam pela paz, dos que se sacrificam pelo amor e pela justiça.
Eis a razão por que, desde que a deparei na minha paisagem espiritual, jamais deixei de a seguir fielmente, a essa branca flâmula guerreira que soube, no sonolento e tedioso acampamento da vida social do catolicismo brasileiro, reavivar ânimos timoratos, reacender entusiasmos, fortalecer corações e consciências.
Tínhamo-la visto, há meses, sair do Brasil para destino incerto. Levavam-na, não enrolada ou rota, mas trêmula nos seus voos, as mãos cansadas da luta, o organismo abalado do lutador, o coração angustiado pela saudade e a incerteza.
Não poderei, pois, exprimir, de modo cabal, toda a alegria com que revi em D. Sebastião Leme, chegado anteontem a esta terra, e por ela recebido com extremos de amor e de carinho, com que revi no grande Bispo, a primitiva chama de vida intensa, de ardor espiritual, de sadia fé, de juvenilidade, de alegria, de confiança em Deus e no futuro do Brasil.
“Virtude verdadeiramente passiva não existe, não pode existir”, era a afirmação constante de Leão XIII, espelho de sabedoria cristã. D. Sebastião Leme, desde que Deus lhe confiou o governo das almas, tem feito desta palavra o seu toque de reunir. E àquelas que vai juntando, em derredor do seu coração, é sem respeito humano, é sem temor de qualquer espécie, que confia o seu programa, o mesmo de S. Bernardo: que não haja para nós, sobre a terra, mais sublime filosofia que a de saber Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado.
Eis o segredo da eficiência verdadeiramente singular, para não dizer sobrenatural, da sua atuação, num meio como o nosso, amesquinhado pela ignorância e o individualismo semi-inconsciente, fértil em mesquinharias, fértil em vaidades, e, até a sua aparição, como que tendendo a uma desagregação atômica, invadido por tudo quanto pode ser chamado o “cisma do ser”. O Leme, esse Chefe, esse Bispo, que olhos estranhos à vida íntima da nossa igreja, julgarão um homem com o privilégio de provocar adulações a fanatismos pessoais, nada mais é, em verdade, que o sábio devocional, isto é, o homem que soube aliar à mais pura adesão ao Cristianismo a mais aguda visão das necessidades práticas deste momento. É preciso que a virtude se prove a si mesma e se deixe experimentar ao contato dos grandes males que banham, como um oceano, as terras baixas da vida contemporânea… Chamado a atuar no centro mesmo da vida brasileira, se a sua heroicidade — todos nós o sabíamos — não tivesse raízes nas virtudes dos santos, se não lhe fora possível usar da suprema arte dos santos, isto é, da “arte de utilizar as nossas faltas”, seria certo um desastre quase irremediável para a Igreja Brasileira, dado que tocávamos os limites da mais sombria fase de nossa vida, verdadeiramente efervescência de uma velha cultura de larvas venenosas, de podridões revolucionárias, de idealismos mórbidos e degradantes.
O Arcebispo da Eucaristia, o devoto da Virgem Santíssima, o apóstolo de Terezinha, esse homem de vida devocional tão intensa, tão impositiva, digamos assim, esse mesmo homem pôde ter nas mãos a medida de todas as nossas necessidades, equilibrar todos os nossos impulsos contraditórios e imprimir à vida católica nacional uma fisionomia de unidade e de confiança, como ainda não registrara a nossa história.
“Quantas obras — dizia São Francisco de Sales — brilhantes na aparência são estéreis na realidade porque o amor próprio, mais que o amor divino, presidiu à sua formação e direção”. Pois bem: a obra realizada por D. Sebastião Leme tem isto de singular, de singularíssimo, em um país de vaidosos tão estéreis e violentos: é brilhante, não só interior mas exteriormente também, como toda afirmação de personalidade, mas é certo que (legítima aplicação da distinção tomista) é certo que o indivíduo quase não aparece na sua vasta contextura.
É a ele que ainda se aplica esta outra palavra do mais severo, do mais suave, do mais perfeito, do mais cristão e do mais humano dos humanistas devotos: “O segredo de enriquecer em pouco tempo é imitar os escultores que fazem suas obras por subtração, e não os pintores que fazem as suas por adição”. Ele soube sempre impor-se por este permanente sacrifício do seu eu. Se tem arestas o seu temperamento, ninguém as conhece porque tenham ferido ou maltratado quem quer que seja do rebanho católico. E, no entanto, o milagre aí está: Chefe, Príncipe pela realeza divina de Jesus, só dispondo do amor como defesa e da persuasão como arma de ataque, ninguém poderá gabar-se, no Brasil, dos nossos dias, de ter aliciado mais almas fortes e dignas, maior número de consciências cultas e livres, para uma obra de sacrifício, em que não há passo, não há avançar, por mais medido, que não represente esforço e luta como que corpo a corpo com a corrupção e o delírio.
Ele aí está, de novo, o Chefe querido, a provocar a admiração dos que, exteriores à Igreja, a combatem conscientemente, mas não menos também da parte dos seus inimigos internos, inconscientes ou semiconscientes em todas as suas arrancadas de vaidade e de ambição. É necessário ter um sério conhecimento da economia social do catolicismo brasileiro, e não menos das suas dúbias relações com tudo o mais que constitui o Brasil contemporâneo para avaliar-se o poder desta alma, a quem cabe zelar pelos destinos do povo da Capital da República, o que quer dizer, a quem cabe o mais difícil, o mais espinhoso dos governos espirituais em nossa pátria.
Quando me vejam no mais acesso de luta, quando me deparem como que garrotado pelas paixões mais violentas, façam-me, pelo menos, esta justiça: a de que sempre fiz timbre em proclamar que, como católico, nunca desejei que me inspirasse outro espírito que não o do grande Arcebispo que me levou ao Santuário da Igreja. Se as paixões forem mais fortes que a minha vontade ou as injustiças superiores à força de contenção da minha consciência, será minha a fraqueza, e jamais com raízes nas lições do grande mestre espiritual.
D. Sebastião Leme, novamente no Rio, é o sinal de que vai recomeçar a atividade dignificante do Brasil contemporâneo, o severo e nobilíssimo combate das forças da Igreja unida e harmônica com a multiplicidade do erro.
A esta hora, não há, de certo, um só soldado, que não esteja a viver das esperanças desse combate.
Gazeta de Notícias, 05 de outubro de 1927