Jackson de Figueiredo
As palavras e os atos atribuídos ultimamente ao ilustre procurador geral da República, Dr. Pires de Albuquerque, creio, em consciência, que lhes pertencem e serão uma glória da sua vida de lutador, o esplendor da sua ancianidade, e tão puro, e tão claro que há de refletir ainda sobre o Brasil futuro, sobre as gerações, mais novas, que os atestem e as gerações que, destas, receberão a herança moral dos gestos de hoje.
A atuação de S. Ex., neste momento, revela que ainda pode haver esperança para o Brasil, porque ela é mais uma prova de que, toda a vez que se faz necessário, suscita Deus o homem que, sobrepondo-se às paixões e às covardias do nosso meio social e político, abre lugar para a verdade moral, para o que “deve ser”, para o que “não pode deixar de ser”, desde que temos a pretensão de sermos um povo livre, uma sociedade política com fronteiras materiais e morais perfeitamente definidas, isto é, desde que temos a pretensão de sermos “uma pátria”, um povo com finalidade histórica em domínio autônomo, e consciente, pois, de que tem direito à duração, o que não é possível sem ordem, sem hierarquia, e sem penas, por conseguinte, para os que perturbam a ordem e desmoralizam a hierarquia.
Não estou aqui, pois, a palmilhar a estrada do “Jornal do Comércio”, por exemplo, após a injusta depuração do Sr. Félix Pacheco…
Continuo a pensar que os poderes públicos devem agir energicamente contra a onda revolucionária, que nos desonra e rebaixa aos olhos do mundo, e principalmente para que não se firme, na consciência do povo, sempre crédulo e ingênuo, a concepção eminentemente destruidora e negativa de que a revolução é um bem, um meio normal e justo de reivindicações de ordem política.
Não, até hoje quase não vejo um só ato do governo passado que, repetindo-se as circunstâncias que o provocaram, não me merecesse todo o apoio, se, por sua vez, fosse preciso reproduzi-lo no cenário político brasileiro.
Sou, pois, pela rigorosa repressão à desordem, e favorável a todo ato de justiça que tenda a favorecer-nos com um “exemplo” a empresários de revoltas e motins.
E olho a atitude do procurador geral da República como uma lição de patriotismo, de sentimento e consciência das nossas necessidades, lição que fica entre as de mais alta e mais nobre significação que esse momento nos impõe.
Porque ela é, a meu ver, antes do mais, o seguinte: o testemunho, de uma autorizadíssima consciência de que faliu completamente o direito político brasileiro, o atestado desta mesma consciência de que não podemos mais viver sobre os suportes morais de arranjo, com que um liberalismo, essencialmente antibrasileiro e, sobretudo, inumano (não humano) deixou a sociedade ao desamparo das dúvidas mais cruéis em relação ao seu direito de defender-se dos malfeitores políticos.
Vale, pois, a atitude do procurador geral como um verdadeiro protesto e uma lição de dignidade, da singular dignidade de patriota brasileiro, singular, digo, porque é a mais esquecida de quantas deveriam estar sempre lembradas nas nossas lutas e debates políticos e sociais.
Mas, se assim falo, é porque, do ponto de vista desse mesmo direito público brasileiro, do que ele “é”, do que ele representa como realidade da consciência nacional, não creio que seja possível, sem graves perigos, aceitar a interpretação jurídica, ultimamente atribuída ao ministro procurador, quanto às consequências da aplicação da pena de reclusão aos oficiais revoltosos. O texto da lei é claro e positivo, clara e positiva a correlação entre a Constituição e o Código Penal. E não sei que tradição de direito penal justifique uma interpretação em detrimento do réu, maximé se esta só pode basear-se na afirmação, eminentemente antijurídica, de que a lei contém palavras desnecessárias ou de sentido dubitativo. A verdade é esta: a lei diz claramente que só a pena de prisão, por mais de dois anos, faz perder a farda. A lei é que contém a distinção entre prisão e reclusão. A lei, portanto, não permite a confusão, na consequência da penalidade.
Nada pode haver de mais ridículo como figura de repressão ao crime político de militares, do que o que impõe a lei brasileira. De pleníssimo acordo, como de acordo também quanto ser preciso ier imediatamente em ajuda da nação, emendando o que está errado, o que constitui um ridículo e um perigo, o que constitui um atentado contra a segurança das instituições e do país.
Mas, seja como for, não é este o momento para dúvidas de tal natureza, e não é sobre a matéria viva dos criminosos atuais, que se deve fazer a experiência de uma hermenêutica dubitativa e tendenciosa.
O governo – e quando digo governo quero referir-me aos poderes públicos, sem distinção – deve cumprir a lei sem vacilação e, logo após, emendar a lei, sem a menor vacilação também.
Mas, se a justiça política não pode nunca obedecer ao mesmo geometrismo da justiça, que está nos códigos, não deve nunca tomar a si também a responsabilidade do desrespeito direto, claro e insofismável do texto da lei. A justiça política tem campos mais largos onde exercer o que ela muitas vezes requer e impõe de pessoalidade, de arbítrio individual ou mesmo coletivo.
O governo da República não deve, a esta hora, emprestar aos revoltosos condenados a menor aparência e martírio, não lhes deve dar o menor brilho de singularidade moral, nem aos incendiários profissionais o menor pretexto para novos crimes.
E não deve porque lhe é necessária uma inexcedível limpidez, de consciência dos seus deveres, para poder, se preciso for, atuar com o maior rigor e a mais desassombrada coragem na defesa dos seus direitos.
Gazeta de Notícias, 30 de Novembro de 1927