Jackson de Figueiredo
Desde que o Sr. Epitácio Pessoa deixou o governo, aproveito todas as ocasiões para escrever um artigo de elogio à sua, entre nós, inconfundível personalidade. Neste modo de proceder — note-se bem — viso menos demonstrar a minha solidariedade para com ele — demasiado conhecida e de pouca valia — do que irritar — este é que é o meu grande prazer — do que irritar, digo, a cáfila de judeus africanos, de odientos imbecis, de repugnantes canalhocratas e, sobretudo, de perfeitas mediocridades, que há tantos anos lhe rende a suprema justiça do ódio, do mesmo ódio que a linguagem poética empresta às trevas em relação à luz.
É claro que eu não deixaria de aproveitar a ocasião que se me apresentava agora com a sua chegada na Europa.
Mas, desta vez, vi que se levantava no horizonte dos mesmos escuros ódios um foguete de lágrimas realmente para mim, católico militante, à primeira vista, impressionante e perturbador.
É que, aproveitando uma palavra d’ “A cruz”, órgão da Confederação Católica desta arquidiocese, saíram a campo as mesmas lastimáveis lesmas de sempre a babujarem contra o Sr. Epitácio o eterno despeito sobre que rojam, mas, neste momento, — avalie-se porquê! — porque o ex-presidente ousara aconselhar a legisladores da Paraíba a retirarem o nome de Deus da constituição daquele Estado.
Os órgãos bolchevizantes do país ficaram indignados e creio mesmo que pediram a excomunhão para o Sr. Epitácio.
Ora, graças a Deus que já pude uma vez assistir a uma manifestação de verdadeira fé por parte de tal imprensa! O Brasil está, não resta dúvida, em fase de regeneração, em caminho franco de salvação e de paz.
Felizmente, porém, antes que a salvação nos viesse de tais mãos, o Sr. Dom Sebastião Leme, na última assembleia da Confederação Católica, adiantou-se a essas vestais do nosso teosofismo jornalístico e pôs as coisas no seu lugar… E o que S. Ex.ª disse foi, mais ou menos, o seguinte: que é preciso, sem que nos preocupemos com a atual questão de número, formar a atmosfera própria para que surjam, mesmo no domínio da política brasileira, verdadeiros católicos, homens que, a todas as esferas da vida, levem o ardor da convicção católica e a força dos seus princípios. Que é triste, tristíssimo, que um homem como o Sr. Epitácio — nesta hora de bolchevismo, de eliascalismo e outras infâmias — ainda sacrifique o nome de Deus aos pretensos princípios de um republicanismo, de um democratismo, de um liberalismo como o nosso, que, até hoje, nada mais produziu que simples pessoalismos, e desordens infinitas, por isso mesmo que não representa a alma brasileira, em nada do que ela tem de mais profundo e de mais sério, em nada do que constitui a sua tradição, a sua fisionomia histórica e social.
Mas — disse também o Sr. arcebispo — nem porque assim aconteça, subscreveria insultos ao Sr. Epitácio Pessoa, merecedor do maior acatamento, respeito e admiração, porque a verdade é que o ex-presidente é uma vítima, como tantas outras, do ambiente que nós próprios católicos, deixamos formar-se em nossa pátria, ambiente de indefinição e timidez, ambiente de confusão e covardia.
E o que o Sr. Dom Sebastião Leme, com a eloquência de sempre, soube dizer aos católicos do Rio, é preciso que o Brasil todo possa ouvir e meditar, porque é a pura expressão da verdade, da verdade que, sem desprezar levianamente o que já temos de bom, ainda poderá curar-nos de pesados males e criar novos horizontes de honra e dignidade para a fé consciente, de que o Brasil tanto necessita.
Aliás, no caso do Sr. Epitácio, deve-se, em honra dele, acentuar, do modo mais positivo, que jamais enganou ninguém… Os católicos, sim, estes é que lhe prestaram, por diversas vezes, homenagens que só a católicos militantes compreender-se-ia que se fizessem… Mas — perguntar-se-á — como o Sr. Jackson de Figueiredo tomava parte em tais homenagens?
Respondo com facilidade: tomei e tomarei parte em toda manifestação de solidariedade a um homem a quem amo e admiro. E, na Igreja, não sou comandante, senão simples soldado. Se a Igreja consentiu em tais manifestações, eu nada mais fiz do que deixar o coração ao sabor de tal alegria, do prazer de ver uma aproximação de que só poderiam advir vantagens para a sociedade brasileira.
Mas, repito, o Sr. Epitácio Pessoa jamais enganou ninguém neste domínio, e duvido que me apontem uma só palavra sua, ou um só ato de renúncia aos princípios liberais — fundamentalmente agnósticos, pois — com que, desde o início da sua vida política, trabalhou pela República.
E tanto é assim que, não faz muito tempo, eu próprio procurei dar a explicação, que me parece plausível, não só da minha admiração e do meu amor à forte personalidade do ex-presidente, mas também de todo o movimento de solidariedade que, em relação a ela, é notável nos meios católicos e tradicionalistas, desde a sua passagem pelo governo.
