Jackson de Figueiredo
As palavras pouco a pouco perdem o seu sentido real, principalmente neste tumulto semi-racional dos nossos dias, em que a imprensa rebaixou de tal modo a obra de pensamento que ela pode parecer inspiração popular ou curiosidade e passatempo de homens de negócios.
Ainda é de ontem o esforço com que pensadores dos mais diversos credos filosóficos e científicos, retomando o fio da tradição, conseguiram refazer o sentido da mística, como ciência de uma dada realidade. Compreendeu-se então que “o êxtase não faz o vácuo na alma do místico”, e foi possível não confundir mais as suas visões ou adesões a essa realidade superior com os hiatos mentais ou as desassociações do alucinado.
O caminho a seguir foi longo, e ficará para sempre gravado na história da filosofia o desenho desse roteiro segundo o qual o racionalismo individualista a si próprio condenou, transformando-se em inimigo da razão, a “raciocinar contra a razão, afim de ter razão contra as razões que a enfermam…”
Ora, uma palavra que vai também pouco a pouco reavendo o seu primitivo e real sentido é a palavra “sensibilidade”, desde os primeiros românticos franceses tão alterada na sua aplicação como na sua atividade própria, em consequência. A prova do retorno à sua verdadeira significação está, penso eu, no fato de ter chegado ao auge da desordem e da anarquia em seu processo literário contemporâneo. É em nome dela que o próprio sentimento do ridículo desapareceu de certos domínios literários e, sob as mais diversas denominações, a mania da originalidade se confundiu com o poder de penetração e de análise da vida interior. Mas, no homem, a vida, isto é, o equilíbrio da sua natureza, vence, por fim, e é sempre no momento mais dramático dessas lutas do espírito, que se inicia a sua ofensiva contra as forças aparentemente vitoriosas da irracionalidade. Na Europa, que, num sentido geral, continua a ser a mestra dos homens, vê-se uma reação do exagerado sabor clássico limitar, repentinamente, mas com força invencível, os desvairos do predomínio da sensibilidade, no mundo das letras.
É, já agora, evidente que o equilíbrio está a fazer-se, e a riqueza provinda do surto romântico cairá de novo nas rodagens de um intelectualismo temperado e seguro de si mesmo.
Ora, a mim, simples diletante das letras, o que mais me interessa neste momento é seguir mesmo o curso dessa transformação, sem me esquivar, às vezes, a grandes sobressaltos de pessimismo e de desilusão. Mas o lastro dessa introspecção indireta, confesso que é mais de esperança que de dúvida.
Nas letras brasileiras, por exemplo, não serei jamais apontado entre os que combateram a espontânea floração de uma sensibilidade nova, não raro absolutamente desadequada à ordem literária. O que me entristece é, pelo contrário, a “sensiblerie” artificial do literato tendente a profissional da análise de si mesmo para agrado ou surpresa do público. Sei perfeitamente que o contato com literaturas estranhas e até com as letras em geral, costuma emprestar, aos mais desprevenidos e aos menos pedantes, almas literárias as mais exóticas. Fierens Grierson já notara, na aurora dos imperialismos ibseneano e tolstoiano, quanto era comum a um espírito sentir-se, de repente, escandinavo ou eslavo nas suas tendências propriamente literárias. Era isto talvez necessário para a universalização “literária” de algumas tendências vitais do homem moderno, tendências realmente novas ou, pelo menos, reavivadas, de modo notável na treva do individualismo dominante desde a Reforma. Será o sangue novo do eterno humanismo, que só entre os povos cristãos pode florescer sem triunfo das mais baixas paixões.
Mas no Brasil, repito, por isto mesmo, que é terra de tendências espirituais não perfeitamente definidas, além de um fio de tradição católica, e, por conseguinte, de fácil liberdade, facilmente mantida, ainda é mais lastimável o artifício literário, adaptados como expressão de alma moderna, da nossa alma, nas suas relações com a atividade espiritual do homem europeu, mestre, ainda hoje, como disse, de sofrimento e de esperança.
É, pois, armado assim dessa convicção otimista e desse sentimento de desconfiança, que tenho lido, tanto quanto me é possível, da nossa produção literária, desses últimos tempos, e – esta é a triste confissão que devo fazer – e raro é que, fora do campo das letras própria e reconhecidamente católicas, onde a artificialidade ainda predomina de modo assustador – raro é que não se reanime o meu otimismo. A minha fé nas forças do espírito brasileiro, tão maltratado, tão vilipendiado e esquecido nas esferas inferiores da política e de toda a outra, das suas chamadas atividades práticas.
Dessa produção, o último livro que tive sob os olhos, e dos olhos me entrou com força o coração, foi <<A Festa Inquieta>>, de Andrade Muricy, e devo dizer que nenhum, como ele, me revelou a magnificência dessas forças espirituais que, ainda contidas, inseguras, inquietas, preparam, no entanto, a vitória de um sentimento universal de brasilidade, isto é, de uma maneira nacional, nossa, de olhar o mundo, senti-lo, e compreendê-lo.
