Jackson de Figueiredo
Entre os livros que tem surgido ultimamente, em nosso meio literário, creio que um dos mais dignos de atenção é o do Sr. Mota Filho: Introdução ao Estudo do Pensamento Nacional, o que ele faz historiando e analisando, nas suas linhas gerais, não só a origem, a filiação, mas também o desenvolvimento e a perfeita florescência do nosso Romantismo. O Sr. Mota Filho realiza, não resta dúvida, obra admirável, da parte de quem sendo tão moço, vive em meio ainda tão hostil, como o nosso, a esses longos e vastos empreendimentos do espírito crítico. Ele, aliás, não cansará ninguém que o queira ler. Mostrando-se muito bem informado, máxime quanto ao que o seu assunto tem de universal, o Sr. Mota Filho foge “à falaz erudição livresca”. O seu livro, diz ele próprio, “não é uma história do pensamento pátrio, mas uma visão panorâmica do mesmo”. Ele tem realmente qualquer coisa da límpida impulsividade de Fay, mas os seus impulsos são, evidentemente, partidos de mais profundas regiões do espírito.
É preciso, porém, dizer que, se poucos dos nossos críticos têm demonstrado um tão sério conhecimento do complexíssimo problema que representa o Romantismo na história dos povos cristãos, mesmo em face do seu livro, não desaparece a dúvida de que baste esse título para abranger todas as manifestações da indisciplina e da desordem no seio da civilização ocidental.
Creio que neste sentido o Sr. Mota Filho exagera um pouco ou generaliza em demasia, o que quer dizer: simplifica muito o doloroso problema.
Confesso que não me são estranhas generalizações desta ordem: S. Paulo, Agostinho, Lutero, Pascal, Fenelon, apresentados como românticos, por espíritos sutis e penetrantes, mas em geral poucos afeitos ao fastidioso labor das distinções, das classificações, das delimitações psicológicas que, digam o que disserem, hão de ser sempre, no entanto, o cerne de todo esforço para uma história crítica das ideias ou melhor para uma história da civilização.
Note-se que faço justiça ao Sr. Mota Filho. Ele soube — repito — informar-se, e é leviana a acusação — que já li — de que deva a leituras de segunda mão a sua orientação crítica sobre o romantismo nacional, sendo que, se tal acusação o quisesse alcançar também quanto ao que se tem passado para além das nossas fronteiras literárias, a injustiça seria flagrante, originada em desconhecimento dos nossos autores ou em pura má fé.
Mas o que acabo de notar, e deixará, a mais de um, uma certa desconfiança dos recursos culturais do Sr. Mota Filho, vem justamente das falhas do seu processo “panorâmico”, do seu processo crítico, a que alguns descuidos de linguagem — quase incompreensíveis em livro tão sério — dão relevo exterior.
A verdade é esta: o processo crítico do crítico do Romantismo, é incontestavelmente, na sua estrutura externa, um processo realista. Vale-se de uma farta documentação, da comparação e da análise das suas fontes de informação. Mas o espírito que anima toda essa atividade propriamente crítica é um espírito romântico, isto é, em que predominam intensa sensibilidade literárias e as representações, por assim dizer, fulminantes de um intuitivismo que supera em muito as forças ordenadas da sua razão, a sua capacidade de argumentação e de análise sobre dados particulares. É notável a profundez dos seus golpes de vista, a rapidez com que apreende atitudes, às vezes, extremamente complexas, a força configuradora da sua expressão literária, em relação à massa de fatos morais verdadeiramente estonteadores, que se refletem na literatura moderna, e ainda mais na contemporânea.
Mas é isto mesmo a prova de que, ao Sr. Mota Filho, o que interessa são os traços gerais, a característica, o essencial, enfim, para uma visão sua, panorâmica, do mundo, mas não para a visão de um dado período de história literária, que um seu leitor quisesse distinguir de outros, com a ajuda de dados propriamente históricos, isto é, sobre planos diferentes. A simultaneidade das impressões permitirá, no foro íntimo do Sr. Mota Filho, essas sutis diferenciações, que só o espírito culto nato — para usar, como já o fez Grierson, de uma ousadia nietzscheana — é capaz de sentir e viver. O leitor ronceiro e pouco acostumado às lides com assuntos de tanta relevância, na história do pensamento humano, pouco aprenderá, na sua obra, e até não duvido que saia desta leitura com o espírito agradado, mas com ideias ainda mais confusas e indefinidas.
