Jackson de Figueiredo
Se não me engano, é em um dos romances de Hall Caine — “O Apóstolo” — que se encontra esta rude lição da vida: um homem absolutamente dominado por uma ideia generosa, tudo suporta: privações, ingratidões, grosserias de toda espécie. Um dia, porém — e logo após ter demonstrado a maior paciência e humildade, em face de uma multidão que o maltratava — perdeu de todo a serenidade, e, com ela, a honra de apóstolo, pois se surpreendeu cometendo um assassinato na pessoa de um asqueroso homem do povo, que, só pelo gosto de ferir, matara, ante os seus olhos, um cãozinho vagabundo e inofensivo, que se lhe juntara há tempos, espontaneamente — a ele, o homem apostólico — nas suas peregrinações através do monstruoso labirinto da miséria de Londres.
Esta é a dura lição da vida, a lição de todos os dias, e aquele cãozinho pode também ficar como símbolo da fragilidade dos objetos a que os homens, as mais das vezes, dedicam um supremo amor. Então, na vida dos fundadores ou propugnadores de seitas — como era aquele personagem de Hall Caine — a lição assume proporções verdadeiramente shakespearianas. A base puramente individual das suas concepções religiosas e filosóficas, raro resiste a um impulso de sentimento irritado ou a uma contrariedade moral, de maior vulto, nos domínios da consciência.
Agora, o que me admira é a contradição em que perpetuamente se debatem esses mesmos indivíduos nas suas relações com a Igreja Católica, ou melhor, com os filhos da Igreja. Para eles, sempre é justa a indignação de que se tomam quando um católico toca de leve a sombra da vida religiosa que os traz iludidos consigo mesmo.
E, no entanto, a um católico que não defende coisa alguma de pessoal, que defende, pelo contrário, a própria civilização, que modelou o seu caráter, o seu coração, a sua inteligência, é de ver como os “aficionados” das seitas mais mesquinhas não lhe perdoam a menor rudeza quando em defesa da sua fé.
No fundo — esta é a verdade — há um certo sentimento de justiça, mantido a contragosto, na expressão dessas surpresas ante a dignidade católica ofendida. Eles sabem que só a Igreja tem a glória da santidade objetiva, individualizada, realizada, e, na ignorância completa, que quase sempre os enferma, da hierarquização que a Igreja, não só reconhece, como imprime, a toda a extensão da atividade espiritual humana, supõem que todo católico deve ser santo, deve reproduzir a paciência dos santos.
Nem todos os católicos o são, porém, e nem por isto a Igreja os considera menos filhos, e os ama com amor menos santificante.
Ela oferece, pois, aos seus inimigos, uma frente única, mas onde a personalidade humana é tão respeitada quanto esse respeito não implique um crime em relação à unidade da mesma Igreja. O coração do santo abençoará os que o maltratam. O coração do crente comum será sempre menos forte que o coração dos santos. Corajoso, ele revidará os golpes do inimigo. Fraco, sofrerá com maior ou menor resignação.
A unidade da Igreja, esta, se fará sentir nas obrigações de todos para com Deus. O mais irritável, o mais intratável dos católicos sabe de ciência certa, sabe que não tem o direito de negar a seu inimigo o perdão, que Jesus não lhe negaria, e que, se acaso não o sente no coração é por fraqueza e não por fortaleza de ânimo.
Esta é a ordem ideal, ou melhor, da suprema realidade a que se dirige toda a atividade católica. Ela, porém, é confirmação e não negação da ordem puramente humana, a que pertence cada um de nós, e, para o católico, intervém neste ponto o dogma da queda, isto é, a consciência, não da bondade natural do homem, mas da sua consequente fraqueza e miséria.
É com um homem comum, pois, cheio de paixões, que o inimigo da Igreja tem a lutar na maioria dos casos.
O que é importante é saber que espécie de ideal é o que unifica e orienta essas paixões. Ora, quem ousa negar que o ideal da Igreja é o bem da humanidade, ousa negar tudo mais, e não pode queixar-se de quem, em defesa de uma tal verdade, lhe nega boa-fé ou sensatez.
A adversários da Igreja não faltarão nunca as preces, as orações da fé sincera que, com caráter de obrigação, guarda no seio, inscritas com o fogo da alma de Jesus Cristo, as sacrossantas palavras: “Perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos inimigos”.
Mas não lhes há de faltar também, da parte dos católicos, o que eles mais temem: o uso de armas puramente humanas, na luta pelo bem sobrenatural.
A Igreja não condena esse uso, nem ela é instrumento de transformação da nossa natureza, e, sim, de exaltação de tudo quanto nela pode ser levado ao serviço de Deus.
Quem não compreende isto, compreende muito, muitíssimo pouco de que constitui a dignidade da vida humana.
E não é demais que o processo pedagógico seja um pouco mais rude, se é necessário desbastar rudeza tão acentuada ou tão acentuada má-fé.
Ora, aos santos o exercício divino da prece perfeita. A nós, porém, simples soldados da Igreja, o não desprezar jamais os meios menos amáveis de dar a gente tão insensata ou tão ruim de que o amor de Jesus Cristo ainda não desertou este pobre mundo… e certo jamais o desertará.
Gazeta de Notícias, 19 de maio de 1926