Jackson de Figueiredo
Desenrola-se no Brasil um verdadeiro drama: há sangue derramado, desonras definitivas, lares destruídos, crimes de toda espécie, heroísmos silenciosos, sacrifícios admiráveis…
Não é possível, pois, deixar impune o valdevinos, o capadócio, o miserável que ouse “fazer graça”, “fazer espírito” com matéria tão grave e tão séria.
Eis o pensamento que me levou a comprar o livro do Sr. Assis Chateaubriand, “Terra Desumana”, livro em que faz o balanço do governo do Sr. Artur Bernardes e a análise da sua personalidade política.
A julgar por umas “apresentações” da imprensa paulista, o livro em questão seria assim uma sinistra coleção de graçolas mais ou menos insolentes sobre aquela fase da angústia nacional e, principalmente, sobre a figura central e mais representativa da grande luta que se trava no seio da sociedade brasileira, luta ainda mais social que propriamente política, e que merece de todo espírito digno deste nome a atenção mas persistente e mais sincera.
Comprei, pois como disse, e li com o maior cuidado o livro do Sr. Assis Chateaubriand, disposto, como estava, a responder a todas as suas injúrias no tom que elas merecessem. Graças a Deus, porém, o “ensaio” do diretor d’“O Jornal” não merece, nem de longe, a suspeita de obra pilhérica ou simplesmente leviana. Pelo contrário: é obra de ódio e de sinceridade, com objetivos claros de destruição, mas sempre animada de um tal amor da verdade, que o que resulta dela, a meu ver, é a mais bela, a mais formosa e forte, a mais ingênua, a mais objetiva, a mais insuspeita apologia que se poderia fazer do Sr. Artur Bernardes, assim, logo após a intensa campanha de ódios surdos ou rumorosos, provocada pelo seu governo.
E senão, vejamos.
O livro do Sr. Assis Chateaubriand é o libelo de um judeu contra um nacionalista Brasileiro.
É o próprio Sr. Assis Chateaubriand quem o confessa em mais de uma passagem do seu carlileanismo jornalístico.
“O Dr. Bernardes — diz o Sr. Chateaubriand, à pág. 54 — como jacobino que é, tem uma alta ideia da personalidade intelectual do brasileiro.
“Como o oriental, filho de civilizações pluricelulares, ele contempla com desdém o europeu, que aqui aporta com capitães e braços para explorar as fontes de produção do país. Eu tratei, representando um grupo estrangeiro, com o Dr. Bernardes como presidente de Minas, uma das questões que mais entendem com o desenvolvimento econômico da nacionalidade. Lamento não possuir cópias dos relatórios que mandei então para Londres.
O presidente Bernardes agia conosco com uma duplicidade felina, mas no fundo o que ele defendia era uma concepção industrial do problema perfeitamente respeitável num homem de governo, dominado das suas ideias. Ele não procurava servir de nenhum modo a interesses de terceiros contra os nossos, e isto fiz sentir a Londres, de quem eu chamava a atenção para a mentalidade asiática do presidente, que era um fanático, demasiado convencido da superioridade ou, se preferirem, da igualdade intelectual e ética do brasileiro em face do europeu, para se deixar seduzir tipo por qualquer forma industrial destinada a conferir a estrangeiros o controle de uma matéria-prima, pedra angular da defesa Nacional .
“Essa atitude de orgulho mental do Dr. Bernardes em face dos outros povos estrangeiros acaba de, mais uma vez, traduzir-se no recente caso da Liga das Nações.”
Pode se fazer um elogio mais caloroso da figura de um chefe de Estado de um patriota, de um homem que põe a sua pátria, a defesa da sua pátria acima de tudo? Pode-se, pelo menos, dar-se mais e melhores elementos para esse merecido elogio?
O ódio com que o Sr. Chateaubriand fala dele, do Sr. Artur Bernardes, do seu “fanatismo”, é o próprio Sr. Chateaubriand quem o explica ou torna fácil a explicação páginas adiante.
São palavras suas:
“O presidente jamais pode compreender essa viva simpatia com que encarei sempre as iniciativas da inteligência, do braço e do capital estrangeiros no Brasil” (pág. 63).
