Jackson de Figueiredo
Honrou-me Louis Dimier com a oferta do seu último livro, um ensaio de vastas proporções sobre a vida de Descartes. É o quinto volume da excelente coleção que vai editando a Livraria Pion, de Paris, sob o título geral “Le roman des grandes existences”.
O amor de Louis Dimier à obra de Descartes já me era conhecido.
O seu profundo e sóbrio estudo da filosofia cartesiana, editado em 1917, foi mesmo o guia mais seguro que já encontrei para quem, apaixonado pela filosofia da Escola, deseje, no entanto, conhecer todo o bem que um espírito verdadeiramente católico pode dizer a quem cabe o título tão inquietante de iniciador da moderna filosofia.
Após os dados acumulados de Baillet, no século XVII, a Adam e Tannery, em nossos dias, o novo trabalho de Louis Dimier visa, exclusivamente, a biografia de Descartes. Como o reconhece, porém, o próprio autor, não seria possível, sem mutilação do assunto, deixar de descrever, pelo menos nas suas linhas gerais, o sistema do grande reformador, e é por isto, antes do mais, que é sumamente atraente esta apologia de uma vida em que o romance é, sobretudo, afirmação de inteligência, ou o drama da razão individual que se propõe a refazer a história e a vida da razão universal, melhor, que se propõe como medida de que ela própria julga imensurável.
Descartes foi o homem que ousou dizer a Gassendi: “não se me dá de saber nem mesmo se houve homens antes de mim; quero filosofar como se fosse só no mundo”.
Ora, é daí em diante que ao simples bom senso cabe o direito de duvidar da solidez do sistema cartesiano, e é por isto também que quem tenta traduzir o título apenas da presente obra de Dimier – dada a tendência a identificar o espírito criador e a sua criação – não menos inquietamente indagará do valor real do adjetivo, único em questão. De fato, o “raisonnable” de Dimier, como traduzi-lo?
A vida racional de Descartes? Não parece uma restrição do assunto? A vida razoável? Não é baixar ao nível do simplesmente admissível? A vida racional? Não é dá-la como hipótese aceitável? A vida prudente, sensata, guiada pela razão, cuja característica foi a atividade racional, não será ceder demasiado ante o vitorioso orgulho que assinala uma decadência do espírito humano?
Julgo melhor não discutir aqui a magna questão que o livro de Dimier, sem, no entanto, aprofundá-la, subentende e implica. Estava, no direito do autor deixá-la, assim, à sombra, pois o seu fim era o do biógrafo e não o do historiador e crítico de filosofia.
Mas a quem, sem desconhecer os triunfos cartesianos contra o ceticismo do século XVII, e sem negar a Descartes o lugar que lhe cabe entre os maiores e mais sérios pensadores da humanidade, não aceite, entretanto, a substituição que tão insidiosamente se insinua, bastem as palavras de Maumus, que com firmeza resumem o que há a dizer: “Se Descartes se tivesse prendido à grande tradição filosófica do século XIII, talvez tivesse oposto barreira ainda mais sólida à maré montante do ceticismo, porque, confessamo-lo sem dificuldade, era um poderoso espírito. Mas quis ser só, desdenhou do socorro dos que o precederam, desconheceu a grande lei da solidariedade e da comunhão das inteligências, e atraiu sobre si a ameaça da palavra eterna: voe soli”.
O livro de Dimier arranca-nos felizmente a estas cogitações, para nos pôr em contato com problemas mais terra a terra, porém, realmente curiosos e atraentes.
De um lado há “uma vida” de Descartes, como nem todos esperam, os que acostumaram o espírito àquele ponto da legenda em que aparece o filósofo passeando entre os homens como por entre árvores… “C’est une vie: l’une des plus curieuses et des plus attachantes qu’il y aint, l’une aussi des plus dignes de gloire, du consentement universel”. E Dimier o prova.
Há um Descartes vivo, ativo, quase romanesco, se bem que sem nada de romântico, como seria do agrado das nossas estragadas sensibilidades. Descartes correndo a aventuras de guerra e de viagem, fazendo frente a ladrões do mar, enfrentando, por simples curiosidade, fechados preconceitos de cidades de fisionomia medieval… Depois, as suas polêmicas, os arrebatamentos do seu tremendo orgulho e as suas desilusões do mundo, não menos comoventes do que o seu interesse, o seu carinho por pequeninos e humildes, contrastando com a profunda beleza do seu equilíbrio nas relações com os grandes e poderosos, alguns dos quais, como aquela princesa Elizabeth, digna de toda a sua ternura e de toda a sua força espiritual.
