Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Carta Encíclica “Sapientiae Christianae”

Sobre os deveres fundamentais dos cidadãos cristãos

Carta encíclica do Papa Leão XIII
10 de janeiro de 1890.



CARTA ENCÍCLICA

A todos os nossos Veneráveis Irmãos, os Patriarcas, Primazes, Arcebispos e Bispos do Orbe Católico, em graça e comunhão com a Sé Apostólica: Sobre os deveres fundamentais dos cidadãos cristãos.

Veneráveis Irmãos: 

Saudação e Benção Apostólica.


I. Introdução

1. Restaurar os princípios da sabedoria cristã e conformar plenamente com eles a vida, os costumes e as instituições dos povos, é uma necessidade que cada dia se torna mais evidente. Da desestima deles derivou tão caudalosa enchente de males, que nenhum homem de são juízo pode tolerar o estado presente sem ansioso cuidado, nem alargar os olhos sem receio para o futuro.

2. Tem-se feito, é verdade, não medíocre progresso nas comodidades corporais e extrínsecas; mas toda essa natureza sensível, a abundância de meios, as forças e as riquezas, se podem gerar comodidades e aumentar a serenidade da vida, não poderão nunca satisfazer a nossa alma, criada para coisas mais altas e com mais gloriosos destinos. Olhar a Deus e encaminhar-se para ele, tal é a lei suprema da vida do homem, o qual, criado como foi à sua imagem e semelhança, é impulsionado com toda a força de sua mesma natureza a gozar do seu Criador. Todavia, esse caminhar para Deus não é obra de movimentos ou esforços corporais, mas de atos próprios da alma, que são: conhecimento e amor. Deus é a primeira e suprema verdade, e da verdade não vive senão a inteligência. Deus é a santidade perfeita e o sumo bem, e a este só a vontade pode aspirar e chegar eficazmente por meio da virtude.

II. Fim último da sociedade

3. Ora, o que se diz dos indivíduos, também deve se aplicar à sociedade doméstica e à civil. Efetivamente, se a própria natureza instituiu a sociedade, não foi para que o homem a seguisse como a seu último fim, mas para que nela e por ela achasse meios eficazes que o auxiliassem no aperfeiçoamento de si mesmo. Logo, se houver sociedade que não procure senão vantagens externas, vida cômoda e delicada, se tiver por praxe pôr a Deus de lado na administração da coisa pública e descurar as leis morais, desvia-se perfidamente do seu fim e das prescrições da natureza e, mais que sociedade e comunidade de homens, é uma imitação enganosa e um vão simulacro da verdadeira sociedade.

4. Ora, esses bens da alma, que acima mencionamos, os quais não se encontram senão na verdadeira religião e na prática perseverante dos preceitos cristãos, vemos que se escurecem cada vez mais entre os homens ou de esquecidos, ou de enfastiados, e parece em certo modo que, quanto mais adianta o progresso no tocante ao corpo, maior se torna a decadência dos bens da alma. E não são pequena prova da diminuição e enfraquecimento da fé cristã as injúrias que com tanta frequência, à luz do dia e aos olhos do mundo inteiro, se estão fazendo à religião, injúrias que uma época zelosa da religião de forma alguma teria tolerado.

5. Por isso mal se pode calcular quão grande multidão de homens se encontra em risco de perdição eterna; e não só os homens, mas também as mesmas sociedades e Estados não poderão conservar-se largo tempo incólumes, porque com a ruína das instituições e dos costumes cristãos, arruinados ficam sem remédio os mais sólidos fundamentos da sociedade humana. Resta só a força material para manter a ordem e a tranquilidade pública; mas essa força bem fraca é, quando não se apoia na religião, tornando-se mais apta a criar escravidão do que obediência; traz em si mesma os germes de grandes perturbações. Assaz catástrofes nos apresentou já o século em que vamos, e quem sabe as que estão ainda por vir!

III. Magistério da Igreja

6. Por conseguinte o mesmo tempo em que vivemos, incita-nos a procurar o remédio onde ele se encontra, isto é, a restabelecer, na vida particular e em todas as partes do organismo social, os princípios e práticas do cristianismo, que é o único meio capaz de exterminar os males que nos vexam e de prevenir os perigos que nos ameaçam. A isso, veneráveis irmãos, devemos atender, nisso com todo o empenho e esforço trabalhar. Por essa razão, embora nós tenhamos já tratado essas matérias em outras circunstâncias, segundo se nos oferecia ensejo, parece-nos todavia útil expor com mais desenvolvimento nesta carta os deveres dos católicos; deveres, cujo experimento exato contribuirá admiravelmente para se salvar a sociedade. Vivemos numa quadra de luta desesperada e quase cotidiana sobre matérias do máximo interesse, na qual de maravilha se não deixarão alguma vez embair uns, desencaminhar outros e esmorecer muitos. E daí, veneráveis irmãos, o nosso dever de advertir, ensinar e exortar a todos os fiéis, como requerem os tempos “para que ninguém abandone o caminho da verdade”.