E mais:
“De todo o modo compreendo e explico a tragédia da incompreensão, pelo Dr. Bernardes, dessas ideias que norteiam minha ação pública. Como publicista, votado à tarefa da identificação mais íntima dos povos, adversário do nacionalismo, partidário da incorporação cada vez maior de braços e capitais estrangeiros à comunidade brasileira, dir-se-á que falo a cidadãos de uma pátria ainda por vir (Pág. 65).
Eis aí, claro como o sol, o motivo da oposição entre as duas mentalidades, a do suposto juiz e a do suposto réu. O juiz é um judeu, um meteco, na plenitude das suas ânsias de grandeza, aliado ao imperialismo industrial europeu ou norte-americano. O réu, o Sr. Artur Bernardes, é um brasileiro, amando o Brasil acima de tudo, e, ainda mais, o seu sossego, a sua paz, a sua segurança interna, do que os progressos artificiais, artificialmente provocados pela ganância estrangeira.
Arrastando ainda velhos materiais do arsenal maudisleano, não se cansa o autor de “Terra Desumana” de focalizar o Sr. Artur Bernardes de um ponto de vista de barata patologia política, mas bem pesadas as coisas, e ainda posta de lado aquela “tragédia”, de que seria cenário a consciência do Sr. Bernardes em relação ao seu grande inimigo, Assis Chateaubriand (!!), a feição patológica do patriotismo não caberia, neste debate, ao ex-presidente da República.
O moço jornalista tem a coragem de combater o Sr. Artur Bernardes, contando anedotas e comentando-as desta maneira:
“Quando eu discuti, em 1921, com ele, sobre a Itabira, numa atmosfera de cordialidade encantadora, pus-lhe diante dos olhos o futuro de Natividade, no território mineiro, com uma dúzia de altos fornos, produzindo 600 mil toneladas de aço, 40 mil habitantes, vilas operárias, construídas à americana, com higiene e conforto, hospitais, parques, jardins. O hirto faquirismo rousseauniano do presidente não se conteve, e exclamou:
— “O que estes americanos querem é roubar-nos braços à lavoura. Precisamos fugir ao urbanismo industrial, que é a nossa morte. Seria criarmos mais um meio corruptor e artificial dentro do país.”
— “Senti o Caraça — comenta Chateaubriand — a velha alma ancestral e tradicional, o aleitamento da sua primeira nutriz espiritual, nesta réplica espontânea.”
Pois o que o Sr. Chateaubriand não parece perceber é que, proclamando verdades como esta, a respeito do Sr. Artur Bernardes, estará a fazer-se cúmplice daqueles que pensem em fazê-lo, ainda uma vez, mais tarde ou mais cedo, presidente da República. E uma coisa é evidente: enquanto o Brasil for Brasil, enquanto houver, entre nós, verdadeiro espírito nacional, sentimento diferenciado, positivo, definido de brasilidade, um homem público que pense como o Sr. Artur Bernardes teve a coragem de pensar alto diante de um advogado de interesses estrangeiros, será sempre digno dos maiores louvores, da maior admiração e do mais sincero apoio.
O livro do Sr. Assis Chateaubriand, além de ser esse libelo de uma mentalidade meteca contra o nacionalismo brasileiro, é também, não resta dúvida, um testemunho de ódio pessoal, esfuziante, como tudo do Sr. Assis Chateaubriand, ódio feroz, ódio como o só o sabe ter a raça “oprimida”, e ódio de carrapeta contra o áspero fio que a fez dançar à força, durante largo tempo. Seja como for, porém, julgo respeitável o ódio do Sr. Assis. Ele é a prova de que, se a sua mentalidade está completamente envenenada pelo metequismo, pelo cosmopolitismo judaico, a sua sensibilidade brasileira ainda reage, ou é nela que já persistem soluções de continuidade, quebrando a harmonia do eterno vir a ser do sangue sem pátria.
De fato, a única nota realmente agressiva do livro do Sr. Chateaubriand contra o Sr. Bernardes é a de apresentar a este como caluniador, com privilégio. <<O Brasil ainda não teve um chefe de governo com os hábitos de caluniar, que o diferenciem de todos os outros presidentes que tem tido a República. E a calúnia é também uma arma de que se serve para espicaçar os seus inimigos>>.
