Jackson de Figueiredo
No Brasil as coisas são assim…
Publica-se no Rio uma revista mensal que a si própria se qualifica de eclesiástica e é dirigida por dois padres estrangeiros. Seria o bastante para que essa revista procurasse primar pela prudência, maximé em relação a tudo quanto se prendesse à política brasileira.
Pois bem: acabo de ter a prova da extrema leviandade com que, pelo contrário, se portam os seus diretores em face de questões desta natureza.
Sei perfeitamente que um deles obedece, no caso, a um mesquinho sentimento de despeito, sentimento este que tive a desdita de provocar. Há uns três ou quatro anos fiz uns reparos, de pouca monta, aliás, a um opúsculo que esse padre publicara em português, mas pensado em italiano. O padre nunca mais me perdoou e eu, francamente, sabia disto mas era como se não soubesse. Respeitava-lhe o caráter sacerdotal e tinha esperança de não me envolver mais com as suas vaidades literárias.
Mas o despeito não cansava e havia de encontrar meios e modos de ferir-me. A ocasião acaba de se lhe oferecer, e o homem não vacila. Atira-se a mim, se bem que com menos coragem do que fora de esperar de tão velha gana.
Ora, por isto mesmo, é imperdoável a sua leviandade. Ficasse no terreno literário e eu nada lhe diria. Era uma pura questão de vaidade, e eu também tenho o péssimo direito de ser vaidoso. Seria quase certo encastelar-me eu na convicção de que o ilustre sacerdote não merecia resposta naquele terreno, e creio que o meu silêncio lhe daria a satisfação de poder, ao menos, parecer vitorioso.
O padre, porém, julgou conveniente taxar-me de leviano em matéria de direito natural e de ética, e, para tanto, não vacilou em usar de linguagem subversiva, em face da ordem legal brasileira, sendo ele sacerdote da Igreja, estrangeiro, no Brasil, e escrevendo numa revista que como eclesiástica se apresenta.
Pois se tenho combatido não católicos de todos os matizes, quando logicamente, por assim dizer, atacam essa mesma ordem legal, porque perdoarei a esse sacerdote, e a esse estrangeiro, e ao seu companheiro também, porque lhes perdoarei que, por não perdoarem a uma “pessoa”, e tão pequena como eu, ousem sofismar e atacar o que há de mais respeitável no Brasil contemporâneo?
Não, esses padres estão completamente enganados e não há que vir a escudar-se depois nesse outro sofisma de que atuo, neste caso, como velho e inveterado jacobino.
De uma vez por todas devo declarar o seguinte: ninguém mais do que eu acata e venera o clero estrangeiro que serve à Igreja, no Brasil, e de quem o Brasil precisa como poucos países tanto precisarão.
Mas uma coisa é o padre agindo como padre no domínio social, e outra é o cidadão estrangeiro, padre ou leigo, intrometendo-se por palavras ou obras no domínio da nossa política interna. Neste último caso, se se trata de um sacerdote, agrava-se somente a leviandade, e é mister que haja quem imediatamente, lhe dê aviso de que está em casa alheia.
O sacerdote a que me refiro está, positivamente, pedindo aviso forte.
Não quero perder tempo em questiúnculas. Por exemplo: à página n.8 do meu livro “A Coluna de Fogo”, para chamar sem caráter a um indivíduo (que eu sei bem quem é), uso de algumas expressões evidentemente irônicas. O padre, não se se por lhe faltar o senso íntimo da língua, se por pura má fé, gasta dez linhas a dar-me uma lição de ascética da consciência. É de fazer rir.
Coisa mais séria, porém, é o seguinte:
Diz o padre:
“À pág. 28 fala-nos o Sr. Jackson dos mashorqueiros militares, averbando-os de audaciosos inimigos da Autoridade e da Lei”.
