Jackson de Figueiredo
Deve ser mesmo terrível o ódio da cabeçalha que há quatro anos vem quebrando, um a um, todos os dentes de encontro aos calcanhares do Sr. Epitácio Pessoa.
Há neste homem qualquer coisa de absolutamente superior ao meio em que se formou e em que vive, e a verdade é que, nem as tempestades do cenário político, nem a fria maldade da “pegre” jornalística, nem a raiva incôndita deste ou daquele escuro salteador da alta finança, nenhuma das forças do mal na sociedade brasileira já conseguiu perturbar a excelsa serenidade do seu patriotismo.
Esta serenidade, para ser verdadeira, não poderia ser a de uma estátua, a do que não tem movimento nem vida. Pelo contrário: se há homem de quem se possa dizer que é vivo, neste país, esse homem é o mesmo que, em cinco anos de luta, nem um só momento deixou de atender, com a inteligência e a boa-fé, a todos os reclamos da consciência nacional, mas também com o rigor e a dureza dos que sabem castigar a todos os malfeitores públicos que desrespeitam, entre nós, essa mesma consciência. Corresponde, pois, perfeitamente à sentença carlyleana: “Um homem que não sabe ser rigoroso, não sabe ser bom”.
É por isto que, neste homem de quem, talvez irremediavelmente (pois não creio que jamais abandone as suas) me distanciam, no terreno político, as ideias dominantes da minha vida, sou forçado a reconhecer a personalidade que mais intensamente me revela o que ainda há de são, de nobre, de irradiante simpatia na vida brasileira.
E a tal ponto, que só ele constitui para mim um problema moral dos mais difíceis a resolver, desde que busco na experiência a necessária confirmação das minhas mais arraigadas convicções doutrinárias.
Em verdade, é completa a minha descrença em relação ao espírito jurídico, ao espírito estritamente racionalista e geométrico que presidiu à formação do Estado moderno, e imprimiu ao Brasil, principalmente sobre a fisionomia artificial de um progresso de arranjo, os sinais evidentes da loucura raciocinante.
Por outro lado, não é menor a minha descrença no espírito popular, na chamada opinião pública, que, assim, viciada na sua origem, consagra ou desfaz reputações.
Mas não há, em política, teoria que valha, como força convincente, a verificação de fatos.
Ora, eu não posso negar o admirável equilíbrio entre o temperamento autoritário e viril do Sr. Epitácio Pessoa e os seus ideais de respeito à chamada democracia nacional. Em outro homem, eu não perdoaria, por exemplo, o hercúleo trabalho, a que se tem dado o ex-presidente de justificar a sua vida e os seus atos aos olhos da opinião pública de um país como o nosso, em que a imprensa é, quase sempre, o fator preponderante na formação desta opinião, ela, a imprensa que, na maioria dos casos, é a voz do interesse antinacional ou, pelo menos, dos simples interesses do dinheiro.
Conheço a palavra de Tácito: “Ao juízo de todo o mundo, dar testemunho da sua própria virtude é menos arrogância que confiança na dignidade da sua vida”.
Mas não é desse ponto de vista que se me afigura digna de admiração a atitude do grande brasileiro. Em política, só se justifica o que resulta em utilidade para a vida da nação. E é essa utilidade o que, no caso do Sr. Epitácio Pessoa, sobretudo, se me impõe, pois não é possível duvidar do bem que resulta para o Brasil de toda a ação que avivente uma parcela de real consciência pública, isto é, que independa e até se revele hostil à imensa maré de lodo e de fel, que a imprensa da Capital da República move ao sabor dos seus mais baixos interesses.
É uma sentença do próprio Bonald o que me está a brilhar na consciência: “On ne peut rendre raison du caractere des nations que par les insitutions. On ne peut expliqueur l’homme que par lui-même” [Tradução do blogueiro: “Não se pode dar a razão do caráter das nações senão por suas instituições. Não se pode explicar o homem senão por ele mesmo”].
Ora, nas relações entre a atividade política do Sr. Epitácio e as nossas instituições, não só as propriamente políticas, como as de mais largo caráter social, o que me espanta e me entusiasma é a perfeita harmonia em que vibra tão alto a nota de rejuvenescimento da brasilidade, isto é, de um ardente desejo de engrandecimento do país.
Observe-se, por exemplo, o que se tem passado na sua vida em relação ao nosso meio político e à sociedade brasileira, em geral, nestes últimos cinco anos. A campanha jornalística mais grosseira e mais imoral que entre nós já se tem feito contra um homem público é, incontestavelmente, a que se tem movido contra o Sr. Epitácio, campanha alimentada por ódios ao atual governo, mas, principalmente, pela podridão do nosso financismo de aluguel, e por isto mesmo poderoso, porque representa o que a economia nacional tem de “absurdamente natural”, que é a sua escravidão ao capital estrangeiro. Nem mesmo a campanha que visou o Sr. Arthur Bernardes se lhe pode comparar senão pela intensidade. A persistência dos ódios, porém, mostra que o Sr. Epitácio feriu de frente os elementos mais temíveis da enorme fermentação de interesses ilícitos que ia transformando a vida brasileira num pantanal em que fora horrível viver: financistas provados em bancos de réu, “apaches” da imprensa, e desabusados crioulos [1], que eram e ainda são como chefes de bando no vasto campo do metequismo, que aplaina lentamente a conquista deste vasto mercado, às ambições estrangeiras…
Mas de que tem servido essa campanha?
Para provar somente que no Brasil já existe, de fato, uma opinião pública independente da vontade desses elementos perniciosos. E mais: que essa opinião pública como que fez do Sr. Epitácio o motivo principal da sua existência, confundindo-o, por assim dizer, com a própria dignidade de viver em terra brasileira.
As últimas homenagens prestadas ao grande brasileiro, no momento da sua partida para a Europa ‒ e em que o que mais empolga é ver o carinho dos humildes em plena harmonia com o respeito e a admiração dos poderosos ‒ essas homenagens foram, na realidade, uma tremenda resposta aos que julgavam fácil, na hora de agonias que o Brasil vem atravessando, destruir completamente todo o sentimento de pudor e de honra nacional.
O Sr. Arthur Bernardes não consentiu na vitória dos crimes da violência.
A matilha furiosa lançou-se, pois, aos processos da criminalidade evolutiva, aos processos da desmoralização e da calúnia, como última tábua de salvação.
Mas bastou visasse no Sr. Epitácio essa dignidade nacional, que perturba e inquieta, para que a derrota a fustigasse do modo mais cruel.
Compreende-se a fervura de ódio que assinala as proximidades da loucura…
O Sr. Epitácio, até mesmo fora do governo, sem dispor de outra força que não a da sua irradiação moral, mata de raiva, enlouquece, pelo menos, os inimigos internos da nação…
Bendito seja Deus, que nos suscitou uma tal força de caráter, em hora tão triste e tão angustiosa.
Gazeta de Notícias, 26 de maio de 1926
[1] Provável alusão a Nilo Peçanha, opositor político de Arthur Bernardes e desafeto de Jackson de Figueiredo