7. Está fora de toda a dúvida que na prática da vida mais e mais graves obrigações ocorrem aos católicos do que aos homens pouco penetrados da nossa fé ou totalmente desprovidos dela. Quando Jesus Cristo, consumada a redenção do gênero humano, mandou aos apóstolos que fossem pregar o Evangelho a toda a criatura, impôs logo a todos os homens a obrigação de escutar e crer o que lhes fosse ensinado, obrigação à qual vinculou indispensavelmente a salvação eterna: “o que crer e for batizado, será salvo; o que, porém, não crer será condenado” (Mc 16,16). Mas, uma vez que o homem abraçou, como devia, a fé cristã, fica por esse fato sujeito à Igreja, como seu filho, e torna-se membro da mais vasta e mais santa sociedade, a qual o Pontífice Romano governa com missão expressa e autoridade suprema, debaixo de sua cabeça invisível, que é nosso Senhor Jesus Cristo.

8. Ora, se a lei natural nos manda amar com predileção extremosa e defender a terra em que nascemos e nos criamos, de modo que todo o bom cidadão esteja pronto a arrostar até a morte pela sua pátria, com muito maior razão devem os cristãos animar-se de iguais sentimentos a respeito da Igreja, que é a cidade santa de Deus vivo, obra imediata de Deus e por ele mesmo organizada, qual anda, sim, peregrinando nesta terra, mas é a que chama os homens e os instrui e encaminha à eterna bem-aventurança. Amemos, os instrui e encaminha à eterna bem-aventurança. Amemos, pois, e muito a nossa pátria terrena que nos deu a vida mortal: mas amemos ainda mais a Igreja à qual somos devedores da vida imortal da alma, porque é justo preferir os bens da alma aos do corpo, e os deveres para com Deus têm um caráter mais sagrado que os deveres para com os homens.

9. De resto, se bem ponderarmos, o amor sobrenatural da Igreja, e o amor da pátria são dois afetos que procedem do mesmo princípio eterno, de ambos é o mesmo Deus autor e causa, e por isso nunca poderá um ir de encontro ao outro. Sim, nós podemos e devemos por um lado amar-nos a nós mesmos, querer bem ao próximo, amar a coisa pública e a autoridade que a governa, e por outro lado e ao mesmo tempo venerar a Igreja como a Mãe, e amar a Deus com o maior amor que nos caiba no coração.

IV. Hierarquia da obediência

10. Todavia, a harmonia desses dois deveres anda algumas vezes transtornada pela desgraça dos tempos, ou pela má vontade dos homens. Casos há efetivamente em que o Estado exige uma coisa do súdito e a Igreja requer outra do cristão, e a causa dessa colisão é porque os chefes políticos ou não reconhecem o poder sagrado da Igreja ou a pretendem avassalar. Daqui as perseguições e as admiráveis cenas de fortaleza cristão. Dois poderes insistem dando ordens contrárias. Obedecer a ambos ao mesmo tempo é impossível: “Ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6,24), agradar a um é descontentar o outro, mas qual deva ser preferido é coisa em que não cabe a menor dúvida.

11. Seria crime negar obediência a Deus para dá-la aos homens; seria delito infringir as leis de Jesus Cristo para obedecer aos magistrados, ou violar os direitos da Igreja sob pretexto de guardar as leis de ordem civil. “Importa obedecer mais a Deus do que aos homens” (At 5,29). Essa resposta que outrora costumavam dar Pedro e os demais apóstolos aos magistrados, quando lhes ordenavam coisas ilícitas, devemos repeti-la todos os dias muito resolutamente em circunstâncias iguais. Não há melhor cidadão, quer na paz, quer na guerra, do que o cristão que o é deveras; mas por isso mesmo que o é, deve antes estar resolvido a sofrer tudo e a própria morte, do que desertar a causa de Deus e da Igreja.

12. Daqui se infere que não conhecem bem a força e a natureza das leis os que censuram essa resolução na escolha entre deveres encontrados, e a infamam de sedição. Estamos falando de coisas que todos sabem e que nós mesmos já por vezes explicamos. A lei não é outra coisa que um ditame da reta razão promulgado pela autoridade legítima para o bem comum. Verdadeira e legítima autoridade não a pode haver, sem que derive de Deus, rei e Senhor supremo de todas as coisas, único que pode investir o homem de autoridade sobre os outros homens. Reta razão não se pode chamar aquela que discordar da verdade e razão divina; e, quanto a bem verdadeiro, certamente não o é o que estiver em contradição com o bem supremo e imutável e por conseguinte torcer e desviar as vontade humanas do amor de Deus.