Esta página, que, com o título: Epitácio Pessoa e a mocidade reacionária do Brasil contemporâneo, foi publicada em 1925, no livro: Epitácio Pessoa e o juízo dos seus contemporâneos — livro comemorativo do aparecimento da sua obra Pela Verdade — devo reproduzí-la hoje, porque, ela não só demonstra que jamais estive entre os iludidos, mas também que nenhum motivo tenho para arrepender-me do entusiasmo com que sempre me bati por este homem extraordinário, que, pela retidão natural da consciência e pela força formidável do caráter, tem feito mais pela elevação moral do Brasil do que todos os teosofistas e confucionistas do nosso miserável malabarismo político.
Esta página, com orgulho, com verdadeiro orgulho, aqui a reproduzo. Ei-la:
“Dez vezes tenho repetido, e não me farto de aprofundar esta verificação: o governo Epitácio foi, no Brasil, a mais eloquente demonstração imaginável da tese de Maurras em “Kiel et Tanger”, sobre as sociedades assaltadas pela vermina liberal: se, nelas, surge um governo honesto, com um programa, desejoso de realizar de fato alguma coisa, é certo que, contra tal governo se levantarão, unidas pelo terror, todas as forças desassociativas, todas as forças antinacionais, assim as do anarquismo como as da baixa “pegre” política, e, sobretudo, do capitalismo, que não tem pátria, e é o inimigo natural de todo Estado forte e bem organizado.
O regime republicano, democrático, liberal, em toda a parte, faz com que os melhores cidadãos só sirvam para fornecer aos piores, “pretextos mais respeitáveis, meios de ação mais poderosos” com que ataquem os mais sérios, os mais sagrados interesses do país. É o que diz Maurras. “Il n’y a pas de la République conservatrice”.
Eis a verdade. Só a realidade política, os passes dos chantagistas, dos malabaristas politiqueiros, ou melhor pelotiqueiros, impressionam a média das opiniões; só o palavrório confuso, vazio de sentido descarnado de qualquer realidade humana, palavrório de falso brilho e de ainda mais falsa significação moral, comove o povo, a massa comum. E o regime é aquele em que, ao invés de procurar-se restringir os debates dos problemas mais sérios à consciência dos homens mais entendidos, de maior responsabilidade, pelo contrário, tudo se faz para que interesse ao maior número, a essa massa geral composta, como se sabe, de gente que não entende nada, absolutamente nada do que discute e se discute. É na confusão assim estabelecida que se movem à vontade as aves de rapina da mediocridade, e é dela que se alimentam exploradores de todos os matizes. É este o chamado regime da opinião. Maurras o resume deste modo: “Quem move a opinião? A imprensa. E quem guia a imprensa? O ouro”.
Eis aí, pois, um esquema do mundo político em que eu e tantos outros da minha geração, singularmente tocados de fé e esperança, deparamos com a figura inconfundível de Epitácio Pessoa. Mas, por que inconfundível?
Epitácio Pessoa tem, como quase todos os políticos brasileiros, de cinquenta anos a esta parte, a cegueira liberal como luz dos próprios olhos. Nunca, pensada, conscientemente, a renegou. Ele não veio como o Sr. Artur Bernardes, por exemplo, nem mesmo por meio dos circunlóquios do respeito humano, pregar as duras verdades, que o país precisava e precisa ouvir. Não teve nunca a “intenção” reacionária, o propósito de levantar o povo brasileiro, do atascal em que se debate, por um processo a que se possa chamar de contrarrevolucionário, de antidemocrático. Pelo contrário. Epitácio Pessoa ainda é o mesmo homem que fez oposição a Floriano em razão dos pseudo princípios liberais.
Crê no voto popular, bate-se pela honestidade eleitoral, ama a República, enfim. Que o diferencia, pois, dos demais próceres desta mesma República, para que tanto o amemos, veneremos, para que depositemos tanta confiança na sua ação, na sua energia, no seu critério?
Não há explicação para a força de atração de certas almas, como não há explicação para a beleza. Há almas que são belas em si mesmas: atraem seja qual for a atitude em que se mantenham, ou talvez à verdadeira beleza não seja nunca possível diminuir-se com a adoção radical de pontos de vista, infensos ao que mais alto fala sobre a terra de uma eterna e superior harmonia.
O fato é que há em toda expressão do espírito, do caráter, da inteligência de Epitácio, uma expressão de beleza, de força que se desenvolve harmoniosamente, de energia consciente, que tende a um fim superior. O certo é que toda a sua vida revela esta verdade: que a sua natureza — o seu temperamento, o seu caráter — é mais forte que o tipo social a que procurou moldar-se ou conformar-se.
Como bom bonaldista, o conde de Paris costumava dizer que as instituições corromperam os homens.