O Sr. Chateaubriand reage, neste ponto, contra a acusação que, realmente, lhe foi feita de traição à pátria, de estar a serviço de país menos amigo. Se a acusação não partiu diretamente do ex-presidente, partiu, pelo menos, da gente que mais de perto o rodeava. Resta provar, porém, que essa acusação não tivesse origem em informações de caráter oficial, a que o Sr. Bernardes, sob pena de leviandade, não pudesse deixar de acatar. E, ademais, é o próprio Sr. Chateaubriand quem o confessa: escreveu ao Sr. Bernardes sobre o assunto e cessou, de repente, a insídia que estão profundamente o ofendia.
E uma coisa é também certa: neste livro mesmo, o Sr. Chateaubriand como que tudo faz para que espíritos menos ponderados repitam a acusação.
Poderia citar períodos e períodos em que revela a sua intimidade com estrangeiros, capazes, todos eles, de criar uma lenda pouco honrosa para o Sr. Chateaubriand. Mas nós já conhecemos a sua incontinência de linguagem quando se refere à sua ação nas altas esferas internacionais.
É a sua mania, o seu fraco, e creio, que absolutamente sem consequências, porque só ele mesmo crerá na tremenda importância da sua palavra, quando está em jogo o interesse das nações.
Quanto ao mais do livro do Sr. Chateaubriand, creio que não merece resposta séria, nem vale a pena encarar detalhes literários ou filosóficos de uma obra que pretende um lugar ao sol como simples testemunho pessoal, de caráter histórico, mas ainda <<sujeito à retificação dos historiadores>> (pág. 12) como o quer o próprio autor.
Digo com franqueza: se eu um dia viesse a escrever uma apologia do Sr. Artur Bernardes, apologia que ele merece, me depararia com dois ou três pontos da sua psicologia individual e da sua ação no governo (mas pontos determinados, claros, fixos, positivos) que me embaraçariam bem mais do que ao Sr. Chateaubriand como libelista e vingador da suavidade e do lirismo brasileiro…
Julgo, enfim, que o Sr. Chateaubriand, que não esconde o seu ódio, é uma consciência bem mais subjugada ao magnetismo pessoal do Sr. Bernardes, do que alguns dos que com mais lealdade, perdoando grandes erros do ex-presidente, se bateram até ao fim pelo prestígio do seu governo, e ainda hoje o defendem dos que o injuriam e caluniam despudoradamente.
Afinal de contas, o livro do Sr. Chateaubriand é mais um triunfo do Sr. Artur Bernardes. O segredo da vitória constante deste contra as resistências de inimigos e até de amigos, na sua atuação propriamente política, foi o desorientar sempre, da maneira mais completa, a uns e a outros. O Sr. Bernardes estava sempre onde ninguém o supunha e todos, a uma vez, não esperavam que ele estivesse.
Ora, o livro do Sr. Chateaubriand é mais um eloquente testemunho dessa desorientação geral em relação ao homem formidável que enfrentou a complexíssima na crise do caráter nacional.
Para o Sr. Chateaubriand, como para a personagem de Huyamana, só vale a pena conhecer os santos, os celerados e os loucos. Vê-se que teve desejo de enquadrar o Sr. Bernardes em qualquer destas categorias. Mas é de justiça dizer que o seu amor à verdade foi, desta vez, mais forte do que o ódio, e este não conseguiu nunca dar ao Sr. Bernardes uma fisionomia definida de demente ou de bandido. Pelo contráro. O Sr. Chateaubriand escreveu um verdadeiro tratado de geografia humana para dar uma noção aproximada da psicologia individual do Sr. Arthur Bernardes.
Para ele o ex-presidente é ora um César Bórgia, ora um Antônio Conselheiro; ora um fanático sertanejo, ora um político de métodos florentinos; ora um homem sem noção de responsabilidade jurídica, ora um teórico de exagerado amor a fórmulas de direito; ora uma criatura medíocre; ora uma criatura não vulgar.
Cito alguns exemplos:
“É um fanático medíocre, de uma mediocridade, se quiserem, deplorável, ele.” (Pág. 18).
“Um sombrio missionário da estirpe dos Antônios Conselheiros, etc.” (Pág. 15).
Compara-o com os colonizadores espanhóis, à pág. 28.
Compara-o a um duque das cidades italianas do século XV, à mesma pág. 28.
É um católico praticante (?), que encarna a tradição conservadora do país à pág. 35, ao passo que, na capa do livro, e em outros pontos, o Sr. Bernardes é um revolucionário por vocação.
