Jackson de Figueiredo
O último livro de Julien Benda — famoso desde o seu grande sucesso contra os fáceis sucessos do esnobismo bergsoniano — tem este título notável: “La trahison des clercs”. Por sua vez, ele faz pensar no sucesso pragmático dos títulos. É um chamariz este título. E há razões no ar, escondidos pessimismos, recalcados aborrecimentos, que, de fato, o justificam na prática.
Mas a verdade é que Julien Benda usa do termo no seu sentido medieval, melhor diríamos, com a sua clássica significação, mas ainda o enobrecendo de modo positivamente arbitrário.
O clérigo não será somente o letrado eclesiástico ou mesmo leigo, mas sim, todo homem capaz de atividade espiritual desinteressada. O que, ao fim de contas, é antes restringir que alargar o objeto da sua crítica.
Afirma Julien Benda — e ninguém o contestará — que, em todos os tempos, houve no seio mesmo da civilização ocidental, um escol, uma elite espiritual que, transcendendo, pairando muito além das lutas temporais, atuou intelectual e moralmente sobre os seus contemporâneos pelo exemplo do absoluto desinteresse e a livre e pura defesa dos princípios.
É o que atualmente não se vê mais, diz ele.
Homens da Igreja ou não, o certo é que os intelectuais de mais notoriedade nos tempos que correm, são, todos, traidores da própria função de pensar, são todos políticos, todos apaixonados do relativo, todos preocupados do quotidiano, todos em atividade prática e, pior ainda, quase todos — e sempre os mais notáveis — como instrumentos do ódio — ódios de grupo, de nação ou de classe — por isto mesmo mais do que nunca vivos e mais do que nunca generalizados.
O clérigo, portanto, traiu a sua missão na terra, de onde ser bem provável o aniquilamento da civilização que o criou, na qual o que há ainda de bem positivo e indiscutido é mera “ação do costume, atos feitos por hábito, sem que a vontade tenha parte neles, sem que o espírito reflita o espírito que eles têm”.
Julga Julien Benda que se o espírito dos nossos realistas atentasse um dia no que eles são, acabaria por proibi-los.
E a lição do pessimista é verdadeiramente atroz. Não fica, ao fundo da taça que ele nos apresenta, uma só gota do veneno. Ele parece sorrir demoniacamente ao brilho passageiro de cada uma, tocada pela luz da análise mais crua, como um pequenino mundo infernal, a cair sobre a nossa abrasada sede de verdade.
E as surpresas de uma severa documentação deixam-nos, às vezes, estarrecidos. É do seio mesmo das hostes mais respeitáveis da Igreja, que ele arranca, sucessivamente, os mais rudes e golpeantes exemplos da pragmatização geral do esforço espiritual, de sua já quase absoluta rendição às paixões do século, da sua conformidade à prática mais cruel.
O caso de Sertillanges, por exemplo, é, à primeira vista, de estarrecer: um homem da Igreja, e dos mais altamente situados nos domínios da especulação filosófica, fazendo a apologia do homem de garras, do herói de “coração duro como o diamante”, vivendo da guerra e para a guerra, fazendo a guerra pela guerra.
Mas é na facilidade mesma com que é possível a Julien Benda desenvolver a sua tese, que se deixa ver a falha de sua documentação interna, da sua psicologia, enfim, relativamente aos fatos por ele apontados e coordenados como elementos de prova. Pelo menos no que diz respeito ao pensamento católico, à atuação intelectual, à atividade espiritual da Igreja.
O homem perfeito da Igreja será sempre S. Bernardo ou S. Francisco de Assis — a especulação ou o lirismo, mas sobre um plano de vida real, de vida humana, de relações eminentemente práticas, eminentemente sociais.
Logo: não há contrapor a Benda o que, em geral, se lhe tem contraposto. Nem é verdade, por exemplo, que ele pregue a volta à “torre de marfim” por parte do nosso clero. O que o seu livro afirma em relação a católicos e não católicos, eclesiásticos e leigos, e que eles não levam mais ao domínio mesmo da prática o espírito puro, os postulados da moral transcendente dos fatos, aquilo mesmo que muitos chamariam ainda hoje a loucura da Cruz.
O erro de Julien Benda, quanto a nós, católicos, é, pois, só de ordem interna à sua tese. Ele tem uma visão errada, não da Igreja, dos nossos dias, mas da Igreja eterna. Ele não sabe ver que os homens que mais altamente a representam no campo da atividade intelectual (um Sertillanges, por exemplo) são homens que se dirigem ao que o filosofismo alemão até a guerra chamava “a totalidade humana”.
Em tempo algum o heroísmo, do homem de guerra, nem a dureza política, repugnou à filosofia católica, cujos maiores representantes, aliás, foram de si mesmos homens de guerra intelectual, do abrasante Agostinho até S. Tomás que, com toda a placidez de sua alma, foi o que se pode chamar um reformador. E nem é necessário lembrar os Maistres, os de Bonalds, os Donoso Cortez, em esferas mais próprias de luta.
A verdade é que todos os heroísmos assim como todos os atos vulgares serão sempre julgados, dentro da filosofia da Igreja, não como fins em si mesmos, mas em relação à verdade superior que os dirige. O ato de guerra, por exemplo, no que ele tenha de beleza como toda a beleza, que, de um ponto de vista filosófico, tem fins em si mesmo. Mas como ato humano, e não só como ato do homem, não em relação ao seu fim imediato, mas, dentro de uma concepção humana da guerra, em relação ao seu fim último. O que quer dizer que num juízo de um Sertillanges sobre um Guynemer, o que há, de fato, é uma hierarquia de juízos, e não se pode compreender o mais alto sem ter em conta o que lhe serve de base; o que há, em verdade, é uma ordem interna (invisível a quem não esteja penetrado do mesmo espírito católico) de que só deixa uma face, ou melhor, um resultado sintético. E se não fora assim, nem seria possível a linguagem escrita ou falada a quem representasse realmente um sistema de ideias tão fortemente ordenado como o da filosofia clássica ou tradicional.
Perguntando-se ao cardeal Lavigerie o que faria se lhe dessem uma bofetada na face direita, este respondeu: “Sei perfeitamente o que deveria fazer, mas não sei o que faria”.
Benda, que opõe esta atitude espiritual à dos que, como Sertillanges, sacrificam às paixões terrestres, o que pede é que saibamos manter, pelo menos, este paralelismo entre a doutrina e o ato.
Mas o seu engano está justamente em pensar que o que lhe parece o “romantismo da dureza” dos nossos homens da Igreja, não corresponde à pura doutrina cristã. Para nós, católicos, não há como diferenciar o Cristo das criancinhas do Cristo que fez uso do chicote.
E o que, em verdade, mantém um Sertillanges é, não um romantismo da dureza, mas a reação eterna do bom senso contra o romantismo da meiguice e da ternura, de resultados tão funestos sempre para o gênero humano.
O que há a afirmar sem medo de errar é que nem todo o mundo tem o direito de dar a face esquerda a quem lhe esbofeteia a direita. É preciso primeiro imitar Jesus pelas plantas dos pés, saber, pelo menos, escolher o caminho a seguir, seguir o seu rastro luminoso.
Tudo o mais é a covardia a mascarar-se de heroísmo, e é contra essa indistinção que a Igreja se levanta.
E o que, em relação a nós, parece a Julien Benda uma traição à inteligência pura, não é mais do que preito e homenagem à verdade integral.
Não é por este lado, pois, que se caracterizará uma traição dos nossos clérigos, pelo menos.
Gazeta de Notícias, 11 de janeiro de 1928