Jackson de Figueiredo
Enfim, é força reconhecer que não há discutir a sério com a gente que por aí nos aparece a pregar a regeneração do país…
No fundo com métodos diferentes, ou melhor, com processos diferentes é a Revolução o que eles querem, é o amplo seio da desordem, que assegure a todas as ambições o seu quinhão de ventura.
Eles não compreendem esta coisa tão simples: que se os homens podem corromper as instituições, estas também podem ser corruptoras dos homens, se não correspondem à natureza deles, ou melhor, se visam um homem abstrato, e não o pobre e miserável ser humano, vítima de opostas forças interiores, necessitado sempre de algo que o obrigue a dominar-se, a policiar-se, a atentar nas próprias fraquezas, nos inferiores que nenhum há que não os tenha.
Ora, a chamada organização democrática (tão confundida, aliás, com o regime republicano) é a audaciosa tentativa de realização da funesta ideologia anticristã que, libertando o homem das suas obrigações para com Deus, acaba por divinizar a sua natureza, emprestando-lhe quase a angelitude, e a perenidade do senso de justiça.
A base, pois, da metafísica democrática (nem há vida de indivíduo ou de coletividade que, como nota P. Bureau, não se prenda intimamente a uma metafísica) é a afirmação da essencial bondade humana e consequente confiança na sua atividade prática.
Mas como não há ninguém que esteja tão perto da negação como o que afirma em demasia, o certo é que a prática desta ideologia é o que se conhece de mais restritivo da liberdade humana, o que ainda não foi expedido em matéria de desconfiança relativamente nos indivíduos. A democracia não é só a inveja, como já se afirmou. Ela é também, e até o é, antes do mais, a desconfiança.
Daí os processos de divisão do poder, e oposição dos partidos sistematicamente organizada, o que quer dizer, o desassossego a inquietação, o sentimento de revolta, não naturais e resultantes de circunstâncias particulares a cada momento, mas buscados, procurados, mantidos em permanente atividade, como fatores necessários da vida social.
Um tal estado de coisas equivale à perpetuidade da guerra civil, na sua pior forma, que é a que destrói a vida moral, bem mais preciosa que a vida física: e é deste modo, que as revoluções à mão armada se tornaram meio vulgar de reivindicação de direitos e, sobretudo, de satisfação do senso comum ofendido pelo que há de absolutamente artificial nesse ambiente de paixões cuidadosamente cultivadas.
Quando, por exemplo, analisamos alguns dos fatos culminantes da revolução, com que a República nos tem mimoseado ultimamente, assalta-nos, não resta dúvida, o sentimento do ridículo, mas de um ridículo tão intenso que toca realmente os limites do rama. Um tal estado de coisas fala de profunda moléstia, de uma terrível desagregação do organismo social…
Tudo parece indicar que o brasileiro é mesmo “um ser ferido nas fontes da vida”, e que a sua existência se resume na crença única da retórica mais idiota e mais reles. Porque até a retórica dos grandes sofistas do utilitarismo contemporâneo lhe repugna. O que lhe sabe bem ao paladar de maribundo é unicamente o que não tem mais significação de qualquer espécie entre as aspirações políticas de um povo que precisa, como o nosso, curar-se de um apodrecimento interno, de caráter positivamente alarmante.
Entretanto, não há esconder a nossa miséria, a nossa pobreza de homens. O que aparece por aí a falar em regeneração, em salvação pública, que pobrezinhos, que pobreza mental a dessa gente!
É de fazer rir e chorar ao mesmo tempo.
O povo se descaracteriza, perde o sentimento nacional de modo verdadeiramente chocante. É cada vez mais estreita a ligação, ou melhor, é cada vez mais poderoso o domínio do capital estrangeiro sobre o capital nacional, quase todo em mão de pervertidos metecos. A classe média, ou as classes médias do país (sem organização, mas onde ainda reside o melhor das nossas energias políticas) divididas em dois campos opostos e adversos, disputam o poder com as armas na mão…
Eis o quadro da vida brasileira, neste momento, e será possível que, no meio dele, ainda haja quem se lembre de formar partidos de palavrório, em entrevistas de jornal? Pois não sentem esses Antonios Conselheiros do nosso infeliz urbanismo que não é mais possível devolver esse montão de lixo liberal com alavancas de papelão?
Em verdade, é difícil imaginar o tratamento que se deva aplicar à anemia espiritual de quem, em face de tão fortes sintomas de desagregação social, passe ainda dias inteiros a gritar para as estrelas do turvo céu republicano, que o voto secreto pode ser a salvação do país, que este precisa de maior liberdade de pensamento e outras parvoíces, em que não resta dúvida que, às vezes, se pode esconder também muita patifaria, muita matreirice de profissionais da exploração popular.
Mas, por outro lado, piam pintos calçudos, servos da própria mediocridade: alfabetizemo-nos! Alfabetizemo-nos!, e, como se vê, é esse pio tão longo, e tão triste, e tão pesado, que mais parece trombetear de onagros tuberculosos.
Voto secreto para que, idealistas antediluvianos? Serão mais sábios amanhã os que usem dele, que os que hoje votam a descoberto? Com o voto secreto desaparecerão — ou se tornarão mais intensas as campanhas de descrédito injustas e caluniosas, e as campanhas apologéticas armadas pelo dinheiro?
Maior liberdade de pensamento para quê, caricatos sofistas? Que palmo de terra já ganhou o Brasil com a sua apregoada liberdade de pensamento? Que honra já lhe adveio da liberdade concedida a cínicos exploradores da cegueira popular?
Não pode haver maior absurdo que equiparar-se o direito da verdade às ambições do erro. Assim como não há ciência que não comece por um ato de fé, o saber político de um povo tem que impor a quantos o queiram penetrar, verdades sagradas, elos da tradição que revelou a existência desse povo.
Quando Augusto Comte queria “limites verdadeiramente normais”, “condições intelectuais convenientes”, à liberdade de opinião, jamais suporia que, sob a sua invocação, ainda se veria um povo ordeiro e tradicionalmente pacífico arrastado às desordens mais desonrantes e às guerras civis mais estúpidas e cruéis, somente para relevo de meia dúzia de prostituídos do jornalismo e da tribuna.
E a alfabetização também, para que, para que a sua intensificação artificial, oh! Zebras de pé de gato?
Por que um operário que sabe ler será mais útil que um sadil homem do campo, que saiba somente lavrar a terra?
Para o Brasil, principalmente, esse homem do campo, por menos letrado, valerá bem mais que o operário mais sábio que, mal informado de quanto lhe permite a liberdade de pensamento das repúblicas burguesas, ou julgando-a insuficiente, lance argumentos de dinamite em meio da festa plutocrática…
Mas a ideologia democrática é assim como certas pessoas, que, no diálogo, jamais escutam senão a si próprias.
Fala-lhes a parte adversa, é inútil. Elas parecem escutar, mas a verdade é que, tal se se tivessem escondido em si mesmas, a seguir o próprio raciocínio ou a própria fantasia.
Silencia a parte adversa? Elas retomam, para o exterior, o fio do discurso, da eterna prova de que estão completamente entregues à adoração de si mesmas.
Não há como discutir a sério com esta gente.
O que é preciso é um homem forte, de maneiras pouco rudes, que lhe dê uma pancada na cabeça e a mande pentear macacos!
O atual presidente, infelizmente, principiou pelo fim. Tem-na mandado muitas vezes aquele exercício de esquecimento… Mas deveria tê-la acordado primeiro. E já se sabe como.
Gazeta de Notícias, 16 de junho de 1926