Jackson de Figueiredo
Quem se acostumou a ler a meditada crônica da vida internacional com que Yves de La Briére há tantos anos brinda o mundo católico, não tem surpresa se o ouve ou lê, quando agora se revela pensador altamente esclarecido sobre o tema geral da civilização, em todos os seus aspectos.
Informar sobre a vida dos povos enfermados pelo materialismo, pelo agnosticismo político, a esta altura do drama ocidental, só pode fazê-lo, com proveito para todos, quem se mova, entre tantos fatos de estonteadora complexidade, lastreado por um enorme cabedal de saber histórico e se sinta verdadeiramente senhor de uma orientação filosófica. Eis o que de há muito tempo me era lícito pensar de Yves de La Briére. Não me surpreende, pois, que esteja a empolgar o nosso escol intelectual como evocador das forças históricas que disputam o domínio da civilização. Mas me enche de orgulho que a lição desta hora, ao Brasil, generoso mas tão descuidado de si mesmo, venha de quem tão nobremente encarna o espírito militante da Igreja, como sacerdote, como escritor, expressão individual, mas fortemente acentuada das relações entre a vida interior e a vida exterior da cultura católica.
Atente na sua palavra o homem das novas gerações brasileiras, e talvez, como Psichari, poderá amanhã, quebrados os laços do falso respeito e da falsíssima fidelidade, “prendre contre son pére le parti de ses péres”.
O Brasil, como toda a América, tem isto de singular, no mais vasto círculo do que costumamos chamar a civilização ocidental: é uma experiência mais às claras dos métodos e processos revolucionários. Chamou-nos à luz a Igreja e a ela devemos o que realmente somos do ponto de vista social. A sociedade americana foi e ainda é uma sociedade de base cristã. Mas, as próprias leis naturais do nosso desenvolvimento político, ou melhor, de uma consciência particularista, teria que levar-nos fatalmente à afirmação revolucionária da nossa autonomia em face dos povos colonizadores. A crise aguda do nosso movimento libertador coincidiu, porém, com o movimento revolucionário que, na Europa, faria, não esta ou aquela autoridade, mas, sim, o princípio mesmo da autoridade, pela primeira vez posto em dúvida sistematicamente, para salvar-se apenas na frágil e balouçante trama do liberalismo, espécie de mancebia da verdade e do erro social, ou de sutil envolvimento da cidade cristã pelo senso do Estado paganizante. Na América, no Brasil principalmente, o erro tinha que ser as grossas linhas da caricatura e ser mais devastador porque menos pressentido e, portanto, menos combatido. Tudo foi levado à conta do sentimento nacional que se defendia das velhas e odiadas algemas culturais…
O Novo Mundo surgia mais apto a receber as novas leis do novo Sinai dos Direitos do Homem. E a frouxidão da resistência, mesmo da parte dos que diretamente representavam os direitos da Igreja em nossa vida, foi de tal ordem, que o que aqui se viu foi mais que envolvimento, foi mais que um compromisso entre o Estado hostil ao Cristo e a Igreja, que n’Ele vive, mas, uma como demoníaca interpenetração de valores morais, de todo em todo contraditórios, tornando possível, dentro em pouco, este estado de coisas que ainda agora presenciamos: o progresso material da Igreja (o mesmo que no Brasil se observa em quase todas as instituições capazes deste progresso) em um país politicamente organizado como se a Igreja não existisse, o que, sob certos aspectos, é ainda pior do que se o fora em franca hostilidade contra a Igreja, pois esta seria, assim, obrigada a defender-se. No Brasil, não, tudo se passa como no melhor dos mundos e a hipocrisia é a regra nas relações entre a Igreja e o Estado. Os dois poderes se saúdam à distância, e a sociedade toma a feição de um vasto acampamento pagando aos representantes de Deus e de César mas, no fundo, como é natural, só temendo César, que é que tem força organizada. Daí resulta, também naturalmente, esta outra feição característica da nossa vida: nela, só César é realmente odiado, o que poderia ter como consequência um verdadeiro império moral da Igreja. Mas, não é assim, nem, em verdade, poderia sê-lo. Não há vida propriamente cristã, onde não há ordem, onde não há harmonia e governo. E, no Brasil, se, paradoxalmente, se hierarquizam todos os erros, a vida da verdade é como a das larvas, de uma larva eterna, perpetuamente limitada ao indefinido, ao vago, ou, quando muito, aos tristes, aos mesquinhos limites da consciência individual.
O brado de alarme solto, há dez anos, por D. Sebastião Leme por aí ainda vibra, com a mesma força de verdade, por estes chapadões de ceticismo reles, de otimismo reles, de reles semicultura e ainda mais reles gongorismo político. A verdade ainda é a mesma: É evidente que, apesar de sermos a maioria absoluta do Brasil, como nação, não temos e não vivemos vida católica.
“Obliterados em nossa consciência os deveres religiosos e sociais, chegamos ao absurdo de formarmos uma grande força nacional, mas uma força que não atua e não influi, uma força inerte. Somos, pois, uma maioria ineficiente. Somos uma maioria asfixiada. O Brasil que aparece, o Brasil-nação. Esse não é nosso. É da minoria. A nós, católicos, apenas dão licença de vivermos”.
