Jackson de Figueiredo
A maioria dos críticos franceses desejou diminuir o valor da obra de Romain Rolland, só pelo fato de ser este escritor um homem de ideias evidentemente favoráveis a uma ligação mais íntima entre a França e a Alemanha.
Houve quem dissesse que o “Jean Christophe” aproximara mais os dois povos que cinquenta anos de esforços diplomáticos, o que, aliás, equivale dizer que aproximou muito pouco, pois será difícil mostrar na história dos povos ocidentais uniões sinceras e duradouras oriundas da ação da diplomacia. Basta, porém, encarar a obra de Romain Rolland, somente por este lado, para que se imagine a seriedade de que toda ela se reveste aos olhos, não só do público em geral, mas do historiador, máxime após a tragédia monstruosa de que todos nós fomos espectadores e vítimas, tragédia esta que Romain Rolland não só adivinhou como descreveu e, por evitá-la, lutou, empregou todas as forças mais nobres da sua inteligência e do seu coração. Por isto foi a crítica francesa, como disse, a que menos lhe foi favorável, em toda a Europa. Houve quem na França mesmo ousasse dizer que o “Jean Christophe” era a epopeia da civilização contemporânea, mas ninguém perdoou ao francês, que é Romain Rolland, o desejar que, sobre as amarguras de 70, caísse um véu de esquecimento. Quer isto dizer que, acima de interesses reais e do mais generoso idealismo, acima de todas as verdades e vantagens na ordem política contemporânea, a velha e nobre sociedade francesa pusera uma só verdade moral: a de que a sua dignidade de povo fora maltratada cruelmente e necessitava apagar a lembrança da derrota com uma vitória, custosa ou não, pouco importava.
Erraram os franceses? Só Deus o sabe e não nos cabe julgar. Só no Brasil, uma imprensa, quase toda organizada sobre uma base de forças econômicas estrangeiras, nega o direito de errar a quem quer que seja, o mais patriota, que por acaso tente analisar a nossa situação moral, em face dos povos que nos procuram.
Entretanto, poderá ser lembrado que também em França não pôde viver Romain Rolland, após a publicação, em plena guerra, de seu livro “Au dessus de la mélée”. Mas aí o fato é todo compreensível, e é mesmo ao escritor francês que se deve acusar de vaidade desmesurada quando, sob a tempestade de fogo e ferro que devastava a sua pátria, quis mostrar serenidade, ou melhor, uma isenção de ânimo incompatível com o momento e até com a natureza humana.
Este, para mim, o único erro de Romain Rolland, a quem julgo, neste caso, como se eu próprio fosse francês. Como homem, porém, que sabe admirar a Alemanha e a França e amá-las também, outro é o meu modo de encarar a “Vie de Jean Christophe”.
Esta obra imensa de que se pode dizer que é mais complexa que a de Shakespeare, dentro de uma rigorosa unidade, ou melhor, nascida e desenvolvida num círculo de ideias sistematizadas, é, a meu ver, o mais amplo quadro em que ficarão desenhados para os séculos vindouros, todos os tormentos, as dores, as ânsias, esperanças, vitórias, misérias e desenganos destes últimos cinquenta anos da vida social da Europa, da Europa idealista e progressista mas ferida nas fontes da vida moral, porque descristianizada, e só idealista, e só progressista de um ponto de vista errôneo, terra a um tempo fulgurante e sombria, como a alma mesmo do industrialismo que se fez o fim único da vida dos povos ocidentais.
As próprias ideias de Romain Rolland, as que deram à sua obra este caráter de unidade, que falta à de quase todos os grandes ficcionistas contemporâneos, são, a meu ver, más, incapazes de dar à humanidade um só alento, uma orientação mais firme na reconquista de si mesma. O individualismo que as anima jamais poderia dar ao homem de nossos dias o roteiro da perdida resignação e humildade, com que é forçoso atravessar este misterioso vale de lágrimas. O que faz, entretanto, digna de amor, de admiração e respeito a obra de Romain Rolland é que, ao lado deste seu péssimo filosofismo, as forças puras da sua arte fazem a miraculosa pintura de tudo quanto temos sofrido, de tudo quanto se tem sacrificado de paz e encanto nas aras do nosso desmedido orgulho. E é desta pintura comovida e comovedora de todos os trágicos aspectos da civilização ocidental, desde os mais humildes ― das almas, no seu insulamento ― até os mais grandiosos ― dos povos, das multidões, nas suas tremendas lutas ― que emana uma outra filosofia, suavíssima, animadora, vivificadora, de que o próprio Romain Rolland parece não ter consciência, e que se transmite a outras almas como que educando-as para o sacrifício, como que para incitá-las a sofrer com dignidade. O idealismo teve, afinal, no criador de “Jean Christophe“, um tipo digno de admiração, mesmo da parte dos seus mais firmes adversários.
