Jackson de Figueiredo
Tive a honra de receber há pouco tempo o livro do padre J. Chansou: “Etude de Psychologie Religieuse sur les Sources et l’Efficacité de la Priére dans l’Experiénce Chrétienne”, e confesso que não me custou pouco o esforço para determinar-me à sua leitura. Pelo título seria difícil ajuizar do que prometia o volumoso ensaio do professor de Teologia do Pequeno Seminário de Toulouse. Ou iria deparar-me com um dos muitos pretensiosos arrumadores de fatos ao gosto do psicologismo contemporâneo dos Leubas aos Freud, etc., todos mais ou menos dominados por uma ideia preconcebida, e de origem mais ou menos materialista, e não tendo, ao fim de contas, valor maior que um simples valor descritivo; ou iria ver, sob as roupagens escuras de um devocionismo de mau gosto, mais um dos muitos tratados em que a vida interior se nos apresenta como em centímetros e milímetros, toda superfície, toda em figuras de um geometrismo bem mais árido que o matemático.
Ora, nem mesmo esta segunda espécie de psicólogos religiosos seria capaz de ajudar-me na minha própria luta interior. Porque não apresentam mais que expedientes metodizados para disfarçar a angústia de viver, e nunca mais fugirão à palavra de fogo com que os marcou um espírito, no entanto, tão casto e tão manso, como foi o de quem legou ao homem dos nossos dias aquela obra prima: “La Vie Intérieure simplifiée et ramenée á son fondement”, esta, sim, verdadeiro ensaio de psicologia religiosa, sob a base de princípios que na verdade o são, e ligam a vida intelectual à vida afetiva do crente cristão.
Encarar a prece através de outro prisma que não este, tão simplificador, mas tão humano, seria, para mim, inútil sacrifício.
Mas a leitura da obra do padre Chansou — mal a iniciara — transformou o meu infundado receio na alegria de uma perfeita intimidade espiritual, com um dos mais sérios e mais argutos mestres da psicologia religiosa, no que esta tem de mais delicado, e mais complexo. Posso mesmo afirmar que poucos livros contemporâneos têm me causado mais orgulho, em relação à minha fé, porque raros sustentam com tanta serenidade e com tanto vigor o embate do saber e da experiência cristã com a onda terrível da moderna análise científica e filosófica, ainda mais terrível (como nos casos de James e de Bergson) quando a sentimos, impulsionada por um grande amor da verdade, rolar sobre o plano de uma inexorável contradição. O James da segunda fase, por exemplo, como compreender a sua negação do Deus transcendente e pessoal em face da visão tão clara de que “a energia espiritual pode modificar de maneira sensível tanto os fenômenos materiais como os da alma”?
E Bergson, que dizer do seu recuo, ante a mesma afirmação, quando não lhe escapa que “o domínio próprio da vida é o da compenetração recíproca” e nem mesmo esta certeza de um mundo invisível, a envolver todas as individualidades do mundo visível?
Eis aí, clara, a tendência oriental do impessoalismo contraditório e de todo em todo ineficaz, e estéril do ponto de vista moral.
O padre Chansou não recua, porém, em face de nenhuma das dificuldades que apresenta o formidável labirinto da psicologia contemporânea, e as enfrenta de rosto alegre, pois já não o satisfez pouco a verificação de que está morta a “psicologia sem alma”, a psicologia do desespero e da morte, tão eficazmente combatida, entre nós, por Faria Britto.
O seu livro não é, pois, nem um histórico da prece cristã na sua forma coletiva e individual, nem mesmo a determinação do seu valor propriamente religioso. É, rigorosa, positivamente, um ensaio de psicologia, a descrição, a análise de todos os movimentos originários e finalísticos da prece, assim como da objetividade dos seus resultados na vida dos homens.
Quanto ao método adotado em obra de tanta audácia, e levada a fim com tanta plasticidade e firmeza, é o que se poderia chamar, tomando de empréstimo a Bergson a expressão já citada, o da compenetração de todos os elementos da psicologia eterna, isto é, a que não despreza testemunho algum, a que não sacrifica dado algum sobre a ara de preconceitos científicos ou filosóficos, e a todos funde numa síntese de intangível boa-fé.