E acrescenta:
“Esta definição, aliás, muito sensata, sugere-nos o seguinte pensamento: Os piores inimigos da Autoridade e da Lei não são os que se revoltam contra os abusos da Autoridade e dos degoladores do direito alheio: mas os próprios indivíduos e pessoas, em que reside a autoridade, e que, abusando da autoridade e da lei, põem-se fora da própria lei, perdendo qualquer autoridade”.
É curioso o pensamento que lhe sugere — sim, senhor — a minha definição dos mashorqueiros, curioso e, sobretudo, oportuno… pois não é possível que eu ignoro que os piores agentes da Revolução são os governos revolucionários, pelos princípios mesmos que os guias.
É evidente que ou o padre leu o meu livro com olhos de ódio indigno de um sacerdote católico, ou não o leu.
Porque, para falar como falou, assim como quem está a dar-me uma lição, é claro que não fez caso algum deste largo trecho, que está logo ali às portas do livro, e vou citá-lo para descanso de sua consciência.
Referindo-me, no prefácio, ao ensaio sobre a obra de Tasso da Silveira, digo eu:
“Com este ensaio dou prova de que sou capaz de aplaudir também esta ou aquela revolução. Esta, é preciso dizer, é como o jogo e que os teólogos chamam em si indiferente. O sentido em que se faz, os princípios que a orientam é que lhe dão fisionomia moral. E os princípios morais católicos, não só imensamente a restringem (veja o padre o que eu digo: restringem), como a fazem desnecessária, em qualquer manifestação violenta, pois a verdade é que a atividade espiritual do católico pode ser considerada uma permanente revolução contra o domínio tirânico da natureza decaída, isto é, da preponderância do instinto e da paixão. ”
E acrescento estas linhas que o padre há de ter a paciência de ler menos apaixonadamente e tão ajudado pelas luzes de S. Tomás quanto lhe permita o seu esforço de estudioso:
“Isto esclarece o que a muitos imbecis tenho em vão tentado explicar, ou seja, que nem a revolução a mão armada me horroriza mais que a revolução legislante, deliberante, etc. (o padre está compreendendo?) nem ajuízo do caráter dos que tomam parte na revolução armada (homens, quase todos, muito diferentes dos fabricadores, dos fazedores, dos guiões da Revolução) do caráter deles não ajuízo, digo, melhor nem pior que do caráter dos pacíficos conservadores, bonzos do judaísmo universal, parasitas da árvore pagã do Estado moderno.”
E ainda explico:
“Se os governos constituídos, por todo o Ocidente, desde a implantação do regime revolucionário, merecem o apoio do homem cristão, é porque os movimentos de revolta nada mais prometem que um maior arbítrio de massas ignaras. Além disso, mesmo esses governos de contradição e sofisma, têm uma função ‘policial’, que, se não contribui para a felicidade positiva de povo algum, é, pelo menos, garantia de menor infelicidade. E como é na triste paz social, que se vai refazendo pouco a pouco o senso político cristão dos povos repaganizados pelos Direitos do Homem, é essa paz, e a esperança que ela acalenta, o que, de fato, defende o homem cristão, quando parece defender a contraditória e ‘inumana’ (o que é muito pior que desumana), ordem legal dos governos democráticos, republicanos, etc.”
Está vendo agora o padre que a sua lição não pode dirigir-se a mim? Nem a chamada “ordem legal” é um tabu que me iniba de toda e qualquer ação de repulsa, nem jamais esqueci a autoridade de S. Tomás no que diz respeito aos raríssimos movimentos de revolta não condenáveis. E o padre sabe que as distinções neste terreno são o que há de principal.
Mas a verdade é que ele não cuida de ensinar-me a doutrina católica sobre tão delicada matéria. A sua evidente preocupação é desenhar uma situação de fato, é caracterizar a atual ordem legal do Brasil como injusta e tirânica.
Senão, vejamos:
“Guerra à guerra, brada indignado o Sr. Jackson (pág. 29), insistindo na necessidade de um regime de ordem e disciplina, como única esperança de salvação da nação brasileira.
