Jackson de Figueiredo
O Brasil só tem dois grandes problemas a resolver. O primeiro é o problema religioso, porque, infelizmente, a fraqueza do Império transformou em problema a unidade básica da nacionalidade.
Deste problema tudo depende em última análise, mas a verdade é que, para que os seus termos sejam novamente postos em equação, é necessário a solução do nosso problema político, isto é, do nosso segundo problema em ordem de transcendência, problema que, por sua vez, se resume na necessidade urgente de fortificar o princípio de autoridade, o que quer dizer, de dar ao Executivo maior liberdade de ação, “dentro da lei”.
Os indivíduos que temem essa maior liberdade de ação, essa maior fortaleza do Executivo, “dentro da lei”, são sempre os mesmos inquietos renegadores do país pelos métodos da violência e da agressão à mão armada, não raro, vítimas também da pior ignorância: a de que desconhece que, governo que não é forte pela natureza mesma da sua estrutura legal, é sempre levado, pela humanidade de sua natureza, a lançar mão de meios extralegais para reprimir os desordeiros profissionais e os idealistas insensatos e perigosos.
Estas coisas ditas assim, sem citações de eruditismo jurídico, sem justificações de uma concepção de governo que quase se restringe à forma do Executivo, podem parecer radicalmente simplistas ou demasiado abstratas para merecerem a atenção de um país em que as desgraças políticas estão patentes no terreno dos fatos.
A verdade, porém, é que, consultando cada um a sua própria consciência, voltando-se cada um para as lições do seu próprio bom senso, verificar-se-á que a concepção de governo quase nunca abrange mais feições que as do poder em que ainda se reflete algo da unidade de vistas e de mando, que sempre caracterizou a boa ordenação dos povos em todas as idades e em todos os climas. Porque a mesma distribuição normal da justiça há de ser sempre consequência da ordem propriamente política, e não há homem culto que ignore ser a justiça nas democracias agitadas e corruptas, como todas as que não são temperadas pela fortaleza de poder central, instrumentos de vis paixões e muito menos digna sob todos os pontos de vista, que a que pode ser feita entre povos mais amigos da paz e segurança interior que de meras figuras de retórica.
Agora mesmo leio na Mensagem Presidencial, entre másculas palavras de esperança, palavras outras que, a meu ver, valem ainda mais que as de esperança, isto é, as do severo espírito de análise, as do austero amor da verdade, com que o sereno e forte espírito do presidente ousa ainda uma vez, sem quebrar a linha da discrição que a majestade do cargo lhe impõe, apontar à nação os males mais temíveis que ameaçam a sua vida de povo livre e cristão.
“O regímen democrático — diz ele — posto a funcionar sem os freios e contrapesos indispensáveis, degenera inevitavelmente em anarquia. O contrapeso necessário da liberdade é a responsabilidade e o freio — a lei. Liberdade irresponsável conduz fatalmente à licença, à indisciplina, ao caos. Homens públicos irresponsáveis pela mistificação da opinião; políticos irresponsáveis pela fomentação da desordem; jornais irresponsáveis pela difamação dos depositários do poder, pelas dificuldades criadas à política externa e pela instigação ao crime; militares irresponsáveis pelas infrações da disciplina; as paixões das ruas exploradas inominavelmente contra os dirigentes — eis o quadro de uma nação caída na anarquia e a situação de que nos abeiramos se não tomarmos medidas defensivas da sociedade enquanto é tempo.
“Tal situação reclama do Poder Legislativo a maior consideração, por dependerem dele as reformas que hão de auxiliar a modificação dos nossos costumes, no momento tão prejudiciais à República e à marcha ascensional do progresso do país ”.
Ora, o certo é que, forçado pela própria situação em que se acha, o Sr. Arthur Bernardes apela justamente para as luzes do poder em que a responsabilidade é quase uma ficção, em que predomina, por assim dizer, o espírito de multidão e de desordem, quando não o de covardia e rebaixamento, jamais compensado pelas manifestações de energia individual que, afinal, nada mais significam que a reação da responsabilidade “individual” contra a indistinção e passividade das chamadas representações da vontade nacional.
Queiram ou não queiram as brotoejas idealistas, queiram ou não queiram os exploradores da imbecilidade popular, a noção de governo é idêntica à de poder, e a de poder implica indivisível responsabilidade. E tanto é assim que, para “o povo”, ou melhor, para o que constitui a massa geral da nação, toda a responsabilidade cabe sempre ao Executivo e governo nada mais é que o presidente da República.
Para a gente, mais rara, que sente e critica, que tem vida política, será outra, de fato, no íntimo da consciência, a noção de governo, a noção do poder central, que governa a República?
A esta pergunta podem-se dar as respostas mais diversas, mais opostas e mais comprovadoras de alto saber e de grande patriotismo. A verdade é, no entanto, que todos sabem de ciência certa, que o Executivo, tanto aqui como em qualquer outra nação do mundo civilizado, é, com maior ou menor dificuldade, e sempre plenamente nas horas de perigo, o verdadeiro poder, o poder único, aquela único, por conseguinte, que é preciso ter todas as características do poder, que é força e liberdade de movimento.
Assim, toda a reforma de Constituição, no Brasil, só poderá resultar em benefício da nação se tiver como único móvel a criação de um quadro de leis de que ressalte uma unidade mais viva do Poder, ou melhor, a hegemonia legal e não só de fato do Poder Executivo.
É contra este que se levantam, aliás com a certeza e a lucidez dos instintos, todas as más paixões subversivas, e que não vivem só no povo das ruas, mas também, e sobretudo, no seio das assembleias deliberantes. É, pois, em favor dele que a lei tem que se tornar menos complexa e mais simples, para poder ser mais clara e mais imperiosa.
Se isto não se fizer numa serena atuação de patriotismo, como pode ser toda aquela que parte do alto para baixo, não há que duvidar que as revoluções, os motins, as desordens, acabarão por impô-lo de modo violento, haja ou não homens dignos a encarnar o poder, pois é evidente que o instinto popular adivinha, neste momento, o que o país mais necessita.
Um revolucionário que, no princípio da sua vida, o foi dos mais ousados e dos mais desumanos, Camille Desmoulins, veio a reconhecer um dia, ao fim dos seus tristes dias, que Liberdade e Razão eram uma só e mesma coisa.
Pois bem: nós precisamos dar forma racional, lógica e positiva à nossa paixão de liberdade.
O elemento passional permanecerá vivo, e antes se fará mais vivo se se proteger dos seus próprio excessos pela disciplina ou ritmo que a si mesmo se imponha.
Gazeta de Notícias, 5 de maio de 1926