13. Sagrado é, pois, para cristãos, o nome de autoridade pública, por verem nela, ainda quando reside em sujeito indigno, algum reflexo e semelhança da majestade divina. Justo e devido é para eles o respeito das leis, e não por medo da força e de sanções penais, mas por simples dever de consciência: “Porque não nos deu o Senhor espírito de temor (2Tim 1,7). Mas também se as leis do Estado se puserem em aberta contradição com a de Deus, se forem injuriosas para a Igreja ou contrárias aos deveres religiosos, se violarem no Sumo Pontífice a autoridade de Jesus Cristo, então resistir é obrigação, e obedecer seria um crime – e crime até contra a pátria –, porque pecar contra a religião é fazer mal ao próprio Estado.

14. E outra vez se mostra quão injusta seja a querela de rebelião, visto que em tais casos não recusam os cristãos ao Príncipe e aos Legisladores obediência que lhes seja devida, mas afastam-se da vontade deles naquelas experiências para as quais não têm autoridade nenhuma, porque são injuriosas para Deus e, portanto, injustas e uma vez que são injustas, tudo serão, menos leis.

V. Testemunhas da Escritura

15. Bem sabeis, veneráveis irmãos, ser esta a mesmíssima doutrina do apóstolo São Paulo, que, escrevendo a Tito para lembrar aos cristãos: “que devem ser sujeitos aos príncipes e aos magistrados, e obedecer-lhes”, acrescenta logo: “e estar prontos para fazer toda a boa obra” (Tt 3,1), com o que deixou bem declarado que, se as leis dos homens alguma coisa mandarem contra a eterna lei de Deus, o justo é não obedecer. Do mesmo modo o príncipe dos apóstolos com ânimo generoso e invicto dava esta resposta a quem queria tirar-lhe a liberdade de pregar o Evangelho: “Se é justo diante de Deus ouvir-vos a vós antes que a Deus, julgai-o vós; porque não podemos deixar de falar das coisas que temos visto e ouvido” (At 4,19-20).

16. Portanto, amar ambas as pátrias, a da terra e a do céu, mas com tal ordem que o amor da pátria celeste prevaleça ao amor da primeira, e que jamais as leis humanas sejam preferidas à lei de Deus, tal é o principal dever dos cristãos, dever que é como a fonte donde derivam todos os outros deveres. E em verdade o Salvador do gênero humano disse de si mesmo: “Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37); e também: “Eu vim trazer fogo à terra, e que quero eu senão que ele se acenda?” (Lc 12,49). Ora no conhecimento dessa verdade que é a suprema perfeição da inteligência, e na caridade divina que aperfeiçoa sumamente a vontade, é que consiste toda a vida e toda a liberdade cristã. Esse nobilíssimo patrimônio de verdade e caridade, confiou-o Jesus Cristo à sua Igreja, a qual com perpétuo zelo e vigilância o conserva e defende.

VI. Naturalismo político

17. Não é necessário mencionar aqui a encarniçada e múltipla guerra que se tem ateado contra a Igreja. Só porque a razão, acompanhada das investigações da ciência, acertou de arrancar à natureza grande número dos seus segredos e aplica-los com vantagem aos diversos usos da vida, chegaram os homens a tão desmedido orgulho, que já lhes parece que podem proscrever a Deus e a autoridade divina de toda a vida social.

18. Alucinados com esse erro transferem para a natureza humana o domínio que ao divino Autor dela roubaram. Deram em ensinar: que é à natureza que se deve pedir o princípio e a regra de toda a verdade; que dela dimanam e a ela se devem dirigir todos os deveres religiosos; que por conseguinte não existem verdades reveladas, nem obrigação alguma de obedecer à moral cristã e à Igreja; que esta não tem poder legislativo nem direito algum e que nem sequer convém dar-lhe entrada nas instituições civis. Para poderem mais comodamente conformar com semelhantes doutrinas a legislação e a educação nacional, procuram com todo o empenho apoderar-se da administração pública e da direção dos Estados. Desse modo está sendo combatido o catolicismo em muitas regiões, com guerra já aberta, já solapada. Concede-se ampla liberdade aos erros mais perniciosos, e ao mesmo tempo inventam-se amiúde novos embaraços para se estorvar a profissão pública da fé cristã.

VII. Os fiéis devem conhecer e tutelar a doutrina

19. Em presença dessas iniquidades, seja o primeiro dever de cada um entrar em si e aplicar-se com todo o desvelo a conservar a fé profundamente arraigada em sua alma, livrando-se de todos os perigos e nomeadamente mantendo-se armado contra falácias e sofismas. A fim de melhor manter a integridade dessa virtude, julgamos utilíssimo e em conformidade às necessidades dos nossos tempos, que cada qual, segundo seus meios e inteligência, se aplique bem ao estudo da doutrina cristã e faça que sua alma se embeba, o mais possível, das verdades da fé acessíveis à razão. E, como não basta que a fé permaneça intacta nas almas, mas que deva ir crescendo com assíduos progressos, convém reiterar a Deus muito amiúde a suplicante e humilde petição dos apóstolos: “Senhor, aumentai-nos a fé” (Lc 17,5).

20. Nessa mesma matéria que a fé cristã respeita, há outros deveres ainda, cuja fiel e religiosa observância, se em todos os tempos muito importou para a salvação, é nos nossos dias de uma importância extrema.

