Jackson de Figueiredo
A grande procissão de domingo passado deve ter levado ao coração de D. Sebastião Leme alegrias realmente compensadoras dos seus quinze anos de esforço em prol da dignidade da Igreja. Isto é, nos quinze anos em que, como bispo, S. Ex. tem sabido encarnar toda a coragem inteligentemente dirigida no sentido de organizar a nossa complexa vida social contemporânea, de conformidade com os princípios de eterna sabedoria, em que esta mesma Igreja assentou as bases de uma sociedade brasileira, de uma consciência nacional.
Não é o território o que faz a unidade de um povo e, sim, o espírito deste mesmo povo o que pode sobrepor às mais desencontradas oposições geográficas uma unidade moral, que valha como limites naturais, os mais intransponíveis. Ora, no Brasil, em que a própria sociedade teria que formar-se pela constante interpenetração de elementos étnicos os mais vários, só a força do Estado, amparada pelo esplendor de uma força puramente moral, poderia operar o milagre, por assim dizer, desta unidade espiritual, que representamos, nós, o povo brasileiro, sobre esta face revolta do planeta.
A realidade, porém, é que o Brasil, maçonizado nas suas classes dirigentes, nos últimos decênios do Império, e anarquizado pela República, é um país de conquista, ou, pelo menos, um país em que a fé católica se tem que manter como em estado de guerra: alerta e vigilante, para que à sua própria dignidade de criadora da sociedade brasileira, corresponda, nesta, algo dessa unidade de espírito, ou, melhor, desse sentimento do ser, dessa vontade de duração, desse desejo de viver, enfim, que caracteriza o que deste ou daquele modo, por este ou aquele motivo, ainda é digno da vida.
Conheço muito pouco do que foi a ação de D. Sebastião Leme, em São Paulo e aqui no Rio, nos seus primeiros anos de episcopado, mas basta recordar a vibração de intenso entusiasmo com que foi recebida a notícia de sua volta ao Rio, à diocese enobrecida pela presença de nosso venerável cardeal, para avaliar de que ela foi nos dias de sua valente mocidade.
Sigo-a, porém, desde o governo da Arquidiocese de Olinda, e não conheço nada de mais belo na vida do Brasil contemporâneo, nada que tão alto fale a respeito de nosso envenenamento agnóstico, nada que revele melhor o quanto ainda nos resta de saúde espiritual, que a atividade deste chefe da Igreja, e a sua imensa repercussão em todas as nossas camadas sociais.
Não é, no entanto, D. Sebastião um guerrilheiro, ou uma espécie de caudilho católico, como fora ao sabor das imaginações exaltadas, e até mesmo, o crer no que me dizem… mais afim aos temperamentos como o meu, não de todo descrentes da ação benéfica do ferro em brasa sobre certas chagas deletérias.
Mas, por menos que me creiam, o que mais fortemente me entusiasma na ação do grande arcebispo, é justamente esse caráter de essencial catolicidade, de que, em toda sua extensão, ela se reveste. A perfeição, já o próprio paganismo soubera ver, é por essência inimiga da pressa, e a atividade da Igreja que não reconhece limites sobre a terra, não pode reconhecer limites no tempo. Sabe que o tem por si, em todas as direções da vida espiritual.
Esta íntima confiança nas virtudes da ação moderada, da ação essencialmente intelectual, eis o que, de modo verdadeiramente impressionante, caracteriza o temperamento prático de D. Sebastião Leme. A sua consciência é eminentemente moderadora dos elementos morais esparsos no meio brasileiro.
Não vai a eles por meio das forças objurgatórias e das violências. Toca-os como potência estética, iluminativa, de que decorre, porém, não o simples gosto das condições ideológicas, mas todo o poder persuasivo da fé verdadeira, eminentemente organizadora e construtiva.
Mas a uma inteligência medíocre, mesmo a uma inteligência poderosa, mas pobre de senso estético, a verdade é que seria impossível esse papel de reorganizadora do nosso meio social, por uma ação caracteristicamente intelectual, dado que a nossa anarquia, em todos os campos de atividade, nada mais é mesmo que um reflexo da terrível dispersão de forças, da assombrosa desagregação, com que os processos de educação agnóstica e liberal, em pouco tempo, enfermaram a intelectualidade brasileira.
