Jackson de Figueiredo
O povo costuma dividir os jornais do Brasil em duas espécies: jornais do governo e jornais da oposição.
É mais complexa, porém, a classificação de quem durante anos tenha sido forçado a observá-los de perto, e a trama íntima de interesses sobre a qual todos eles se movem.
A espécie mais “gostada”, a mais popular, a mais importante, pois, dentro da vida nacional, é a de pasquim de folha larga e, como já fiz entender, não raro do larga tiragem também e circulação. Esse jornal é o que reduziu à calúnia e à injúria a indústria lucrativa. O povo o tem por oposicionista mas nisto demonstra muito mesquinha capacidade de análise. Não raro um jornal dessa espécie é excelente instrumento do governo. O que é verdade é que ele só tem um ponto fixo do programa, e este é o da exploração sistemática de quem pode dar mais. Como o elemento popular nos países desmoralizados está sempre inclinado a fazer oposição, sejam bons ou não os seus governantes, o pasquim vive eternamente a equilibrar-se entre o tostão certo do público e o que pode, uma ou outra vez, e pelos modos mais de, arrancar nos dirigentes menos escrupulosos.
Há também, realmente, um grupo de jornais que, por circunstâncias diversas da história de cada um deles, só não estão ao lado do governo quando absolutamente não o podem.
É preciso coragem para fazer-lhes justiça, pois é certo que o público não os vê com simpatia. E terá razão em muitas das acusações que lhes faz, mas, bem pesadas as coisas, essas acusações seriam mais justas se feitas aos políticos, isto no caso de ser justo acusar-se alguém, como diz Maurras, “por comprar o que se vende”. Uma verdade verdadeira, porém, é que estes jornais, deste ponto de vista, não são nem mais nem menos honestos que os jornais que se lhe opõem, e de que o público nem imagina de que vivem.
E há mais que dizer ainda em favor deles: justamente porque são mais intimamente ligados a gente que governa, eles são mais bem informados sobre os negócios públicos.
É claro que não há negócio que não possa ser visto sob um ângulo de absoluto pessimismo, e pelo qual o observador não precise colocar-se propriamente ao lado da mentira para acusar e destruir.
Ora, o que fazem, geralmente, os chamados jornais governistas, é usarem do critério oposto e, como são mais facilmente informados, não é raro que possam ser mais justos do que os seus opositores, pois se todos os nossos homens políticos fossem o que deles dizem os nossos chamados “jornais vermelhos”, o Brasil, a não ser em caso de milagre, já teria desaparecido. Deste modo, a afirmativa de uma justiça maior da imprensa governamental, parece impor-se por si mesma.
Entre estas duas espécies de jornal, creio que ainda pode ser notada uma outra: a do jornal moderado, puramente liberal e cujo maior desejo seria passar por um jornal doutrinário, espécie que, única, jamais teve raiz no solo republicano do Brasil.
Estude-se a vida de qualquer deles e logo uma coisa ficará evidente ao espírito mais imparcial: e é que, dirigido, às vezes, por homens do bem, otimamente intencionados mesmo em cada um dos seus atos, o jornal moderado, tipo liberal perfeito, é, quando não o mais prejudicial aos interesses da nacionalidade, pelo menos o mais inútil de quantos tentam agitar a opinião pública.
Porque uma coisa é clara como o sol: o tipo burguês, conservador, se na Europa, como tão bem observou Maillart, é uma viva representação da covardia moral e intelectual, uma criatura que, socialmente, só representa hoje uma zona de indistinção, de descaracterização, entre a da reação cristã e a da revolução radical. No Brasil, esse mesmo tipo ainda tem a agravar-lhe as deficiências a própria instabilidade da nossa vida econômica. Nós somos um povo de burguesia nômade, sem fixação de qualquer espécie, nem mesmo as do solo.
O jornal moderado é o que representa, entre nós, esse tipo de inconsistência, se é que assim se pode dizer. Não tem influência, pois, em nenhuma das classes vivas da nação.
Ele tem horror à revolução. Isto é evidente e compreende-se perfeitamente. Mas ouça-se a sua linguagem, com um pouco mais de atenção, e outra coisa também se fará evidente: nada lhe merece mais rancor do que o governo, de coisa alguma perfeito completamente o senso do que da palavra autoridade. Para ele autoridade e força são uma e mesma coisa, e não há passinho que dê nesta vida que não o dê sob o terror de ser esmagado pela força.
É referindo-se a ele, com certeza, que Ferrero disse ao mundo contemporâneo estar a sua perdição no fato de ter perdido o “senso profundo da libertação do homem”, que jamais será reconquistado antes de “reaprendermos a distinguir os dois elementos do poder: a força e a autoridade”.
“Continuamente os confundimos — diz Ferrero — e, por isto, nada mais compreendemos.”
Ora, não há compreensão, isto é, onde não há inteligência, a força acaba por dominar. E se a parte tida por dominante de uma sociedade é justamente a que dá mais evidentes testemunhos de falta de inteligência, é claro que é a maior responsável, historicamente, pelas irrupções da força bruta ou as suas tentativas de domínio absoluto. No Brasil, é isto que se pode dizer de sua pretensa burguesia, vista através da sua imprensa. Ela balbucia, de vez em quando, umas horrorizadas exclamações contra a revolução, ou melhor, contra os revolucionários do momento.
Mas as suas colunas são como vitrines das mais abstrusas e mais opostas extravagâncias, a quem quer que se coloque a face do mundo, e o olho com olhos de burguês convencido: o anarquismo, o imoralismo mais cru, o amoralismo mais seco, e tudo, todas as expressões do anti-cristianismo mais declarado. Que se pode, pois, esperar de uma gente que assim perdeu o próprio instinto de conservação, o sentido da sua própria existência?
As nossas classes burguesas, ao invés de se agitarem, como parece que estão fazendo agora, para a formação de partidos alfabetistas, amantes do voto secreto, etc… O que precisa é fundar o partido da vida, isto é, dos que querem viver. E não se compreende querer sem compreender. Ela precisa estudar-se a si mesma na sua história e na sua presente situação, e distinguir no turbilhão das meias ideias, de que se alimenta, o que representa uma sã realidade, ou melhor, o que representa as ideias adequadas à essência dos fatos históricos a que deve o seu direito de existir.
Eu avalio, meus velhos, como os seus jornais de hoje estarão cheinhos de ruínas da Bastilha… É coisa boa derrubar bastilhas, mas temível coisa é falar do que não se conhece…
Tanto falaram dessa famosa tomada da Bastilha, nobres, e burgueses da Rússia, que lá também tomaram diversas, e a que as substituiu parece intomável… E notem que é uma triste minoria que a defende.
Gazeta de Notícias, 14 de julho de 1926