Os dois mestres da mística cristã que levaram ao seio da ortodoxia a afirmação individual em matéria de fé foram, sem dúvida, Jean de Ruysbroeck – o Admirável – e Eckart. Este último foi condenado pela Igreja e é, em muitos casos, quem substitui Plotino na formação dos místicos modernos. Sua doutrina, disse Emile Charles, jamais deixou de ser uma das formas do sentimento religioso na Alemanha, o que se compreende, dado que é na Alemanha que o protestantismo tem tido o caráter especulativo mais radicalmente individualista.
Quanto a Ruysbroeck, apesar das dúvidas que nos sugerem as suas “Núpcias espirituais” e as acusações que lhe fazem de imanetismo, creio que estas dúvidas nascem da linguagem alegórica, de que abusou. E inclino-me até a pensar como um dos seus críticos modernos, que se lhe poderia chamar também – o Ortodoxo. O cuidado, que se lhe nota, de evitar a mais leve sombra de panteísmo em sua doutrina, não é pequena garantia de pureza do seu Cristianismo. Ele mesmo o diz “Eu quero que o leitor jamais esqueça que todas as vezes que eu digo que somos um com Deus, é preciso compreender isto em amor, não em natureza, ou essência.” Da mesma forma, logicamente, reagir contra o quietismo, e assim se pode dizer que a sua inspiração, sendo aliás grandemente poética, não vai de encontro ao bom senso do catolicismo.
E neste ponto não é absurdo se afirmar que nada há mais distante do espírito Católico, eminentemente racionalista – do verdadeiro racionalismo, que não faz da razão árbitro do mundo, e aceita a Revelação – que nada há mais distante do espírito católico que o misticismo, tal como geralmente se considera, hoje em dia, esta palavra. Daí as ligações dos chamados místicos contemporâneos ao protestantismo, em que o individualismo predomina. Leia-se mesmo os místicos propriamente literários – um Maeterlinck, por exemplo – e o que a intuição lhes empresta de verdadeiramente humano e grandioso, acaba por se aniquilar no mais estreito individualismo. O mais que apresentam são arranjos doutrinários, sem fixidez, para que se sofra com mais paciência o mal de viver e se encontre na humildade alguma glória útil a nós mesmos e ao mundo.
Ninguém, de certo, existe de coração leal e ânimo sincero que não trema, e vacile, e empalideça ao ouvir, pela primeira vez, a voz profética de Tolstoi pregando a volta à Natureza, a religião sem ritos, e revolvendo todas as nossas misérias sociais, para bem alto proclamar a imoralidade de todas as igrejas, que se fizeram deturpadoras das mansas palavras de Jesus Cristo.
É certo que todos nós, testemunhas de tais misérias, vacilamos ao sopro daquele espírito shakespeariano. Mas é isto como o pavor de quem atravessa, uma noite, a planície batida pelos ventos da tempestade, e sem abrigo, e sem norte, no seio das trevas… A manhã surgirá, e, na alma do viandante, a fé maravilhosa. E ele dormirá à sombra da grande árvore, e louvará o nome de Deus.
Em verdade, Tolstoi nos apresenta os quadros trágicos da vida, e sentimos todos o horror que nos cerca. Mas o raciocínio mais calmo salvar-nos-á da descrença, mostrar-nos-á que nem tudo está errado, desmentirá que a obra do homem sobre a terra só se tenha revelado, até hoje, como obra do mal.
Não. O mal aí está, evidente, nas suas mil modalidades pavorosas, e é o mistério mesmo da nossa natureza que o encerra e não o compreende. Mas a obra do homem tem sido, justamente, a de uma reação incansável contra o espírito destruidor.
Sente-se que Tolstoi não tem consciência de que prega o desespero, e o seu individualismo, como o de tantos outros generosos espíritos, há de forçosamente desaparecer sob os escombros da civilização europeia, a que destruiu.
Porque, neste grande combate que vem sacudindo a alma do homem moderno, desde Lutero, a sucessão, não já de reformas, mas de reformadores sem adeptos, já nos impõe a consciência do quanto é sólida a obra do Cristianismo apresentada pelo máximo esforço de organização social, que é o da Igreja, dê-se ou não à Igreja o caráter divino em que profunda e sinceramente creio.
Ela é a ordem social perfeita porque, mesmo de um ponto de vista puramente humano, a mais sábia, a única em que se evita todo extremo prejudicial, em que o dogma e o bom-senso naturalmente se imanam.
Que fora uma sociedade (?) organizada tal como Tolstoi a imaginou? A abstenção sexual, do modo como a compreendeu, que resultados daria? Pois é crível que seja o fim do homem a sua própria destruição? Dir-se-á que é da doutrina cristã, a que Schopenhauer deu por fundamento o ascetismo, mas é um erro crer que a Igreja, aceitando este modo de ser como mentório, tenha feito dele um dos seus dogmas, ela que fez do matrimônio um sacramento.
O individualismo é, assim, a negação mesma da religião e da vida, pois dele resulta a negação das vantagens sociais, a negação, por conseguinte, do próprio homem, tal como se o conhece, normalmente, sobre o planeta. Que o homem é, na verdade, por sua própria natureza, um ser sociável, mais do que isto: o único ser cuja característica é a união íntima e consciente com o universo. Bem analisando, o único individualismo coerente e sincero é o de Byron, assim como a lenda o fez, assombro das nossas imaginações: um terrível amor da desgraça, o mais absoluto horror ao bom-senso.
Pascal é apontado como o avô, gigante dos modernos individualistas.
Mas é preciso não esquecer que ele, se o foi, pele menos, deu ao individualismo uma solução digna do homem como ser moral, isto é: fazer-se consciente para negar-se a si mesmo, reconhecendo que é muito em face do universo, e nada diante de Deus. O individualismo será assim, a demonstração por absurdo dos verdadeiros fins da nossa vida: conhecimento e caridade, de que a religião é a prática mais alta.
O homem, queira ou não queira, é um escravo da lógica.
Jackson de Figueiredo, 14 de Dezembro de 1920.