Mas há outros aspectos do livro de Dimier que ainda mais interessam a nossa atualidade…
A incredulidade, diz Dimier, é, ao contrário do que geralmente se propala, tão velha quanto a catolicidade. O fanatismo panteísta dos Brunos e Vaninis, e o ceticismo dos Montaignes e Charrons haviam, do tempo de Descartes, se transformado na seita dos libertinos que o próprio Estado teve que enfrentar em lutas porfiosas de opinião, tão em favor estava ela entre os grandes.
“Peut-être ou s’attend peu a voir paraitre Descartes em redresseur de ces mécreants. Son rôle, à cet égard, n’est pas moins oublié que la propagande des libertins. Cependant cette propagande l’avait beaucoup ému. Il forma le dessein de la combattre, apparemment dans le temps ou le sejour de Paris le rendit témoin de ces événements”.
E Dimier, para escaldar a ferida dos que tão afrontosamente mentem em relação a tudo quanto se refere à Igreja:
“Double sujet d’étonnement de nos jours, óu les ennemis de J’E’glise ont maquillé son personage au point de faire de ce Chrétien docile um coryphée de libre pensée, quoique rien ne soit plus évidemment faux, car il n’y a pas au monde de fait mieux établi que la fidelité de Descartes em religion”.
O ensaio de Dimier, deste ponto de vista, é uma obra de justiça, de justiça a Descartes, que nós mesmos, católicos, não devemos esquecer nunca, sejam quais forem as nossas opiniões em relação ao seu sistema filosófico.
Se as consequências das suas doutrinas podiam levar ou aos excessos de Malebranche e Fenelon ou ao estúpido mecanicismo nosso contemporâneo, a realidade é que, quer no seu corpo de doutrinas, quer nas suas explicações de pontos particulares, jamais Descartes deixou ver outras intenções que não as de um vingador das verdades eternas, defendidas pela Igreja.
Que a “intuitus mentis” cartesiana seja a simples luz natural, adequada à lógica vulgar; que a sua teoria da matéria implique dificuldades em relação ao dogma da Eucaristia; que as suas “ideias inatas” não representem mais que “a disposição inata de produzi-las”; que a sua teoria sobre as leis da natureza esteja, contra o geometrismo ou a simplicidade newtoniana, a ter surpreendentes confirmações da ciência moderna; tudo isto é digno de atenção e de estudo, e se nem sempre os seus apologistas nos convencerão de que ele encarnava a verdade, pelo menos o imporão sempre ao mais alto respeito intelectual. Outra coisa, porém, é o selo de catolicidade da obra de Descartes, que não devemos deixar quebrar, impunemente, em nossa vista. E é esta defesa o que, se bem que sempre incidentemente, Louis Dimier consegue fazer, sem deixar dúvida em espírito de boa fé.
“Descartes – diz ele – distinguiu quatro espécie de espíritos: os que são capazes de descobrir a verdade; os que a reconhecem quando a apresentam; os que só estão à altura de seguirem os demais, por deferência para com a autoridade e os que seguem sem refletir, por imitação. Um tal discernimento das aptidões dos homens é o contrário dos princípios do livr pensamento, de que alguns o proclamaram pai”. A resposta de Descartes relativa à conversão de Eduardo, irmão da princesa sua grande amiga, é também uma prova da sua admirável firmeza em matéria de fé. Mas quando esta e outras não existissem, bastaria imaginar que, para roubar-se Descartes ao grêmio católico, seria necessário aprontá-lo como tipo da perfeita hipocrisia e covardia moral.
E é isto o que esquecem, as mais das vezes, os que buscam endeusa-lo, não já como reformador em filosofia, mas como aliado discreto e prudente dos que, ante os evidentes recuos da Reforma, procuravam por outros modos solapar os alicerces da Igreja.
Louis Dimier sabe tirar deste dilema, sem feri-lo diretamente, as notas mais límpidas e mais formosas em favor da sinceridade do seu grande patrono. E não vem elas desacompanhadas de edificantes “ilustrações sobre a suposta fuga de Descartes, dos países de “jugo católico” para os liberalíssimos meios em que predominava a Reforma.
Dimier não reduz somente a nada a calúnia anti-católica.
Ele documenta, da maneira mais perfeita, o que era o fanatismo dogmático dos homens e das instituições protestantes com que, mais de uma vez, o filósofo francês teve que lutar vivamente, e bastaria esta feição do seu ensaio para torna-lo um dos mais úteis e mais sérios da bela coleção de que faz parte.
A vaidade individualista, em todas as suas formas, recebe de Dimier, com armas tão bem temperadas como todas as que serviram a Descartes, golpes certeiros e desmoralizantes.
Gazeta de Notícias, 29 de dezembro de 1926