Jackson de Figueiredo
Não procede, creio eu, a observação d’O Jornal relativamente à “questão que, por momentos enrugou o liso lençol das águas da Conferência Internacional de Comércio”, e não procede porque não vejo como se possa diminuir o valor moral das primitivas afirmações do delegado italiano, Sr. Angelo Pavia. Diz O Jornal que “os objetos dessas Conferências, compostas de personalidades, que não são delegados dos governos das respectivas nações, senão representantes de suas assembleias deliberantes, são muito diversos dos cometidos aos congressos ou conferências de Estados”, etc.
É evidente que O Jornal fez uma lamentável confusão entre o objeto da Conferência e o valor oficial da palavra de cada delegado, em relação ao país que representa. Houve, porém, no caso em debate, um particularíssimo aspecto, que empresta o mais sério valor moral à palavra tão vivamente rebatida pelos delegados do Uruguai e da Argentina. Esse aspecto não pode ser fixado em direito, como de responsabilidade do governo italiano, mas, moralmente, não há como esconder que o atual governo de Itália, sendo um caso singular de força, de coesão e de hierarquia, tem nas mãos, e de modo mais seguro, a medida porque se há de pautar quem quer que represente uma parcela dos interesses da Itália, em qualquer assembleia de caráter internacional. Tudo o mais é sofisma, e perdoável mesmo no seio da Conferência, mas não nas livres críticas da imprensa. Digo mais: a meu ver, tem uma feição simpática a palavra do delegado italiano: ela dá testemunho da nova força espiritual que rege os destinos da Itália. É a prova de que, na Europa, sem política internacional que não a da corrupção e do medo — caminho sempre aberto às hecatombes — vão surgindo os governos realmente capazes de tê-la, límpida e firme, isto é, com clara e evidente finalidade, sujeita a erros não resta dúvida, como no caso presente, como sabendo expressar, pelo menos, o que realmente deseja e quer. E é claro que a Itália quer a “Itália Maior”, e zonas de influência, de que não fique excluída uma influência de ordem moral, positiva e direta, sobre os seus próprios filhos. Nada mais justo, nada mais digno, nada mais capaz de demonstrar a tese de Maurras: só uma política interna, verdadeiramente nacional, só uma política interna realmente forte, dá o direito a uma política externa digna deste nome. Erro do governo italiano ou simplesmente (se é possível ceder neste ponto) erro do Sr. Angelo Pavia, há um único e, este, realmente grave, mas não essencialmente político, e, sim, de observação e de história: o da confusão entre as sociedades, que se organizaram na América, com tudo o mais que, na superfície do globo, se lhe depara em geografia humana, como zonas para expansão do gênio europeu.
Atente o delegado italiano, com mais vagar e paciência, atentem os seus lúcidos olhos no que constitui a vida social brasileira ou na de toda a chamada América Latina. Estude um pouco mais a história dos povos que aqui se organizaram em Estado, e verá impôr-se-lhe a certeza de que, tais povos, por mais sujeitos que ainda estejam aos fortes pulsos do capitalismo europeu, são povos de acentuada tendência particularista, o que quer dizer, são povos que jamais se sujeitarão, consciente e voluntariamente, às imposições de um imperialismo político.
E os fundamentos, as bases desta enérgica personalidade, estranhável, à primeira vista, a quem saiba que somos e seremos, por muito tempo ainda, países de imigração, os encontrará o Sr. Angelo Pavia, se demoradamente meditar sobre a nossa vida, no fato mesmo de que tais povos são, simplesmente, a Europa transplantada, a Europa em outro meio, vivendo numa paisagem outra, caldeada com outros elementos étnicos e culturais, mas tradicionalmente, moralmente a mesma Europa, de que é representante o delegado italiano.
Há que relembrar ainda a autorizada palavra de Paul Valéry: “Onde quer que os nomes de Moisés e de São Paulo, de Trajano e de Virgílio, onde quer que os nomes de Aristóteles, de Platão e de Euclides, tenham uma significação e uma autoridade, aí está a Europa.
Toda raça e toda terra que foi sucessivamente romanizada, cristianizada e submetida, quanto à inteligência, à disciplina dos gregos, é absolutamente europeia”.
Indague o Sr. Pavia as origens da nossa vida municipal, examine o que é propriamente tradição brasileira moral e intelectual, e verá que pisa terra europeia, e onde se lhe depararem barreiras ou precauções de um particularismo nacional, elas nada mais representam que uma feição dessa “defesa do Ocidente”, a pesar tanto ultimamente na preocupação dos pensadores europeus.
“E, por outro lado, eis como fala também René Guenon: “Chamaremos europeus tudo quanto a esta raça se liga e aplicaremos esta denominação comum a todos os indivíduos que dela descendem, seja qual for a parte do mundo em que se encontrem. Assim, os americanos e os australianos são europeus, exatamente pelas mesmas razões por que o são os homens da mesma raça que continuaram a viver na Europa”.
É porque, apesar de todas as nossas deficiências culturais (e o que temos por tal, às vezes, poderá ser complexidade particular da nossa formação histórica), somos, em verdade, obras avançadas da cultura europeia, representantes do espírito histórico do Cristianismo ocidental, é por causa disto que oferecemos a justa resistência que surpreende o próprio europeu, todas as vezes que se tenta reviver, na América, o sistema colonizador do mundo pagão. E, deste ponto de vista, se parecemos ferir este ou aquele interesse de um dado povo europeu, o certo é que a Europa — a sua civilização, o seu espírito — ainda reconhecerá um dia que não fez obra vã nesta parte do mundo, e que é aqui que se estão a acumular as energias com que contará no seu definitivo embate com a onda asiática.
País de imigração, o Brasil, por exemplo, quer e há de compensar os prejuízos do seu desnivelamento moral quotidiano, não só com o trabalho material do imigrante, que é atual, mas também com a acentuação lenta, mas segura, deste caráter ocidental, que é da essência da sua tradição social e política.
O delegado italiano que, a meu ver, repito, nada mais fez que uma justa e digna defesa do espírito da nova e grande Itália, há de reconhecer, porém, que, mesmo quando não expressamos o nosso orgulho como o fizeram os delegados do Uruguai e da Argentina, guardamos, nós, brasileiros, uma tal consciência do nosso direito a uma vida verdadeiramente nacional, que nada mais precisamos, para que a respeitem, do que o nosso sentimento de justiça em relação a todas as nobres aspirações do espírito europeu.
E é por isso também que não nos surpreende o erro ou a injustiça, certo como estamos de que um ou outro pode surgir do impulso mesmo das melhores intenções.
Gazeta de Notícias, 14 de setembro de 1927