21. Nesse enorme e geral delírio de opiniões que vai grassando, o cuidado de proteger a verdade e de extirpar o erro dos entendimentos é missão da Igreja e missão de todo o tempo e de todo o empenho, como que à sua tutela foram confiados a honra de Deus e a salvação dos homens. Mas quando a necessidade é tanta, já não são somente os prelados que hão de velar pela integridade da fé, uma vez que: “cada um tem obrigação de propalar a todos a sua fé, seja para instruir e animar os outros fiéis, seja para reprimir a audácia dos que não o são”.[1] Recuar diante do inimigo, ou calar-se, quando de toda a parte se ergue tanto alarido contra a verdade, é de homem covarde ou de quem vacila no fundamento de sua crença. Qualquer dessas coisas é vergonhosa em si; é injuriosa a Deus; é incompatível com a salvação tanto dos indivíduos, como da sociedade e só é vantajosa aos inimigos da fé, porque nada tanto afoita a audácia dos maus, como a pusilanimidade dos bons.

VIII. O perigo da inércia culposa

22. E essa covardia dos cristãos merece ainda maior censura porque desfazer acusações caluniosas e refutar opiniões falsas, com pouco trabalho se conseguiria as mais das vezes e, com algum trabalho mais, se conseguiria sempre. Em último caso não há ninguém, absolutamente ninguém, que não possa fazer uso e mostra de fortaleza que tão própria é de cristãos e que só como assumir basta não raras vezes para derrotar os inimigos com todos os seus intentos. Acresce que os cristãos nasceram para o combate, e quanto mais bravo ele for, mais certa será com o auxílio de Deus a vitória: “Tende confiança, eu venci o mundo” (Jo 16,33). Não venha alguém dizer que Jesus Cristo, como conservador que é da Igreja e vingador dos seus agravos, não precisa da cooperação dos homens, pois que, não por falta de poder, mas por excesso de bondade, quer Deus que contribuamos com alguma coisa para se obterem e lograrem os frutos da salvação que sua graça nos procurou.

IX. Obrigação universal de professar e propagar o Evangelho

23. A primeira aplicação desse dever é professar, clara e constantemente a doutrina católica e propaga-la o mais que se puder. Com efeito, como já se disse muitas vezes e com muita verdade: o que mais prejudica a doutrina de Cristo é não ser conhecida. Ela só, bem compreendida, basta para triunfar do erro, nem há aí alma simples e livre de preconceitos que a razão não mova a abraça-la. Ora a fé, ainda que como virtude é um dom precioso da divina graça e bondade; todavia, quanto ao objeto sobre que versa, não pode por via ordinária ser conhecida senão pela pregação: “Como crerão naquele que não ouviram? E como ouvirão sem pregador?… a fé é pelo ouvido, e o ouvido pela palavra de Cristo” (Rm 10,14-17). Por conseguinte, sendo necessária a fé para a salvação, segue-se que é inteiramente indispensável a pregação da palavra de Cristo. É certo que esse encargo de pregar ou de ensinar pertence por direito divino aos doutores, isto é, aos bispos que o Espírito Santo constituiu para governar a Igreja de Deus (At 20,28) e de um modo especial ao pontífice romano, vigário de Cristo, preposto com poder supremo à Igreja universal como mestre de quanto se há de crer e praticar. Mas não pense ninguém que ficou por isso proibido aos particulares cooperar com alguma diligência nesse ministério, principalmente aos homens a quem Deus concedeu dotes de inteligência juntos com o desejo de serem úteis ao próximo. Esses, em caso de necessidade, podem muito bem, não já afetar a missão de doutores, mas comunicar aos outros o que eles mesmos aprenderam, e ser em certo modo o eco dos mestres. Até mesmo essa cooperação dos particulares pareceu aos Padres do Concílio Vaticano I tão oportuna e frutuosa, que não hesitaram em reclamá-la nos termos seguintes: “ A todos os fiéis cristãos, principalmente àqueles que tem superioridade e obrigação de ensino, suplicamos pelas entranhas de Jesus Cristo, e em virtude da autoridade deste mesmo Senhor e Salvador nosso lhes ordenamos, que apliquem todo o seu zelo e trabalho em desviar esses erros e eliminá-los da luta da Igreja, e difundir a luz puríssima da nossa fé. [2]

24. Por fim lembrem-se todos que podem e devem disseminar a fé católica com a autoridade do exemplo e pregá-la com uma profissão constante.

25. Desse modo nos deveres que nos ligam com Deus e com a Igreja está em primeiro lugar o zelo que cada qual deve trabalhar segundo as suas forças em propagar a doutrina cristã e refutar os erros.

X. Unidade da Igreja militante

26. Mas a esses deveres não satisfarão os fiéis completa e eficazmente, se descerem ao campo de batalha divididos e desacompanhados uns dos outros.

