Jackson de Figueiredo
Quem toma a obrigação de escrever um artigo de oito em oito dias, tem que selecionar assuntos, tem que descobrir um que, pelo menos, valha alguma coisa, o que nem sempre é fácil na vida de uma sociedade como a nossa que, de um a outro escândalo puramente jornalístico, o que parece é que vai morrendo de estupidez. Digo parece, porque, em verdade, não é assim. O que há é que a sociedade propriamente, a multidão urbanizada, mais ou menos policiada, como que ainda não tem consciência do que se passa nas suas camadas mais profundas. Porque, realmente, só mesmo o pessimismo doentio ou a doentia má fé poderá negar que há no Brasil contemporâneo, um sério movimento idealista, uma séria renovação de valores morais e intelectuais, perfeitamente evidenciados na nossa produção literária destes últimos tempos, escassa ainda, não resta dúvida, mas reveladora de angústias, de inquietações, de aspirações que, certamente, limitam um largo domínio de vida nova.
E é por isto mesmo que faz pena qualquer desperdício de talento ou de energia, desde que, de fato, pertença um ou outro a esta geração que, trabalhando no escuro, por assim dizer, evidentemente está a preparar a força de que irrompa a luz de um amanhã mais sereno e mais belo.
Estes simples raciocínios, que não são meras divagações, se prendem, realmente, porém, à origem deste artigo. Relembrar o nome estremecido, a estremecida memória de Mário de Alencar, na véspera do segundo aniversário de sua morte… Eis o que escolhera eu como assunto digno de uma pena que, se não foge aos embates com a grosseria ambiente, se apraz no entanto, quando pode louvar o que é digno louvar-se, ou de mostrar que o amor, a beleza, a bondade e a graça ainda não se desterraram da nossa vida.
Mas lera, como todos os que se interessam pelas nossas letras, os discursos acadêmicos dos Srs. D. Aquino Corrêa e Ataulfo de Paiva. A este último vi que ficava até devendo a grata honraria de uma citação no recinto daquela casa a cujas portas já duas vezes bati em vão, sabe Deus que levado muito mais do que por qualquer espécie de vaidade, pela força do santo coração do próprio Mário de Alencar… E tecia estes fios de interior satisfação quando me cai sob os olhos o artigo de Agripino Grieco sobre os referidos discursos… Que desmedida injustiça! Positivamente, um homem com o talento, com a cultura, com o espírito de Agripino Grieco, com as responsabilidades, pois, que tem na geração a que pertenço, não tem o direito de despenhar-se assim, no desrespeito a tudo quanto na verdade representa. Eu compreendo muito bem a revolta da mocidade de valor real, ao ver, diariamente, a coroação, a entronização de mediocridade de toda a casta, aos olhos de um público que está cuidando do futebol e esperando o Carnaval… Mas o saber que a coisa é assim, isto é, sem o menor valor do ponto de vista da nossa realidade espiritual, já não é bastante para confirmar em dignidade, serenidade e esperança, os que podem e têm o direito de ter fé no espírito e na inteligência?
Ora, o que francamente me horroriza são os casos de desalento, de desesperança e secura espiritual, que às vezes assim se revelam, como no de Agripino Grieco, por uma trepidação de desabusado pessimismo, por uma febre de dizer mal, que não recua ante as injustiças mais cruéis, não raro só e unicamente pelo prazer, sempre passageiro, de fazer uma frase, que não destoe do tom geral de ironia ou mesmo de troça.