“Guerra à guerra: muito bem! Está direito! No entanto, para eliminar a guerra (posto que isto seja possível), não basta reagir contra os que a promovem e provocam: é preciso também cuidar, examinar, investigar se por ventura não há, no regime do país, motivos e causas permanentes, orgânicas, que periodicamente proliferam e produzem desordens e sedições.
“Cremos que a ordem não se baseia mais na obediência dos súditos que na justiça, no critério, na inteligência dos que governam.
“O mesmo diga-se da paz que é filha da ordem.
“Diz o Sr. Jackson, à pág. 44: ‘O que o Brasil precisa é de paz: mais vale a pior, a mais triste, a mais mesquinha legalidade que as incertezas da mais generosa revolução.’
“Se esta teoria fosse verdadeira e se devesse aplicar à risca, em todos os casos e em todos os países, nunca jamais teríamos paz neste mundo!
“Se há coisa que possa provocar indignação, ódios, sedições e revoltas, é justamente o revoltante espetáculo de uma legalidade mísera, hipócrita, mesquinha, que, sob pretexto de lei, comete as piores iniquidades! Portanto, só se poderia sustentar a máxima do Sr. Jackson, em se tratando de uma república de idiotas ou de ambiciosos, onde o senso moral e o sentimento da justiça não existissem; onde não houvessem cidadãos bons, honestos, capazes de substituir os injustos e tirânicos detentores do poder.
“Não há dúvida, a paciência e o trabalho dos súditos são ótimos fatores das remodelações econômicas e morais de um país; mas também é certo que a paciência e o trabalho dos súditos não remodelarão coisa nenhuma, onde os esforços deles não foram aproveitados e administrados por autoridades inteligentes, honestas e justiceiras. ”
Eis aí o que o padre quis dizer na ânsia de me apequenar como defensor talvez bem pago de uma “legalidade mísera, hipócrita, mesquinha, que, sob pretexto da lei, comete as piores iniquidades”.
E, para tanto, não lhe repugnam os mais tristes sofismas, como esse de, citando um trecho de discurso, em que confesso ser impossível naquele momento, analisar as origens do nosso mal, acusar-me de contradição porque “admito um problema relativo às origens do nosso mal”!!
Parece incrível!
Também se o padre leu o livro, viu perfeitamente que, não uma vez só, mas diversas vezes, é o estudo das origens do nosso mal o que mais me preocupa é a angústia.
Além disso, que lógica é a deste padre? Não se pode combater eficientemente a mal algum de que se ignore a causa e origem?
Causa e origem de todos os males do homem é o pecado, mas não é só combatendo o pecado que contrapomos o nosso anseio de felicidade a males de toda espécie de que desconhecemos a causa imediata. A verdade, maximé na ordem prática, é que é no combate aos efeitos de um dado mal que as mais das vezes conseguimos penetrar a sua origem e aprofundá-la.
Mas em tudo que diz respeito a mim pessoalmente, a verdade é também que o padre não discute de boa-fé, e, antes, se esforça, do modo mais lastimável, para demonstrar-me a sua má vontade.
Eis o que não me interessa absolutamente.
O que não posso sofrer em silêncio é que numa revista eclesiástica brasileira, um cidadão estrangeiro, com a autoridade do sacerdócio, se faça com tanta imperícia mas com tão evidente hipocrisia, um defensor de todas as pretendidas razões da mashorca contra as leis que o protegem como cidadão estrangeiro e como padre católico.
Ele, mais que ninguém, devia ter sempre presentes as palavras de D. Duarte Leopoldo que não me esqueceu transcrever no livro criticado.
E se as leu, e não lhe mereceram um momento de reflexão, não é demais que leia agora as que aqui subscrevo, de absoluta indiferença às suas veleidades literárias, mas de bem refletida repulsa às suas lições de patriotismo.
Gazeta de Notícias, 24 de março de 1926