Por isto não lhe treme a mão ao traçar o elogio da psicologia contemporânea. Ele não estranha o trabalho de decomposição a que foi sujeito o “eu” humano. Era, até certo ponto, preciso alcançá-lo nos seus elementos irredutíveis. “Le “moi” c’est tout l’ensemble des états interieurs qui ont contribué á la formations de la personalité compléte. Le “je”, c’est le príncipe, la source permanente d’oú jallit l’activité spirituelle. Sous le revétement des pensées superficielles, le “je” semble quelquefois disparaitre.
On vit á l’exterieur, on se mêle aux événements passagers, on se disperse. Et dans cette dispersion, la vie psychologique, telle un ruins seau sinueux au milieu de praries marecageuses, perd sa vigueur. Pour reridre l’énergie au courant interieur, il faut le ramener dans son lit profond, et par un effort de refléxion, rattacher tous les états de conscience á leur source”.
É partindo daí que as suas análises sobre o esforço para a elevação; sobre o caráter eminentemente ativo da prece (reproduzindo e completando os argumentos de Joseph de Maistre quando nas “Soirées” refuta as objeções ao senador quanto à identidade da prece e do desejo); sobre o sentimento da presença, em que mostra quanto a análise de Secretan se harmoniza com a tradição das almas piedosas, e demonstra a sua irredutibilidade à certeza resultante do raciocínio lógico ou da mera representação sensível; sobre a súplica, como fonte de energia benfazeja, e jamais deprimente do comércio entre Deus e a sua criatura, mostrando, ao mesmo tempo, a incrível superficialidade das interpretações de James e Guyot e quanto, enfim, o pedido material ultrapassa o horizonte estreito do egoísmo; sobre o sentimento de universalidade que se contém na prece, evidenciando toda a verdade da palavra de Gratry: “les hommes se touchent d’un bout du monde á l’autre… par um réel contact de leurs ames”, encaradas, pois, as preces individuais como uma fragmentação do plano divino; é partindo dali, repito, que ele compreenda este estudo descritivo, dos contornos psicológicos da prece, com o estudo, não menos profundo, das suas origens, e do seu aparecimento à superfície da vida psíquica, aparecimento que não se faz de repente, mas através de condições psicológicas bastante acentuadas e influências morais e sociais, que não são para desprezar, em análises desta natureza.
O padre Chansou não se receia de aceitar a verificação de excitações e depressões de caráter patológico que não raro antecedem ou acompanham a prece invulgar do místico, mesmo do místico rigorosamente ortodoxo, e o seu livro, no ponto em que demonstra que a predisposição nervosa anormal nas almas piedosas e nos místicos em particular não é coisa provada, é, ao que me parece, a mais séria resposta que já foi dada aos Leubas, aos Flournoy, etc., tal o critérios das suas distinções e o valor dos seus argumentos, sempre sobre a base de fatos, por esses mesmos psicólogos aceitos e comprovados.
Fora longo estender-me ainda sobre o seu admirável estudo do temor religioso ou da autossugestão como origem principal da prece, fatores que ele, sem desprezar, sabe reduzir às suas verdadeiras proporções, e que só uma superficialíssima visão da vida íntima do crente tem levado psicólogos, ditos experimentais, a por num relevo de todo em todo injustificável.
Mas a parte mais bela e mais profunda do livro do padre Chansou ainda é a que se refere à objetividade dos resultados da prece na vida dos homens.
Ele sabe, através de todas as negações do materialismo e do ceticismo, paradoxalmente militante, cotejando-as, comparando-as com as afirmações dos mestres cristãos, mostrar aquele “abismo de simplicidade” de que falava Ruysbroeck, em toda a sua divina nudez, que será a vida do ser como ser, em absoluta identidade consigo mesmo, isto é, com a criatura tal qual a criou Deus, conquista suprema do verdadeiro contemplativo.
Mas, descendo a escala dessas realizações da divina claridade que se esconde até nas criaturas manos espirituais o padre Chansou prova, com o testemunho de toda a humanidade consciente, que a prece é uma forma psicológica da ação, uma verdadeira participação da força divina, o que Pascal tão lapidarmente soubera exprimir: “Deus estabeleceu a prece para comunicar às suas criaturas a dignidade da causalidade”.
A obra do padre Chansou não visa, como se vê, ensinar a orar. Uma coisa, porém, é certa: quem tiver a felicidade de a ler e meditar, sentir-se-á feliz se já conquistou o hábito da oração.
Compreenderá melhor o valor da própria alma, de um ponto de vista que transcende infinitamente dos mesquinhos recursos naturais com que luta na face da terra.
Gazeta de Notícias, 26 de outubro de 1927