Epitácio é, pois, em si mesmo, uma grande vitória da verdade. A sua natureza se afirma nesta vitória contra as instituições, que o século XIX divinizou e fez, por assim dizer, a natureza de quase todos os homens de ação. O temperamento de Epitácio Pessoa resistiu à substituição. Em meio ao caos da ideologia democrática, ele cresceu sem falsear o seu instinto de homem político no sentido “humano”, no sentido “real” da palavra: é um disciplinador nato, um condutor por temperamento. Pôde fazer da própria vida uma obra de arte, porque a beleza maior lhe era interior, e serviu-lhe dela como um herói se serviria de uma flâmula de guerra. Verdadeiro sábio de sabedoria, evitou o egoísmo, a secura da adoração de si mesmo. Pelo contrário: vemo-lo sempre dedicado aos interesses da sociedade em que vive. Mas, não são as suas ideias o que atrai. O que atrai é a sua personalidade, como transcendentalização de tudo quanto lhe emprestou o meio em que vive, o tempo em que formou o seu espírito, transcendentalização que é como uma posse íntima e depuradora de todo o elemento vital que resiste de sob o montão de erros do idealismo materialista, inspirador de toda a política do “século estúpido”.
O “fato de consciência”, que provoca a visão da sua personalidade, não será para uma filosofia política brasileira, deste momento, menos irredutível a uma análise, que o do ruído do mar, por exemplo, à pura psicologia.
Ouvimo-lo, a este, dis Leibniz, mas não temos nenhuma consciência de ruído de cada vaga, e ainda menos do ruído de cada uma das gotas de água de que se compõe essas vagas.
E quando se admita algo de consciente em relação às partes desse todo, ainda é irredutível à análise o processo com que ele se nos impõe, em toda a extensão de sua grandeza.
Com Epitácio Pessoa, com a sua personalidade política, o “fato de consciência” é o mesmo: ele se nos impõe inteiramente e como independente dos fatores de cultura, de educação, de aderências sociais, que perfazem, no entanto, o tipo de homem político que ele é.
A uma extrema simplicidade pode, porém, reduzir-se o problema que este homem representa em meio tão infenso, como o nosso, a afirmações de personalidades: Epitácio tem o favor divino de conservar a retidão natural do espírito humano acima, muito acima do que é comum verificar-se, mesmo em naturezas superiores.
Daí o seu sentimento de justiça, a sua coragem, o seu amor ao trabalho, virtudes que, mesmo quando se recuse apoio à confusão socrática ou aos exageros platônicos, parecem consequências naturais de uma lúcida inteligência, de um espírito intuitivamente seguro da própria lei, em face das obscuridades do mundo.
Numa época de transição, como esta em que o mundo se debate, e agravados, no Brasil, todos os seus problemas, por força mesmo da nossa singular formação aluviônica, um homem como este teria que ser fatalmente o centro de um sistema de forças, que realmente representam a nação, ou, pelo menos, a sua vontade de viver.
A virtude inteligente é de fato a força configuradora por excelência, isto é, a que melhor sabe levar à matéria bruta da sociedade, a impressão, a direção que convém à finalidade superior, que cada sociedade humana, só por sê-lo, quer dizer, só por se constituir de seres livres, racionais, semelhanças de Deus — implica e subentende.
A fase decisiva talvez, na evolução política de Epitácio Pessoa, para a definitiva conquista da consciência nacional, foi aquela em que ressaltou, da sua atividade, o traço de uma orientação rigorosamente conservadora.
Se é verdadeira a ideia de Joubert de que a sociedade saída da chamada Grande Revolução, está em via de fazer a sua tradição, os seus costumes, os seus “precedentes”, numa natureza como a de Epitácio, aos puros inebriamentos da mocidade idealista, teria sucedido a ardente aspiração de concorrer com todas as forças da sua consciência para a perfeita definição dessa tradição, desses costumes, desses “precedentes” na vida brasileira. O orador, que sempre o foi por temperamento, o que quer dizer, mais afeito a generalidades que a análises, teria sido levado, pela inteireza mesma do seu feito moral, pela lógica, pela inteligência, pelo caráter intelectual do seu patriotismo, a aprofundar o caráter, o temperamento, a natureza histórica, social, herdada e realizada do povo brasileiro.
Só assim se compreende que um político, tão ostensivamente aliado aos princípios liberais e democráticos, que nos degradam e nos encaminham para a dissolução, mereça tal confiança, tanto amor, tanta admiração, como merece Epitácio Pessoa da mocidade reacionária do Brasil contemporâneo.”
O Sr. Epitácio Pessoa, mais uma vez, pois, demonstrou que permanece na ilusão dos supostos princípios sobre que se baseia a República ateizante, mediocrizante e desmoralizante… pior para ele. Muito terá que sofrer ainda em contato com este ambiente de todo em todo infenso ao verdadeiro patriotismo, ao verdadeiro amor, que o Brasil tão evidentemente lhe merece.
Quanto a nós, católicos, é guardarmos a última palavra de D. Sebastião Leme: é trabalharmos para que os nossos futuros Epitácios possam, conscientemente, dar ao nome de Deus o valor que Ele deverá ter sempre em toda sociedade política que realmente queira viver vida de ordem e disciplina, vida real, vida moral e espiritual, esquivando-se a esse “ritmo catastrófico” de que fala Berdiaeff, e a que nós, do “Extremo-ocidente”, também somos arrastados, pela força mesma daquela suprema negação.
Gazeta de Notícias, 9 de Novembro de 1927