27. Jesus Cristo anunciou em termos bem claro que a odiosa oposição, feita pelos homens à sua pessoa, perpetuar-se-ia contra a sua obra de modo que a um grande número de almas se impediria a salvação que por sua graça trouxe ao mundo. Foi por isso que ele quis não somente formar discípulos de sua doutrina, mas também reuni-los em sociedade e organizá-los num só corpo “que é a Igreja” (Cl 1,24) de que ele seria cabeça. Consequentemente a vida de Jesus Cristo derrama-se por todo o organismo deste corpo, nutre e sustenta cada um de seus membros, conserva-os unidos entre si e conspirantes para o mesmo fim, apesar de não caberem a todos as mesmas funções (cf. Rom 12,4-5). Daqui se conclui que a Igreja não somente é uma sociedade perfeita e muito superior a qualquer outra sociedade, mas também que lhe é conatural, por disposição de seu Autor, combater pela salvação do gênero humano como um exército formado em batalha (cf. Ct 6,9). Essa organização e forma da sociedade cristã não pode alterar-se por nenhum caso, nem é permitido a nenhum de seus membros operar a seu bel-prazer ou seguir no combate a tática que melhor lhe aprouver, porque quem não colhe com a Igreja e com Jesus Cristo desperdiça (cf. Lc 11,23), e certamente combatem contra Deus os que não combatem às ordens de Deus e da sua Igreja.

28. Ora, para efetuar essa união dos espíritos e uniformidade de ação que tão formidável é, e com razão, aos inimigos do catolicismo, a primeira condição é a concórdia de sentimentos à qual com zelo ardente, e singular gravidade de palavras, exorta São Paulo aos Coríntios: “Eu vos conjuro, irmãos, pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que tenhais todos uma mesma linguagem e que não haja cismas entre vós; mas que vivais numa perfeita unidade de sentimentos e de afetos” (1Cor 1,10).

XI. Concórdia nos modos de pensar

29. A sabedoria desse preceito é evidente. Efetivamente o pensamento é o princípio da ação, e daqui resulta que não se podem concordar as vontades nem combinar as ações, onde os modos de pensar forem diversos. Entre os que só a razão reconhecem por guia, raro ou nunca se encontrará unidade de doutrina, porque o caminho da ciência está cheio de tropeços, a inteligência humana é fraca por natureza e, sobre fraca, deixa-se distrair pela variedade de opiniões e muitas vezes enganar pelas impressões externas, e além disso acresce a influência das paixões que tão amiúde, tira de todo, ou diminui a capacidade de descobrir a verdade. E eis a razão por que no governo político se recorre muitas vezes à força, para suprir com ela a união que falta aos espíritos.

30. Melhor é a condição dos cristãos – os quais recebem da Igreja a regra da sua fé e sabem com certeza que, obedecendo à sua autoridade e deixando-se guiar por ela, estão com a verdade. Por isso assim como uma só é a Igreja, porque um só é Jesus Cristo, também entre os cristãos de todo o mundo uma só é e deve ser a doutrina “um Senhor, uma fé” (Ef 4,5). Tendo todos o mesmo espírito de fé (cf. 2Cor 4,13), possuem o salutar princípio do qual espontaneamente dimana para todos um mesmo querer e um mesmo agir.

31. Mas, como manda o apóstolo São Paulo, essa unanimidade deve ser perfeita.

32. A fé cristã não se funda na autoridade da razão humana, mas no testemunho da razão divina. Cremos que a revelação é verdadeira “não pela intrínseca verdade das coisas percebidas com a luz natural da razão; mas pela autoridade do mesmo Deus que revela e que não pode enganar-nos”. [3] Segue que quaisquer verdades, que conste serem reveladas por Deus, a todas e a cada uma devemos igual e pleno assentimento. Negar crédito a uma só que seja, é quase o mesmo que rejeitá-las todas; pois tanto destroem o fundamento da fé os que negam que Deus falasse aos homens, como os que põem em dúvida a sua infinita verdade e sabedoria.

33. Agora, quanto a determinar quais sejam as doutrinas reveladas, é missão da Igreja docente a quem Deus confiou a guarda e a interpretação da sua palavra, e o doutor supremo na Igreja é o pontífice romano. Por isso, assim como a união dos espíritos reclama uma perfeita concórdia na mesma fé, assim também requer uma completa submissão e obediência das vontades à Igreja e ao pontífice romano, como a Deus mesmo.