Ora, no Brasil, estávamos nós acostumados a importar tudo quanto naquela Europa, assim revolta e malsã, havia de pior. Infames voltaireanismozinhos de terceira ordem, grosseiras afirmações de um materialismo que, numa das suas mais brilhantes manifestações, pôde ser confundido com o “apachismo”, e por um homem de visão tão aguda como foi Renouvier.
Eis porque é, de fato, para alegrar-se a gente ver que outros já são os astros que à nossa mocidade intelectual iluminam e orientam, neste crepúsculo do mundo. Bem mais altos, bem mais luminosos, bem mais humanos!
Ainda não faz muito tempo que Ronald de Carvalho nos deu com a sua “Pequena história da literatura brasileira”, ele, um moço de vinte e poucos anos, o melhor livro que temos no assunto, liberto das dolorosas adaptações de escolas materialistas, inimigas, por isto mesmo que são materialistas, de todas as forças sentimentais que compõem a mais alta beleza de nossa vida de povo sul-americano, e há um tal vigor no idealismo do jovem historiador, que se não pode duvidar que ele subirá ainda mais alto, e há de fulgir um dia como estrela de primeira grandeza no horizonte intelectual de seu país, representando, entre nós, a reação do espírito contra o que Narcisse Muniz tão bem classificou de sonambulismo literário.
Agora, em livro de menor tomo, porém não menos sério, se revela Tasso da Silveira como uma destas novas organizações espirituais que tonificam, esclarecem e humanizam, neste momento, a atmosfera moral do nosso pequeno mas agitado cenário de letras.
De seu ensaio sobre Romain Rolland pode-se dizer mesmo que é uma das páginas mais sérias da nossa história literária, no sentido de que nenhuma já apareceu, tão despida de artifícios, e mostrando tão funda, íntima e fraternal ligação com este formidável mundo de dores e ideais, de que o criador de “Jean Christophe” fez a maravilhosa pintura, a suma sentimental e idealista.
Porque, se de um lado, este ensaio de Tasso da Silveira não apreende todas as faces da obra de Romain Rolland, a verdade é que nem foi esta a sua intenção, se é que teve mesmo o que propriamente se chama uma intenção, ao escrever esta página admirável. Tasso da Silveira antes obedeceu ao que não será errôneo chamar uma necessidade, uma fatalidade psicológica, traçando com mão nervosa, e ao mesmo tempo firme, a sua própria profissão de fé idealista, à margem da grandiosa epopeia do idealismo moderno, que é a obra de Romain Rolland.
Tasso da Silveira não tem, como Ronald de Carvalho, a fulgurante expressão, a requintada elegância de um escritor de pura latinidade. Por isto mesmo, porém, com menos brilho mas com mais gravidade, se nos apresenta refletindo melhor o que somos na alquimia misteriosa do Novo Mundo: uma gigantesca alma de povo em que se fundem, por influxo divino, amarguras e sonhos de dez outros povos, formando pouco a pouco um ideal tão alto e tão forte que só se pode interpretar como uma nova revelação social do próprio Cristianismo, na sua crescente unificação do gênero humano.
Romain Rolland vai assim exercer sobre a nossa mocidade intelectual uma influência que, há dez anos, fora quase loucura imaginá-la possível.
A reação do pensamento católico, ajudada pelo doloroso mas soberbo esforço de Farias Brito, como chefe do espiritualismo no Brasil, ou melhor, como credor da filosofia brasileira, ajudada por este mesmo ideal espiritualista, pressentido e fielmente defendido por Nestor Victor, nos domínios propriamente literários, desde o milagre simbolista entre nós, já vai dando os frutos de ouro de uma nova fase de mais coragem, mais ardor, mais sinceridade, no desenvolvimento da nacionalidade que, sentindo-se autônoma, sente agora a necessidade de marcar as fronteiras desta autonomia, no largo círculo da civilização cristã a que pertence.
O Jornal, 05 de Fevereiro de 1920.