É singular que nesse livro, obra que pode ser enquadrada nos limites do puro ficcionismo subjetivista, possa encontrar-se essa força de objetivismo, tão definida, como tem que ser a diferenciação em domínios da alma coletiva. A realidade, porém, é que Andrade Muricy é o primeiro que, não em teoria mas, de fato, naturalmente, espontaneamente, transportou para o domínio das nossas letras a realidade (não o sentimento ou a ideia) dessa diferenciação, tal como ela já existia há muito na alma brasileira. Seria, pois, a <<festa inquieta>>, aquela transbordante consciência de si mesmo, aquela fúlgida e suave alegria de conhecer-se, que não impede, no entanto, nem o espanto daquela descoberta, nem o receio de comparar-se, nem a melancolia, nem a inquietação, o vago terror, a incompreensível tristeza desse despedir-se de um outro eu, do seu eu histórico, do seu eu artificial, cultural, que todo artista brasileiro, ainda sente em si mesmo, filho que é da tradição literária europeia, educada a sua visão das coisas através de uma sensibilidade literária de empréstimo.
Aquele brasileiro que parte daqui, doente, de braço, por assim dizer, com o fantasma da morte – e mais, com a revolta contra essa derrota imerecida – levava, entretanto, não o gérmen da sua destruição, mas o preparo místico, o fermento vital da dor, para a perfeita liberdade de sua alma.
A própria inquietação que, até o fim, como que divide em estrofes os versos do seu poema de liberdade, ela tem ali o papel moderador, equilibrante na transição, que deve ter o caráter natural de uma evolução, e não a subitaneidade de uma conquista violenta de novo estado de consciência.
O drama individual sublinha, de modo admirável, essa epopeia da libertação do homem americano, que não quer desprender-se das suas raízes históricas, mas quer brilhar ao sol, como flor e fruto da América, terra ainda mais misteriosa em face do futuro no sentido do seu mais longínquo passado cristão.
“Ao sair do consultório onde ouvira a minha condenação – nota o introspectivo da “A Festa Inquieta>> – levava uma sensação de vitória. Um júbilo irracional susteve-me o espírito durante horas.
Sentia, talvez o prazer de encontrar-me em face de um acontecimento, dum verdadeiro acontecimento, terra à vista no mar sem limites de minha existência parada…>>
Vê-se, claro, o processo místico, quer dizer, a completa integração da alma sofredora, a uma realidade superior, não anti-racional, mas super-racional, para equilibrar-se ante às formidáveis forças da dor, justo no momento em que até o solo amigo da pátria, o chão conhecido e amado lhe faltavam.
Um dia o surpreende a saudade do Carnaval carioca… <<Lá – (na Suíssa pacata) <<lá só havia os honestos compenetrados cortejos históricos. Raça equilibrada, raça feliz!>>
é o sentimento quem fala. Mas a ideia definidora reponta, invencível:
<Nós, com os cordões e blocos, estamos na tragédia de nossa formação dolorosa, complexa, na tristeza e na exaltação!…
Tristeza, sim, tristeza… saudade também, saudade profunda!…
Saudade profunda desse <<nós mesmos>> que conteve, até hoje, como um invólucro de cera, a tudo moldável, este outro, que se vai mostrando, ao fundo, e já fulgente e duro como um diamante.
Onde, porém, excele Andrade Muricy, como revelador de algo, a um tempo, realmente nacional, e, por conseguinte, tradicional, e realmente novo, é na língua que escreve. Brasileirismos? Brasileiríssimos brasileirismos, encontrará nela quem os procure.
Mas, onde o mal, senão para as correias de nervos de gramaticões e criticoides de quinta classe? A ordenação lógica da sua linguagem lembra, pelo contrário, a afirmação tão desconhecida do velho Silveira da Motta de que nós, brasileiros, somos a esta hora, os herdeiros mais zelosos do gênio da língua portuguesa, no que ela tem de caracteristicamente próprio, isto é, no que lhe é essencial.
Outra é, porém, a floração sobre o velho tronco, ou sobre o tronco que aqui reverdeceu, em terra mais rica. E é o que A Festa Inquieta tem de mais belo, de mais atraente: uma riqueza de linguagem, de cores, de tons, de nuances, de notas musicais e relações entre estas, que enche a vista, alegra o espírito, não como o espetáculo de uma floresta, à distância, mas como o de um bosque, de desenho nosso, de árvores nossas, formosas todas na sua multiplicidade, e entre as quais, sombra das suas ramagens é impossível passear a imaginação.
Esta língua, quando descreve por exemplo, a cena, a paisagem europeia, ainda mais impressiona, porque é aí que se revela a sua autonomia, a sua íntima segurança na relação com um espírito diferenciado do que ouve e do que vê.
Não sou um crítico profissional e nada mais faço sempre do que assinalar as características morais na produção literária de meu país. Mas é o ponto de vista puramente literário que aqui distingo na A Festa Inquieta uma das afirmações morais mais delicadas e mais profundas da alma brasileira, a esta hora aflitiva mais bela, da sua vida.
Gazeta de Notícias, 30 de junho de 1926.