XII. Docilidade e submissão ao magistério

34. E essa obediência deve ser perfeita, porque é imposta pela mesma fé e tem em comum com a fé o ser indivisível. Antes, se não for absoluta e perfeita, de obediência poderá ter o nome, mas não a natureza. A tradição cristã dá tanta importância a essa perfeição de obediência, que sempre a teve e tem ainda hoje, por sinal característico para se reconhecerem os católicos. É o que explica Santo Tomás de Aquino de modo admirável nos termos seguintes: “O objeto formal da fé é a verdade primeira, segundo está manifestada nas Santas Escrituras e na doutrina da Igreja que procede da verdade primeira por onde quem não adere, como à regra divina e infalível, à doutrina da Igreja que procede da verdade primeira manifestada nas Santas Escrituras, não tem o hábito da fé, mas possui as verdades da fé por outro modo que não é a fé… Ora, é manifesto que quem adere à doutrina da Igreja, como a uma regra infalível, dá o seu assentimento a tudo o que a Igreja ensina. Se assim não fosse, se entre as coisas que a Igreja ensina, só abraçasse o que lhe agrada e excluísse o que lhe desagrada, não seguiria como norma infalível a doutrina da Igreja, mas sim a vontade própria. [4] “Uma deve ser a fé de toda a Igreja, segundo aquilo de São Paulo aos Coríntios (1Cor 1,10): “Tente todos uma mesma linguagem e não haja divisões entre vós”. Ora, essa unidade não poderá subsistir sem que as questões, que se levantarem acerca da fé, sejam resolvidas por aquele que preside a toda a Igreja, para que a sua sentença seja por ela acatada com firmeza. Por isso é reservada à autoridade do sumo pontífice a nova edição de um Símbolo e qualquer outra providência que diga respeito à Igreja universal”. [5]

35. Quanto à determinação dos limites da obediência não imagine alguém que basta obedecer à autoridade dos pastores das almas e sobre todos do Pontífice Romano nas matérias de dogma, cuja rejeição pertinaz traz consigo o pecado de heresia. Nem basta ainda dar sincero e firme assentimento àquelas doutrinas que, apesar de não definidas ainda com solene julgamento da Igreja, são todavia propostas à nossa fé pelo magistério ordinário e universal da mesma como divinamente reveladas, as quais por decreto do Concílio Vaticano I devem ser cridas com fé católica e divina. É necessário também que os cristãos contem entre os seus deveres o de se deixarem reger e governar pela autoridade e direção dos bispos e principalmente da Sé Apostólica. Bem fácil é de ver o razoável dessa sujeição. Efetivamente das coisas contidas nos divinos oráculos, umas referem-se a Deus, e as outras ao mesmo homem e aos meios necessários para chegar à sua eterna salvação. Ora, nessas duas ordens de coisas, isto é, quanto ao que se deve crer e ao que se deve fazer, compete por direito divino à Igreja, e na Igreja ao Pontífice Romano determina-lo. E eis a razão por que o pontífice deve ter autoridade para julgar que coisas contenha a palavra de Deus, que doutrinas concordem com ela e quais delas desdigam; e do mesmo modo determinar o que é bem e o que é mal, o que se deve fazer e o que se deve evitar para conseguir a salvação eterna. Se isso não se pudesse fazer, o Papa não seria intérprete infalível da palavra de Deus, nem o guia seguro da vida do homem.

36. Mas precisamos penetrar mais ainda na natureza íntima da Igreja. Não é uma associação casual de cristãos, mas uma sociedade constituída por Deus com uma organização perfeitíssima, tendo como fim direto e próximo a paz e a santificação das almas. E como só ela recebeu da divina munificência os meios necessários para tal fim, tem suas leis fixas, seus deveres determinados, e observa na direção dos povos cristãos um estilo e regime conforme com a sua natureza.

XIII. Governo da Igreja

37. Mas o exercício dessa direção é difícil e tropeça em frequentes obstáculos; porque a Igreja rege povos disseminados por todas as partes do mundo, diversos em raça e costumes, os quais, como vivem cada um na sua terra, devem ao mesmo tempo obediência ao poder civil e ao religioso. Estes deveres andam, é verdade, juntos nas mesmas pessoas; mas não decorre daí, como já advertimos, que haja entre eles contradição ou confusão, pois referem uns à prosperidade do Estado e os outros ao bem comum da Igreja, e uns e outros são ordenados à perfeição de todo o homem.

XIV. A Igreja e os Estados

38. Posta essa limitação de direitos e deveres, é evidente que os chefes de Estados são livres no exercício do seu poder de administração e isso não só sem repugnância da Igreja, mas até com sua cooperação formal; pois com recomendar sobretudo a observância da piedade religiosa, que é a justiça para com Deus, já com isso mesmo prega a justiça para com os príncipes. Todavia o poder da Igreja mira a um fim muito mais nobre que é governar as almas, mantendo “o reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33), e a esse fim dirige todos os seus esforços. Que esse governo das almas fosse cometido à Igreja, como coisa própria e singularmente sua, sem ingerência nenhuma do Estado, é uma verdade tal, que só o pô-la em dúvida seria ir contra a fé, já que não foi a César, mas a Pedro, que Jesus Cristo entregou as chaves do reino dos Céus.

39. Com essa doutrina sobre as relações religiosas e políticas andam conexas outras de não pequena importância, que não queremos aqui deixar em silêncio.

40. A sociedade cristã é muito diversa de todo o governo político, qualquer que seja a sua forma. Se tem alguma semelhança e forma de reino, tem no entanto uma origem, uma causa e uma natureza muito diferentes dos reinos mortais.

