Jackson de Figueiredo
A atenção geral volta-se agora para uma possível irradiação do bolchevismo na América e especialmente no Brasil…
Fico a esperar por ela, ou melhor, pela sua objetivação, e fico a esperar com paciência, porque sei que se a coisa for mesmo tão ruim como se diz, é fatal que venha até cá, isto é, é lógico e natural que procure este seio de Abraão de todas as misérias e loucuras humanas. As águas correm para o mar.
Um povo do qual os próprios dirigentes não têm consciência de que ele tenha ou mesmo queira ter consciência própria, caráter histórico definido, ao qual, os mesmo dirigentes vivem a apertar, a espremer, a deformar, sob o peso de geometrismos políticos, os mais contraditórios e discordantes, creio sinceramente que não terá muito a perder com o bolchevismo ou com outra qualquer loucura racional, por mais abjeta.
É recordar aqui as palavras de Chesterton: “É sempre perigoso para o espírito o adicionar o espírito… (compreende-se: dos outros…).
E depois: “O louco não é o homem que perdeu a razão. O louco é o homem que tudo perdeu, exceto a razão”…
Paradoxos do grande inglês que é hoje uma das maiores glórias do pensamento católico contemporâneo?
Creio que não. Só a forma, a expressão é paradoxal. Nada mais razoável “humanamente” razoável, porém, do que o que ali se exprime. Está na base da visão tomista do mundo a verificação desta verdade que “a vida transborda do conceito”, o que quer dizer que a vida, a que se deve imprimir o selo da nossa racionalidade, é muito, muito mais vasta que a razão, e que esta, por isto mesmo que é livre, se se atira no vácuo ou na gelada adoração de si mesma, é antes força de destruição que elemento de conciliação com a existência.
Não têm querido ou podido compreender, ou mesmo não têm podido sentir isto os dirigentes do Brasil, e quando falo dos dirigentes não me refiro exclusivamente aos que têm chefiado o Estado, da monarquia aos nossos dias. Politicamente, vivemos em luta perpétua com o que na realidade somos, num quase absoluto descaso dos principais dados morais da nossa formação, de há tanto tempo já que, a esta hora, mesmo a um observador materialista e revolucionário como Fausto Cardoso, por exemplo, a nação aparece como bipartida, como duas nações que se guerreiam dentro das mesmas indefinidas fronteiras morais.
Econômica, financeira, comercial, industrial, socialmente, enfim, o povo brasileiro sofre todas as angústias dessa íntima dissenção e contrariedade, mas, em tudo o mais, em tudo quanto ainda represente força e vitalidade, que lhe sejam próprias, vive como à parte, perfeitamente estranho ao que querem os seus grandes homens, aqueles que politicamente o representam aos olhos do mundo.
Que importa, pois, a este povo, assim deseducado, assim acostumado a não saber o que querem dele, que importa, pois, a este povo que seja uma República anarquista e anarquisante ou o bolchevismo o que esteja a estragá-lo e deprimi-lo?
Normalisasse-se aqui o regime bolchevista, e sou capaz de jurar que, quase sem surpresa para a nação, as suas leis e os seus homens, do ponto de vista político, não viriam a ser nem mais agnósticos, nem mais materialistas, nem mais antibrasileiros que tudo quanto por aqui se vem ostentando desde 1889.
O fato é que os fundadores da República eram uns monstros de antibrasilidade, inimigos declarados do nosso caráter histórico. Correu o tempo e foi o que se viu: morreu a agressividade dos positivoides, quebraram-se as arestas do anticristianismo, do maçonismo militante dos que expulsaram Pedro II. E a nação continuou a sofrer, a trabalhar, a manter-se quanto possível idêntica a si mesma, e a assistir pelas alturas do poder a mesma tragicomédia de sempre: o palavrório sem fé do democratismo carnavalesco e as crises epilépticas do caudilhismo militarista.
Mas, esta é a verdade: enganam-se os que por simples entes de razão esquecem, de modo tão ostensivo, a realidade, a complexa realidade brasileira.
Uma nação não vive de leis mas também não vive sem leis, e equivale a viver sem leis tê-las completamente em contradição com a sua história e o seu temperamento.