Porque quando o Sr. Mota Filho diz ao mundo romântico que é “um vasto mundo sem perspectiva”, nós o compreendemos, nós que sabemos uma das características da literatura romântica essa perpétua mobilidade de horizontes espirituais, em que se retrata a multiplicidade dos temperamentos, dado que o Romantismo quase que deixou à sombra o caráter, a personalidade — para usar da expressão ressurreta por Maritain — isto é, do elemento em que se pode apreender a unidade essencial do espírito humano. Mas é preciso compreendê-lo também, ao Sr. Mota Filho, quando, com a mesma imperturbabilidade dos intuitivos, mostra, e aí com muita razão, também as fundas perspectivas do Romantismo nacional e não se esforça por demonstrar que não há contradição da sua crítica…
“Não pudemos ainda julgar o romantismo” — diz ele. E acrescenta: “Falta-nos tudo. Mas, no fluxo e refluxo das ideias universais, podemos vê-lo assim, com suas vantagens e com seus defeitos. Exaltou o indivíduo até a desordem. Propagou a anarquia moral, jurídica, política, religiosa e literária. Mas, por sua vez, trouxe pensamentos novos, obrigou o conhecimento de certas verdades e de certos direitos — horizontes mais abertos, aspirações mais amplas”.
Isto é o resultado do seu balanço universal.
Vejo com simpatia, que, com relação ao Brasil, o Sr. Mota Filho chega à mesma conclusão a que cheguei: — que não é possível julgar o movimento romântico nacional com o mesmo travor de pessimismo com que o julgam, com razão, os reacionários europeus, principalmente os franceses da escola de Maurras.
O Romantismo representa no Brasil, já o disse muitas vezes, a afirmação vitoriosa da única revolução que dignifica a nossa história: a revolução pela independência, a afirmação, melhor diremos, da nacionalidade.
Pouco importa que outras sejam as esperanças do Sr. Mota Filho, relativamente às últimas consequências do Romantismo na formação da nossa cultura e que a sua interpretação do que já se tem vista se ressinta, quase sempre, das incertezas de um critério puramente individualista, mas já sinceramente desconfiado do seu próprio valor.
Uma coisa parece ficar assente: é que o senso crítico nacional contemporâneo cria, para nós, um novo tipo romântico ou demonstra que o romantismo não é, em nossa história, negação e delírio, mas o primeiro impulso de personalidade coletiva, com exageros, com falhas, não resta dúvida, mas em geral são, e sempre sintomático de uma atividade normal e expansiva.
Não se deve esquecer que o Romantismo português, conforme o demonstrou de modo irrefutável o admirável Antônio Sardinha, foi produto de circunstâncias históricas que o singularizaram em face dos movimentos que, com o mesmo nome, subverteram os quadros culturais de todas as nações da Europa. Em Portugal, o Romantismo foi também uma reação no bom sentido da palavra, uma espécie de volta a si mesmo do povo português.
Ainda neste caso, será possível diminuir o valor do nosso, registrando-o, na história do pensamento nacional, como um tributo mais da nossa servidão imitativa?
Creio que, lealmente, se pode dizer que não, e não haverá quem ouse negar em Portugal que o Romantismo brasileiro foi um movimento literário intimamente relacionado à nossa reação social e política contra a influência lusitana.
Em Portugal o caráter reacionário, nacionalista, do movimento, visou o plano meramente cultural. Aqui, pelo contrário, ele foi idêntico às paixões mesmas em que se exaltava o sentimento da pátria nova, receosa da indefinição ainda sensível dos seus limites morais.
Creio que da visão panorâmica do Sr. Mota Filho, é esta a sugestão que nos fica, consoladora, animadora, encorajante.
Não é pouco, em momento de tanta desordem, quando parecem de todo perdidas as lições do nosso passado, e absolutamente anêmica a nossa memória experimental…
O Sr. Mota Filho se esforça por descobrir e por de novo nas nossas mãos o fio de inteligência, da consciência propriamente nacional, que ligou sempre, em nosso passado, as cegueiras do nosso empirismo e os tumultos da nossa irreprimível exaltação sentimental. É pena que tenha descurado tanto o fator religioso, ou não tenha sabido dar-lhe o nome próprio todas as vezes que com ele se deparou.
Mas quem escreveu essa Introdução ao Estudo do Pensamento Nacional ainda o verá de perto, no íntimo da sua contextura, no que ele tem mesmo de mais resistente, de indestrutível, o que quer dizer (como em relação a todas as mais unidades de cultura) de já perfeitamente caracterizado como harmonia de particular e universal, de nacional e de católico.
Gazeta de Notícias, 23 de março de 1927