41. Por isso mesmo tem a Igreja o direito de viver e de se conservar com instituições e leis conformes à sua natureza. E, como não somente é uma sociedade perfeita, nega-se resolutamente, por direito e por dever, a seguir partidos e enfeudar-se às exigências volúveis da política. Por uma razão semelhante, como guarda que é do seu direito e respeitadora escrupulosa do direito dos outros, não se intromete a decidir preferências entre as várias formas de governo, nem a discutir as instituições civis dos Estados cristãos, antes aprova todos os diversos sistemas políticos, contato que respeitem a religião e a moral cristã.

42. Por esse exemplo deve todo o católico modelar suas ideias e ações. Cabe certamente no campo da política alguma luta honesta, quando se ressalvam os direitos da verdade e da justiça, e todo o empenho é de fazer prevalecer de fato e na prática certas ideias, que pareçam mais consoantes para o bem comum. Mas querer arrastar a Igreja a um partido e a todo o transe servir-se dela para triunfar de adversários políticos, é abusar enormemente da religião. Antes pelo contrário a religião deve ser para todos uma coisa sagrada e inviolável. Mais ainda: na mesma política, que é inseparável das leis da moral e dos deveres religiosos, devem ter-se em vista sempre, e em primeiro lugar, os interesses cristãos, e isso em tal grau, que se em algum lugar esses interesses fossem ameaçados pelas manobras dos inimigos, deveria cessar imediatamente todo o dissentimento no campo católico, para, unidos em plano e esforço, acudirem a sustentar e defender a religião, o mais geral e supremo bem, a que todo o resto se deve subordinar. Julgamos ser necessário insistir ainda mais sobre esse ponto.

XV. Distinção entre os dois poderes

43. É certo que a Igreja e o Estado têm cada qual a sua soberania própria. Por isso, na gestão de seus negócios nenhuma dessas sociedades obedece à outra nos limites, já se entende, determinados a cada uma pelo seu fim imediato – mas daqui não decorre que elas fiquem desunidas e muito menos opostas uma à outra.

44. Com efeito a natureza não nos deu somente uma existência física, mas também uma existência moral. Por isso a tranquilidade da ordem públicas, que tal é o fim imediato da sociedade civil, deve facilitar ao homem os meios não só para o desenvolvimento físico, mas também e principalmente para o aperfeiçoamento moral, que consiste no conhecimento e na prática da virtude. Ao mesmo tempo quer o homem, e deve querer, achar na Igreja os auxílios necessários para o seu aperfeiçoamento religioso, que consiste no conhecimento e observância da religião verdadeira, que é a rainha das virtudes, porque, ordenando-as a Deus, as enobrece e aperfeiçoa.

XVI. A Igreja e os homens políticos

45. Sendo isso assim, devem os que redigem constituições e fazer leis, ter em consideração a natureza moral e religiosa do homem e ajuda-lo a aperfeiçoar-se, mas isso com ordem e retidão, abstendo-se de ordenar ou proibir coisa alguma, sem primeiro ponderar qual seja o fim próprio da sociedade civil e qual o da religião. Pela mesma razão não pode a Igreja ficar indiferente a que tais ou tais leis rejam os Estados, não enquanto são leis civis, mas porque talvez saindo de sua esfera lhe invadem seus direitos. A Igreja até recebeu de Deus o mandato de resistir todas as vezes que a política prejudique a religião, e de empregar contínuos esforços para que o espírito do Evangelho penetre e anime as leis e as instituições dos povos. E, como a sorte dos Estados depende principalmente das disposições dos que os governam, não pode a Igreja conceder o seu apoio e favorecimento aos homens que sabe lhe são hostis, que se negam abertamente a respeitar os seus direitos e procuram separar duas coisas por natureza inseparáveis: a religião e o Estado. Pelo contrário favorece, como deve, os que, por terem ideias suas a respeito das relações entre a Igreja e o Estado, desejam que em mútuo acordo procurem ambos o bem geral.

46. E nesses preceitos contêm-se a regra que todos os católicos devem observar na sua vida pública. Certamente onde a Igreja não proibir que se tome parte nos negócios públicos, devem-se apoiar os homens de reconhecida probidade e que dão esperança de bem merecer da causa católica, e por nenhum caso será lícito preferir-lhes homens hostis à religião.

XVII. A dissensão entre católicos

47. Por aqui se vê ainda quão grande seja a obrigação de manter a concórdia entre os católicos, mormente agora que o cristianismo é combatido por seus inimigos com tão artificiosos planos. Todos os que têm a peito ficar estreitamente unidos à Igreja, “coluna e sustentáculo da verdade” (1Tm 3,10), facilmente evitarão esses “mestres da mentira que prometem liberdade, quando eles mesmo são escravos da corrupção” (2Pd 2,1.19), e até participando da divina eficácia que a Igreja lhes transfundiu, vencerão as ciladas com a sabedoria, e a violência com a fortaleza.