Ora, é isto o que se passa entre nós. E esta situação não poderá perdurar muito.
O meio político brasileiro tem homens honestos e corajosos, e só negará isto quem faça de exploração política do jornalismo de escândalo uma profissão e uma indústria.
Mas, de nada vale a uma nação o ter políticos corajosos e honestos, se a essa coragem e a essa honestidade não se alia o senso da realidade nacional, o seu espírito histórico, a sensibilidade, digamos, assim, das suas tradições e dos seus costumes.
É claro, é positivo que o Brasil político está há muito tempo completamente desviado do seu leito natural e que a nação está a pagar tributo demasiado caro a um ente de razão: uma legalidade, que lhe nega todos os meios de defesa interna, e prepara, deste modo, inconscientemente, a sua incapacidade para defender-se de inimigos exteriores. Todos estão vendo: o direito político brasileiro não corresponde mais em fortaleza aos embates de aspirações, às paixões, às misérias do nosso grande urbanismo artificial, mas, por isto mesmo, ainda mais perigoso e desorientador.
Quem será capaz de afirmar, por exemplo, que o Supremo Tribunal da República não se compõe, neste momento, de uma absoluta maioria de homens de bem e de patriotas?
Estude-se, porém, a sua atividade nestes últimos tempos — recordem-se atos como o do habeas corpus para a propaganda do bolchevismo, ou o da sua recente resolução sobre o julgamento dos revolucionários — e a impressão há de ser a de que o Judiciário, completamente estranho às agruras do mando político, afirma-se como elemento de desassociação ou, pelo menos, como força inconscientemente aliada às forças que vão tornando impossível a manutenção de um regime legal no país.
Ora, que quer dizer isto: ignorância? Má fé? Pura paixão política? É claro que não. É, sim, que estamos a perder os mais nobres esforços, as melhores energias, na conservação de uma ordem de coisas que, sem satisfazer já nem mesmo as exigências do meio político, é absolutamente hostil à paz e conservação da família brasileira.
Numa hora como esta, em que se agitam enfurecidamente tantas paixões anárquicas e dissolventes, é claro, é claríssimo que o ponto de vista do direito coletivo tem que se sobrepor ao do direito individual, em toda consciência sã que entre em relação com a vida do direito político brasileiro. A interpretação patriótica e, por conseguinte, socialmente verdadeira, da nossa Constituição, não pode, em um tal momento, ter outra orientação, se não queremos morrer “dentro do Regulamento”, como na anedota de caserna, tão adequada, por isto mesmo, a um juízo sobre os nossos problemas atuais…
E, fora disto, falemos franco: as medidas contra o bolchevismo ou outra qualquer peste moral, por mais justas, por mais sensatas, por mais inadiáveis, terão sempre, no entanto, a aparência de serem medidas de classe, medidas de ricos contra pobres, mas nunca o essencial caráter de defesa do Brasil, do povo brasileiro, que, repito, não sofrerá mais de uma violenta subversão de valores econômicos e financeiros, do que vem sofrendo desta lenta mas penetrante desmoralização da sua consciência de povo cristão, por obra e graça de um direito político fundamental e essencialmente revolucionário.
Eu já não falo das mazorcas, dos motins, das semirrevoluções da burguesia que anseia pelo poder…
Já não falo também da histeria jornalística que se alimenta no assalto à honra de todos os homens públicos e na apologia de todos os crimes.
Para a completa destruição da consciência cristã do Brasil, para a completa destruição do Brasil, enfim, nada mais é preciso do que o veneno liberal, o revolucionarismo teórico de que estão dominados, não só os homens públicos brasileiros, mas as instituições que deviam representar a segurança da nossa integridade política, a garantia da unidade nacional.
Pode ser que eu não esteja com a verdade. Mas ainda está a provar-se. O que já está provado, porém, é que ainda vivemos porque a agonia de um gigante é, naturalmente, de maior duração que a de um tipo comum.
O Brasil político, o Brasil moral, é, de fato, um gigante que agoniza.
Gazeta de Notícias, 27 de julho de 1927.