É, à pág. 31, “um realista objetivo”, à pág. 36 “um espírito anti-liberal e anti-democrático”; à pág. 37 “um revolucionário-conservador perigoso”, e o livro contém um capítulo para provar que o Sr. Bernardes tem a paixão da plebe.
“Há dentro do Dr. Bernardes um russo, que há mais de quatro anos leva uma existência ascética”. (Pág. 46).
E, logo depois, à pág. 51:
“Desde os nossos primeiros encontros, o presidente, que é um conversador inesgotável e um homem de rara polidez de maneiras, um tirano azul (!!), acessível e gentil, me dera a impressão de um petulante ‘nouveau-riche’ dos princípios messiânicos”. (Pág. 51).
“A sua mentalidade é uma mistura sombria de índio, desconfiado do catequista europeu, de missionário e de oriental”. (Pág. 52).
“Mentalidade asiática”. (Pág. 53).
“… o sangue mouro de Abd-el-Krim, que lateja nas veias do presidente do Brasil, etc.” (Pág. 55).
“O Dr. Bernardes é um jingoe à maneira das extremas-direitas alemãs, francesas e inglesas.
Ele pretendeu introduzir no Brasil uma mentalidade européia, peculiar a povos sacudidos pelo frenesi da ameaça contínua da guerra, etc.” (Pág. 56).
Enfim, eis um pouco do que o Sr. Chateaubriand descobriu na psicologia do Sr. Arthur Bernardes, isto é, o infinito psicológico paradoxal, o indefinido, todos os contrates, todas as combinações que podem estar num herói ou num santo assim como no fanático, que ele, Chateaubriand, pretendeu apresentar.
Isto quer dizer que o autor de “Terra Desumana” não tem juízo algum formulado sobre o ex-presidente. É simplesmente um magnetizado pelo mistério da alma pderosa, que tanto o afastou do critério normal de ajuizar sobre os políticos brasileiros. Eis tudo.
O que ficará do seu livro são as afirmações em favor do Sr. Arthur Bernardes, do seu patriotismo, da sua intransigência como patriota diante de qualquer negócio duvidoso com estrangeiros bem-intencionados ou não.
E o livro tem outras não menos favoráveis, já não digo à pessoa do ex-presidente, mas até mesmo ao seu governo.
Assim, por exemplo:
“Seria injusto dizer que o Dr. Bernardes é destituído de escrúpulos. Não. O presidente tem escrúpulos. O escrúpulo é até mesmo em si uma moléstia, que se lhe insinua na alma e intoxica-o e leva-o a abdicar dos arremessos para os píncaros mais loucos da sua própria personalidade”. (Pág. 122).
Apesar de não se compreender bem o que quer dizer o Sr. Chateaubriand, sente-se que quer fazer justiça ao Sr. Bernardes.
Eis, porém, o que é mais positivo, máxime na pena de um inimigo declarado:
“Não se pode dizer, sem injustiça, que os sítios do governo Bernardes tenham sido de um modo geral inexoráveis, severos, traduzidos por perseguições a todos os adversários do governo”. (Pág. 127).
“Para um indivíduo do ímpeto das paixões e do fanatismo do presidente, a medida excepcional do sítio ele a usou cortesmente e, em vários casos, com benignidade” (Pág. 127).
Mas o que mais recomenda às simpatias do Sr. Arthur Bernardes o livro do Sr. Chateaubriand é o que ele contém de verdadeiramente tenebroso e massacrante sobre todos os elementos que combateram o ex-presidente, máxime sobr os que formaram a finada Reação Republicana.
Não já estivesse demasiado longo este artigo e, com certo receio e não raro sem concordar, citaria aqui alguns trechos realmente capazes de matar entusiasmos revolucionários.
Mas basta-me o que aí fica.
O livro do Sr. Chateaubriandn que ninguém compreende por que tem o título de “Terra Desumana”, é digno de respeito por parte de todos nós os que, com maior ou menor eficiência, sustentamos a ação denodada do Sr. Arthur Bernardes, na sua luta contra a anarquia que ameaça o país.
Livro de um inimigo, ele vale como uma apologia do ex-presidente.
E é uma prova também da pouca desumanidade da nossa terra, terra em que o presente nem sempre cede ao futuro à palavra da justiça, e em que o próprio ódio não tem força contra a verdade.
Gazeta de Notícias, 24 de novembro de 1926