Jackson de Figueiredo
Eu quisera saber o que pensa de si mesmo um homem que faz um livro, arranja-lhe um título capaz de aguçar a curiosidade de meio mundo, o expõe nos balcões mais visitados de uma grande cidade, e é forçado a escondê-lo de sua própria esposa e filhas… Ou será que os autores de livros imorais são, todos eles, capazes de levar também à alma das suas próprias esposas e filhas as excitações da sua imoralidade, do seu despudor de imaginação? E se o são, que respeito podem merecer, que qualidade de gente é essa, que se deve esperar de tais homens como cidadãos, como amigos, se nem ao menos respeitam a sua própria família?
Diz-se geralmente que o escritor imoral não obriga ninguém a comprar os seus livros. Mas um tal argumento não atende de modo algum aos fundamentos de bom senso em que assenta o que um Gabriel de Tarde chamaria de lógica social. De fato, o dono de uma casa de jogo ou de tolerância também não obriga pessoa alguma a frequentarmos o antro perigoso e, no entanto, a polícia, quando o persegue, sabe perfeitamente que exerce um sagrado direito – o direito que têm as sociedades verdadeiramente bem organizadas de se defenderem do vício ou do crime.
E além de ser o livro escandaloso excitador natural da curiosidade do maior número, há a atender também que nem sempre quem compra um livro já sabe o que vai ler – e é, às vezes, um título bonito, uma ilustração, o feitio exterior da obra editada, o que provoca a curiosidade de quem percorre as vitrinas de uma livraria. Ora, se isto acontece geralmente ao homem mais seguro de si próprio e experimentado, com bem maiores razões acontecerá se se trata de senhoras, de moças inexperientes.
Este artigo mesmo foi provocado pelo fato de ter visto com tristeza, ainda há poucos dias, a atenção com que uma pobre menina, uma criatura de quinze anos, se tanto, lia a meu lado, num bonde, um livro reconhecidamente imoral – o “Primo Basílio”, de Eça de Queiroz.
Será que a pretendida feição doutrinária, que Camillo encontrava nesse livro, era o que absorvia a atenção da jovem leitora? Haverá quem defenda um tal absurdo? E que diz o título do conhecido romance português? Nada, que o torne suspeito de imoralidade e até, numa jovem apaixonada de um primo qualquer, mesmo que não seja um Basílio, pode um tal título exercer a mais forte das provocações de ordem sentimental.
Ora, é evidente que nos países de organização democrática – nos países, por conseguinte, em que se faz todo o sacrifício não só para intensificar, no povo, a educação mas até para dar à educação caráter de uniformidade moral – único capaz de assegurar uma vida social menos agitada – não se compreende, de forma alguma, a tolerância das leis em face do livro imoral, isto é, do livro que transforma a vantagem das letras na aquisição, mais ou menos violenta, de todos os vícios e infâmias que essas mesmas leis buscam reprimir, quando na ordem dos fatos.
Mas que pensar de legisladores que esquecem este princípio de psicologia – que toda ideia tende a transformar-se em ato?
E nem é preciso citar-se um Ritot, um Lagardiére, sobre o assunto: o próprio senso comum impõe, de acordo com a experiência, a aceitação de um tal princípio, e pede medidas que previnam as suas consequências.
A respeito da responsabilidade dos autores quem não sabe o que já têm dito homens como Carjaval, diante mesmo dos tribunais a que comparecem os simples executores de ideias monstruosas?
Se “até os bons livros podem fazer mal”, quando quem os lê não está à altura de interpretá-los, se até os Evangelhos já deram lugar às interpretações mais monstruosas, que esperar dos maus livros em todas as mãos?
Há venenos para a alma assim como para o corpo, diz Proal, e, comentando-o, disse muito bem D. López Peláez: “Entre os propagadores do erro pela palavra e os que o são pela pena, há a mesma diferença assinalada por Luiz Proal, no prefácio da ‘Criminalidade política’, entre os malfeitores vulgares e os malfeitores políticos: ‘uns matam e roubam somente uma certa classe de pessoas, e o número de suas vítimas é limitado, enquanto que os outros causam imensas catástrofes: corrompem e arruínam nações inteiras’”.
Quanto a esperar que um autor ache imoral o seu próprio livro (desde o momento em que se vê acusado, bem entendido, pois até aí geralmente se gaba de se imoral) a verdade é que o que diz o mesmo crítico, que venho de citar: “é um velho mal, entre os malfeitores da pena, o julgarem sempre inofensivo o que depositam no papel”.
Se os paladinos da campanha em prol da educação nacional não fizerem, simultaneamente, uma outra, e não menos vigorosa, contra o livro imoral, o jornalismo pornográfico, etc, não fazem outra coisa, a meu ver, senão castelos de areia ao alcance da onda.
O Jornal, 1 de Junho de 1921.