Jackson de Figueiredo
Sinistro… O Sr. Austregésilo vai aos Estados Unidos e resolve mandar-nos de lá as suas impressões da vida americana. Não se contenta, porém, do “contemporâneo”. Faz evocações do passado “yankee”, e é por essas alturas que foi dar de frente com o dramático fantasma de Edgard Poe…
Foi visitar a casinha onde o gênio padeceu os seus últimos anos de vida. Contou-nos a sua comoção ante aquelas relíquias, e tudo isto, como se vê, fora muito perdoável da parte de um homem como o nosso ilustre acadêmico, desde a sua juventude serroteado também pela tortura da arte.
Mas, o Sr. Austrégesilo, esquecido do que se passa no Brasil desta hora, esquecido, por exemplo, das agonias a que está presentemente sujeito o Sr. Miguel Couto, leva o seu prurido evocativo até o ponto de recordar-nos a trágica morte do grande Poe:
“O pobre poeta morreu como um pária, isto é, foi encontrado morto numa sarjeta, em Bufalo, com um cartaz do Partido Democrático às costas!…”
Vejam, os idealistas de todos os matizes, o perigo iminente… Eis aí o símbolo, um relevo demasiado, como todos os símbolos, aliás, na contextura da vida comum, o símbolo do que valerão os nossos pobres idealistas na farandula organizada pelos plutocratas que pugnam, neste momento, por um democratismo partidário na vida política do Brasil, do Brasil que já paga caríssimo a sua democratização social, a golpes de imitação ou sob a pressão exterior.
Falando a sério, é contra essa demência de políticos “ratós”, de políticos que falharam até mesmo nesse seio de Abraão do nosso flácido e inexpressivo empirismo republicano, que a mocidade deve preparar-se para reagir, se não quer ver transmudada a generosidade das suas ânsias idealísticas em azinhavre, em venenoso corrosivo do que ainda resta de caráter propriamente nacional.
“De tal modo – dizia Donoso Cortez – de tal modo a escola liberal tudo combinou, que, onde prevalece, todos são, forçosamente, corruptores ou corruptos”.
Pois será possível que, à hora em que reagem quase todos os povos contra o morbus do liberalismo metequisante ou desnacionalizador, será possível que ainda suportemos nós, brasileiros, outras experiências desmoralizantes e, já agora, positivamente retrógradas, de um teorismo ridículo e inumano?
Não vale mesmo a pena analisar-se um só dos dados da pseudo sistematização de semideias políticas que os corifeus deste movimento dizem representar as aspirações tradicionais da nacionalidade brasileira.
Elas valem tanto, deste ponto de vista, quanto as ardências do jacobinismo militarista à Floriano ou a pesada morrinha positivoidica do início deste regímen.
E digamos com franqueza: toda essa gente que vive aí a declamar a necessidade de uma regeneração dos nossos costumes políticos, não representa, na realidade, nem mesmo o que a sentimentalidade própria do brasileiro tem de mais são e de mais puro.
Pelo contrário: observe a mocidade do seio de quem se tem originado as mais violentas campanhas de ódio, quem são os que por de cá aquela palha apelam para a revolta, para a força, para a brutalidade.
Observe quem são os que têm procurado estabelecer uma verdadeira ditadura de assombração e de terror, pela força de uma imprensa capaz de todas as injúrias, de todas as calúnias e das insinuações mais odientas.
Ainda ontem, por exemplo, só porque uma professora pública desta Capital ousou ter uma palavra de repulsa contra o espírito de anistia, de perdão a todos os criminosos políticos, isto é, a todos os crimes contra a sociedade, que fica assim ao desamparo, e ao sabor de todos os impulsivos e de t odos os psicopatas, não se conteve um dos órgãos desta feira de clichés de humanitarismo artificial e mentiroso, que não procurasse arrastá-la às odiosidades da patuleia.
Eis o trecho do discurso que pareceu uma injúria a esses açambarcadores da piedade e do amor:
“Quantas vezes, por certo, terá de cerrar o coração, calcando as afeições e os sentimentos de bondade, para agir com justiça, para atender as necessidades prementes das situações, sem se deixar dominar pelo lirismo da concessão de anistia, sustentando a sua autoridade em benefício dos poderes constituídos e empregando a sua energia para reprimir os assomos irrefletidos dos transviados das leis, despertando, assim, despeitos mal contidos”!
Falava ao chefe de Estado e não precisava mais nada para merecer primeira página e os títulos e subtítulos de uma ofensiva em regra…
E é disto que vivem esses São Francisco de Assis de aluguel, esses escorpiões de bandeira branca.
Nunca a palavra de Bonald pôde ser melhor aplicada do que ao Brasil dos nossos dias: “Pode-se ser moderado com opiniões extremadas. E é o que fingem não crer os que são violentos com opiniões medianas e fracas”.
Eles fingem não crer. Esta é a verdade. Fingem somente. Porque eles próprios bem sabem o que estão fazendo, e que o Carnaval de ódio e de sangue não foi custeado jamais pelos que, como esta simples professora, esperam mais da educação e do sacrifício do que das baionetas revolucionárias ou das democratizações de praça pública, a preço, não raro, dos mais infames atentados à paz social.
Mas, eles fingem não crer.
E enquanto vão tentando atemorizar todas as consciências capazes de observação e de juízo, enquanto vão fazendo a apologia de todos os hipócritas ou de todos os desvairados, vão também, sem descanso de um minuto, “organizando” o futuro, isto é, preparando o ambiente para as novas reivindicações da ambição e do ódio, para tudo quanto eles proclamam justiça e liberdade, que, coisa singular, só conhecem um caminho para a vitória: o da anarquia, o da subversão de todos os valores já mais ou menos integrados ao ritmo da vida nacional.
Mas, a vingança dos homens de bom senso, há de ser esta sempre: saber distinguir, nesse pandemônio, os idealistas, que, na verdade, os há, dos que pregam cartazes às costas dos idealistas…
Gazeta de Notícias, 28 de Setembro de 1927