Jackson de Figueiredo
A morte de Carlos de Laet, de quem me separaram, ao fim da sua vida, as funestas dissenções políticas destes últimos tempos, força todas as asperezas do coração, destrói-as, mesmo, para que eu só ouça o que me diz a consciência em face da sombria majestade desta cena: o lutador que jaz por terra, vencido, enfim, mas pela lei da própria natureza.
A morte dos homens de luta, porém, e que lutaram sempre no domínio das coisas reais, e não quiseram passar como espectros de idealismos mais ou menos obscuros; a morte dos homens que, de posse das verdades eternas, jamais saíram, no entanto, do terreno dos fatos, tem algo de ainda mais misteriosos que a dos outros homens – lutadores ou não – mas para quem a vida foi a constante elaboração do que quer que seja de parecido com um sonho.
A morte dos homens como Carlos de Laet esclarece, de modo como sobrenatural, esta espantosa dúvida de cada um de nós: o que vale uma vida, o que vale um esforço individual, na ondulante, inextricável trama da vida social, da vida humana, enfim.
Sabe-se, desde que eles desaparece -os homens como Laet – que falta alguma coisa de real, de palpável, de “contável” à sociedade do seu tempo, e ainda por muito tempo.
A obra de um criador, em qualquer ordem da vida literária, ficará substituindo-o, e, às vezes, até com vantagem na imaginação dos seus contemporâneos ou das futuras gerações.
Mas um lutador como Laet não vive somente na imaginação dos homens, vive na “vida” deles, dela faz parte, por assim dizer, é um dos fatores, um dos elementos de orientação em tudo quanto distingue o em do mal, o que significa: em todas as questões que interessam, verdadeiramente a vida das criaturas humanas.
A sua atividade abrange não só os atos humanos, mas também os atos do homem, segundo a distinção clássica, abrange-os, porque o que ele visa é, antes do mais, levar estes a se integrarem na ordem daqueles pela transformação interna da reflexão, da meditação e da crença.
Vivo, um homem tal, é natural que semeie ódios, é natural que o odeiem todos quantos se fazem, conscientes ou não, defensores das situações dúbias, das posturas da deleitosa preguiça ou da covardia inconfessável.
Pior ainda: ele fará injustiças, ferirá quem não o merece, não se defenderá também de paixões violentas, só, pelo hábito da luta, objetivadas com aparente serenidade.
Mas o bem geral da sua obra, de sua incisiva atuação em meio dos homens, este sobrepõe-se, soberanamente, a essas falhas de toda a atividade propriamente humana.
Uma coisa sabem todos e é que neste ou naquele debate, nesta ou naquela decisão, neste ou naquela choque de interesses, é força contar com a voz, com a consciência do lutador, que pesará deste ou daquele lado, e é preciso contar como se, de fato, ela fosse uma parte integrante da opinião pública, ou pelo menos, da opinião dos homens que conquistaram o direito de ter opinião.
Morto Carlos de Laet, todos nós, hoje em dia, lhe rendemos, quase insensivelmente, esta homenagem: se o Laet ainda vivesse esta opinião não seria dada, assim às claras, contra os interesses da Igreja, este juiz da extinta monarquia seria mais comedido no exercício da sua maledicência…
É a falta, a falta positiva, imposta ao senso interno quase como aos sentidos a ausência do gigantesco vulto de montanha que compunha, que dava um ar de heroicidade à paisagem material.
Sem perdoar, nem mesmo à sua memória (pois pecado maior seria aqui injuriá-la com uma mentira) o que considerei injustiça dele para comigo, e após tantos anos em que lhe demonstrara mais respeitosa amizade, sinto-me honrado, no entanto, com render-lhe publicamente esta homenagem que, estou certo, ele ainda saberia precisar, porque é a de uma consciência que terá erros iguais aos seus, mas que, se bem que não com o mesmo brilho, só tem trilhado os mesmos ásperos caminhos de luta, os caminhos que ele amava: os dos combates em prol da Igreja de Jesus Cristo, e das ideias que a aceitação da fé com que naturalmente impõe ao senso comum.
“Se a vida – dizia há pouco tempo a nobre alma da Condessa de Noalles – se a vidam, com as suas numerosas e difíceis circunstâncias, nos separou dos nossos amigos, a morte cruel, por um odioso dom, no-los dá, de novo, súbita e inteiramente, na sua desolante irrupção, pelo seu choque de tantas ressonâncias, seu imediato e profundo apelo à memória.”
É o que se dá comigo, neste momento, em relação a Carlos de Laet.
Nada vejo senão aqueles oitenta anos de soberana energia posta a serviço da causa de Jesus Cristo e da sua Igreja, formidável figura de lutador que imprime masculinidade e vigor às linhas mesmas da ação social católica, num meio, como o nosso, tão infenso às mais necessárias e elementares distinções entre a verdade e o erro.
Eu não me preocupo aqui nem com o que foi Laet como escritor, como estilista, como ironista ou com qualquer outra feição da sua atividade intelectual.
O que eu quero ver é o que não vejo mais, o que eu quero homenagear é ao seu vulto de lutador quase incomparável, na história destes últimos cinquenta anos de vida brasileira.
Sou dos que sentem realmente que o Brasil perdeu um homem de verdade, sou dos que sentem realmente que está faltando alguma coisa de sério e de forte na orquestração das nossas angústias, das nossas dúvidas, das nossas lutas sociais.
Gazeta de Notícias, 14 de Dezembro de 1927