Eis, e vinda de tão alto, a verdade completa. E imagine-se, após meditá-la, o que pode ser mesmo a vida moral de um povo de formação rigorosamente cristã, desviado, assim, ao sabor da brutalizante força, de um Estado sem nenhum compromisso com a sua consciência, a sua sensibilidade histórica. É o que aí está: a microcefalia mais evidente, senão todos os sintomas da paralisia geral mais cruciante… a mais otimista vitória do critério da quantidade sobre o da qualidade, a substituição mais perfeita do sentido da civilização pelo senso do progresso puramente material, a morte lenta, mas segura, do caráter nacional, perdida já a noção clara da sua identidade, a repugnância, quase o ódio a toda tradição, o que é comum a quem não sabe o que quer do futuro…
Eis a sociedade no seio da qual Yves de La Briére, por força mesmo da incompreensível, da sobrenatural resistência da Igreja, ainda encontrará algumas consciências bem formadas e muitas criaturas de boa vontade para ouvi-lo, e crê-lo talvez.
Simplificando, de modo verdadeiramente admirável, o problema que Charles Stanton Devas, parece ter penetrado de um imorredouro jorro de luz, mas só para o escol da própria Igreja — para aqueles que não teme a verdade, seja ela qual for — Yves de La Briére assim no-lo expõe: “Por que estará o catolicismo vinculado à ideia de civilização? Por que a civilização dos povos reclama, primeiro que tudo, um fundamento doutrinal e moral, constituído pelo conceito exato do bem e do mal, do direito e do dever, da justiça, da caridade e de todas as virtudes sociais. Demonstra-nos com facilidade Leão XIII que, na mensagem do Cristo à Igreja, esses conceitos fundamentais nos são propostos, motivados em toda a sua força e em todo o seu esplendor”.
E, depois, ao encontro das eternas restrições da apressada semicultura de mercadores e judeus:
“Compreende a civilização, sem dúvida alguma, elementos de ordem material, econômica, geográfica ou histórica, que não tem relação especial com a influência do catolicismo. A verdadeira religião não dispõe de nenhum talismã para tornar fértil um território sáfaro: para prover de quedas de água, minas de carvão ou poços de petróleo um país destituído destas riquezas; para garantir contra a rapacidade de povos vizinhos uma nação desprovida de boas fronteiras naturais ou de boas instituições políticas e militares. Cristãos ou pagãos, católicos ou dissidentes, os diversos Estados permanecem sujeitos, na luta pela vida, ao império das mesmas condições e circunstâncias humanas.
A civilização de um país avalia-se, entretanto, por alguma coisa além dos seus hectolitros de cerais, das suas toneladas de carvão e de petróleo, do seu maior ou menor número de exportações. Abrange certamente, o respeito da boa ordem social, a fecundidade e moralidade das famílias, a harmonia entre concidadãos, o nível da cultura intelectual e moral, e as instituições fecundas que lhe servem de expressão. Ora, pelas doutrinas que ensina, virtudes que preconiza, obras que suscita e anima, favorecerá poderosamente o catolicismo, o progresso e elevação da civilização geral.”
Eis aí a lição completa. Os que esquecem que não só de pão e esporte vive o homem, esse são como “um cego sem bordão nem guia a caminhar numa ponte arruinada”. O que sofre a Europa desde 1914 é o que ela preparou desde a pretendida Reforma (cesarismo, paganismo dos reis) até a Revolução Francesa (transfusão do paganismo às “elites” sociais) e desta até nossos dias, por lógica consequência da “corrupção do ótimo”, pelo brutal materialismo político de um Estado que, em última análise, só na força se baseia e confia. Loucura racional, eis tudo, a mesma, com as mesmas consequências, tão paradoxal mas tão seguramente verificada por Chesterton, na trama da consciência individual do materialista. O que há em frente da sociedade materialista é o infinito da degradação e do erro. “Existe um infinito mesquinho, uma abjeta eternidade de escravo”. “A eternidade dos fatalistas da matéria, a eternidade dos pessimistas orientais, a eternidade dos orgulhosos teósofos e dos “haute-science” de hoje é, em verdade, muito bem representada por uma serpente comendo a própria cauda, um animal degradado que se destrói a si mesmo”. Não há Estado, pior ainda, não há pátria, não há sociedade que possa resistir por muito tempo se se propõe adequar-se a uma tal eternidade…
Yves de La Briére veio realçar aos nossos olhos as vitórias da civilização que confia ao espírito a harmonia final, a harmonia humana, para falar, como Maritain, de todos os interesses do homem.
Que seja não só aplaudido mas realmente ouvido e acreditado, e possa levar do Brasil a convicção de que não caiu sobre areia movediça as sementes da sua doutrinação evangélica. É o “primado do espiritual” o que requer, do meio das suas ânsias, das suas inenarráveis aflições e misérias, o homem contemporâneo. Que os que ouvem, neste momento, a palavra do ilustre sacerdote francês, não fiquem a meio do caminho ao meditarem o que há de mais difícil no problema que a todos atormenta: o da transformação de tantas ânsias, aflições e misérias em sereno e consciente amor da vida, de todo em todo dependente, é força repetir, desse primado do espiritual, que só a Igreja Católica é capaz de impor e conservar.
Ora, como afirma Maritain, “é no poder indireto da Igreja de Cristo sobre o domínio temporal que corretamente se realiza, do modo mais sensível, mais vivo, mais significativo, o primado do espiritual”.
Yves de La Briére, agitando verdades particulares ao alcance de todo homem de boa fé, não tem querido senão sugerir esta verdade de ordem geral, cujo esquecimento corresponde sempre, na vida dos povos, ao esquecimento da própria consciência, o que equivale dizer, à morte em vida.
Gazeta de Notícias, 31 de agosto de 1927