É por isso que, tendo por si, além do conhecimento exato deste estado de coisas, esse privilégio de temperamento, D. Sebastião Leme, já em 1916, na mesma pastoral em que desaprovava a multiplicação desarrazoada dos livrinhos de devoção, rezas e manuais de todos os nomes, traçava a norma do bom combate, em terras brasileiras, neste momento em que todas as formas de inteligência leiga devem ser encaminhadas de modo a dar maior relevo à pregação propriamente evangélica.
Sacerdote e bispo, temos o coração voltado para o futuro religioso da pátria amada. Lá nesse horizonte que azula no céu, nossa alma vê esboçar-se a Silhueta de Nosso Senhor Jesus Cristo, braços erguidos, em atitude de bênção, a encaminhar o nosso idolatrado Brasil para a felicidade e para a glória.
“Será no dia em que, instruídos na Religião, constituírem os católicos uma cruzada vencedora contra a descrença que assola e devasta a organização da pátria.
“Sabendo-nos preparados no estudo, preparar-se-ão os inimigos. Encontrarão a Verdade e nos será dado abraçar a novos irmãos.
“Seremos – oh! Aproxime-nos Deus desse dia! – seremos a MAIORIA ABSOLUTA do País, não somente pelo número, como pela força das nossas convicções e pelo clarão fulgente dos nossos arraiais.”
É esta fé no esforço inteligente, como que a atrair a Graça de Deus, o que jamais abandonou a consciência deste Bispo, a cujo espírito de combatividade, tão constante como senhor de si mesmo, e isento de excessos, tem correspondido também às vitórias mais brilhantes, não só da Igreja Católica, como da própria consciência nacional, da sua certeza de existir e dos direitos que tem à existência.
Sabe-se o que foi o resultado da sua clarividência na Arquidiocese de Olinda. Recife é hoje um meio em que a intelectualidade católica tem representantes do mais alto valor em todos os domínios: nas ciências, no jornalismo militante, e até na obra de ficção, coisa tão rara no Brasil.
Aqui, no Rio, as suas consolações são essas outras vitórias, ainda mais grandiosas, de tudo quanto constitui esse espírito de ordem e de harmonia, contra os tremendos elementos de desassociação e anarquia, que, até pouco, dominavam o ambiente intelectual da capital do país. O Congresso Eucarístico não foi mesmo uma das maiores e mais sérias afirmações da nacionalidade, no centenário da sua Independência?
Onde já se revelou mais segura de si mesma, e mais digna de acatamento, a inteligência culta do Brasil?
Observe-se, porém, o que se passa atualmente na vida propriamente normal do catolicismo nesta cidade, tão exposta a correntes subversivas à fé e da nacionalidade, e não há como negar que é ainda esse “real cotidiano” que esplende, de luz mais serena e mais bela, a atuação de D. Sebastião Leme. O Rio é, hoje em dia, uma cidade em que agoniza o respeito humano, máxime das hostes intelectuais.
As grandes procissões são, de tempos para cá, como revistas marciais de todas as forças componentes da atualidade católica, e o que mais edifica é a firmeza mesmo dos elementos mais vivos da nossa inteligência, formando, ao lado do grande Bispo, na glorificação de Jesus Cristo.
A de domingo, por exemplo, deve lhe ter levado ao coração essas supremas alegrias de fé recompensada. Mas nós, os simples soldados, que hoje nos sentimos mais fortes pela organização e unidade, que é mesmo que lhe poderíamos dar, a ele, o grande Bispo, após quinze anos de luta, senão estas provas de que estamos, em espírito e coração, aos pés do Mestre?
Àquele que já foi chamado o Bispo da Eucaristia, nenhuma homenagem poder-se-á comparar a esta da nossa coesão, da nossa alegria em derredor de Jesus-Hóstia, do vivo Deus triunfante da humilhação.
Gazeta de Notícias, 9 de junho de 1926