Agripino Grieco era há três anos, um crítico literário de valor, como ele já fora (e creio que ainda é) como já fora, digo, para o nosso meio literário um poeta de nervosa e luminosa personalidade. O pessoalismo era e é em tudo quanto escreve a sua característica. Não pode mais haver comparação, porém, entre o crítico que procurava apreender os traços mais sérios da fisionomia espiritual de um escritor — fosse para louvar ou fosse para maltratar — sem esquecer, todavia, o que poderemos chamar as leis do nosso meio ambiente, as circunstâncias do nosso condicionado social, e o panfletário de hoje, absolutamente esquecido do respeito que deve a si mesmo, repito, como homem de espírito e de cultura, para entregar-se, e cada vez mais violentamente, aos pruridos de uma vaidade de “xingador”, de trocista, absolutamente sem finalidade literária ou intelectual. Dupla injustiça, pois, e não menos a si mesmo que aos que são vítimas da sua perpétua fúria demolidora.
No caso que agora nos interessa, por exemplo, que procurou Agripino Grieco? Criticar a obra dos acadêmicos ou, pelo menos, traçar o perfil intelectual de algum deles? Evidentemente não. Procurou única e exclusivamente maltratar e, não raro, injuriar também. Por que? Para que?
Ele próprio, o nosso famoso Grieco, será incapaz de dizer. Mas é demais. Que obra literária, que discurso ou que poema poderá não oferecer flanco a uma tão desmedida ansiedade de ridicularizar? Julgará difícil, Agripino Grieco, que apareça amanhã quem pegue de uns versos seus, dos melhores, e usando do processo da sugestão, os enquadre entre uma série de dois pontos: “helenismo suburbano”, ou “à maneira de Fulano ou de Sicrano”. E tudo isto, que vale?
Absolutamente nada. O talento, o brilho poético da prosa ou do verso de Agripino Grieco ficarão de pé aos olhos de quem tenha capacidade para julgar, de quem tenha, por sua vez, talento e sinceridade. Assim como, para quem saiba e possa ajuizar serenamente do nosso meio literário, não desmerecerão os dois últimos discursos acadêmicos, dos quais, justamente o do arcebispo de Cuiabá, (a quem jamais — afirmo aqui a Agripino Grieco — pedirei voto acadêmico), é dos melhores que, no gênero, se tem feito entre nós, sóbrio, elegante, meramente acadêmico, a ponto de não perturbar a personalidade do Príncipe da Igreja, a estrutura de impessoalismo que as circunstâncias ali impõem.
Mas, Agripino Grieco está caindo insensivelmente no profissionalismo do dichote e da troça, transformando-se em máquina incubadora e impressora de alcunhas e picuinhas. Pior: parece comprazer-se em bater-se, corpo a corpo, com tudo quanto é criatura inimiga da luta, amiga da paz e do descanso. Ora, isto não é atitude que honre muito quem, por tantos títulos, pode assegurar-se um posto de combate na arena das nossas letras.
E quase estou a terminar com este chavão, com este lugar comum, tão odiento a Agripino Grieco… Porque não valerá a pena fazer aqui o elogio do lugar comum. Isto, sim, pareceria um início de polêmica, quando, de fato, o que estou a escrever é uma página de camaradagem e, sem meias tintas, testemunhante de uma velha admiração.
E Agripino Grieco também não dirá, como dirão tantos outros, que estou daqui a implorar votos da Academia. Creio mesmo que não me candidatarei mais à Academia. Nem dirá que no Sr. D. Aquino Corrêa estou a defender “literariamente” o homem da Igreja. Frade ou padre, não importa: não há nada que canse tanto como a defesa da mediocridade. No caso presente, porém, a injustiça é flagrante. O Sr. D. Aquino Corrêa não é um simples “cacarejador de Mont’Alverne”. É um homem de real talento, em moldes de cultura clássica, digno, pois, de figurar na Academia, na Academia que não poderia ser nunca o que queria Graça Aranha, mas, sim, a consagração social — à altura, portanto, do que somos — das inteligências repousadas e calmas, dos que trabalham ainda mais os nossos costumes, a nossa modalidade “literária”, do que propriamente as forças vivas do espírito nacional, enquanto em potência, em formação de brasilidade.
Gazeta de Notícias, 7 de dezembro de 1927