48. Não é ocasião de inquirir se a inércia e as dissensões intestinas dos católicos têm concorrido, e em que grau, para este novo estado de coisas; mas o que sim se pode asseverar é que os malvados teriam sido menos atrevidos, nem teriam acumulado tantas ruínas, se a fé, que “opera pela caridade” (Gl 5,6), houvesse sido geralmente mais vigorosa e viva nas almas, e se a moral cristão, que Deus nos ensinou, não estivesse em tantas almas relaxada. Praza a Deus que as tristes recordações do passado tenham ao menos a vantagem de nos tornarem mais cautos para o futuro.

XVIII. Participação política: falsa prudência e a temeridade

49. Aquele que tiverem de tomar parte na vida política, devem evitar dois escolhos com o maior cuidado: a falsa prudência e a temeridade.

50. Há efetivamente quem pense que não convém resistir abertamente à pressão poderosa da iniquidade, com medo, dizem, para evitar que a luta exaspere os ânimos inimigos. Os homens que assim falam, não se sabe se são a favor da Igreja ou contra ele. Por um lado afirmam que professam a doutrina católica; mas ao mesmo tempo quereriam que a Igreja deixasse livre cursos a certas teorias que dela discordam. Lamentam a diminuição da fé a corrupção dos costumes, mas não tratam de aplicar-lhe remédio, se é que com a sua excessiva indulgência, ou com perniciosa dissimulação, não agravam muitas vezes o mal. Não consentem que se ponha em dúvida a sua devoção à Santa Sé, mas acham sempre que censurar ao vigário de Cristo. A prudência desses homens é do mesmo gênero daquela que o apóstolo São Paulo chama “prudência da carne e morte da alma porque não é sujeita à lei de Deus, e tampouco o pode ser” (Rm 8,6-7). Nada é menos próprio para diminuir os males do que semelhante prudência, visto que os inimigos estão apostados no irrevogável propósito, que bem alto apregoam e muitos tomam em caso de honra, e é de exterminar, se tanto pudessem, a religião católica, que é a única verdadeira. Com semelhante desígnio a tudo se atrevem, pois sabem muito bem que, quanto mais amedrontarem os católicos, menos dificuldades terão na sua perversa empresa. Por consequência os que seguem a prudência da carne e fingem ignorar que todo o cristão deve ser um bom soldado de Cristo, os que pretendem prêmios de vencedores com uma vida mole e sem combate, esses não só não atalham o passo aos meus, mas antes vão-lhes aplanando o caminho.

51. Pelo contrário há muitos, que levados por falso zelo, ou o que seria pior, de alguma simulação, arrogam-se um papel que não lhes pertence. Presumem esses subordinar o procedimento da Igreja às suas ideia e caprichos, chegando a levar a mal que outra coisa se faça, e a não aceita-la senão com repugnância. O esforço desses homens torna-se inútil. Não são menos repreensíveis do que os precedente. Proceder assim não é seguir a autoridade legítima, é tomar-lhe a dianteira e transferir a particulares os poderes dos pastores com grande perturbação da ordem, que o próprio Deus estabeleceu para sempre na sua Igreja e que a ninguém permite violar impunemente.

XIX. Verdadeira prudência política

52. Procedem, pelo contrário, acertadamente os cristãos que não fogem ao combate, quando necessário, convencidos de que a tirania da injustiça há de ter fim, vencida mais cedo ou mais tarde pela santidade do direito e da religião. Esses sim que tomam por empresa uma obra digna dos brios de melhores tempos, lutando em defender a religião principalmente contra a facção audaciosíssima, nascida para guerrear o cristianismo, a qual, desde que apanhou o sumo pontífice em suas mãos, não tem dado tréguas a seus vexames. Mas nessa mesma generosa luta não se esquecem os bons católicos da devida obediência, e nada empreendem senão debaixo da direção de seus superiores. Ora, como essa vontade de obedecer, unida com o valor e constância, é necessária a todos os católicos para que em quaisquer transes por vir “em nada desfaleçam” (Tg 1,4); por isso muito desejávamos se arraigasse profundamente nas almas de todos aquela prudência que São Paulo chama: “prudência do espírito” (Rm 8,6). Essa virtude mensura as ações humanas, pondo-as no seu meio e equilibrando o homem para que nem por medo desespere, nem presuma por temeridade.

53. E note-se que há sua diferença entre a prudência política relativa ao bem geral, e a prudência individual que diz respeito ao bem de cada particular. Essa é própria dos particulares, os quais no governo de suas pessoas obedecem aos ditames da reta razão; aquela é própria dos superiores e designadamente dos príncipes que governam com autoridade soberana, donde se vê que a prudência política dos particulares consiste em executar fielmente os preceitos da legítima autoridade.[6] Essa mesma disposição e ordem é de tanto maior importância na sociedade cristã quanto maior é a esfera de competência a que se estende a prudência política do sumo pontífice, não só para governar a Igreja, mas também para dirigir as ações dos cristãos como cidadãos, de modo que correspondam às esperanças da salvação eterna. Por aqui se vê que, além da perfeita concórdia que deve reinar nos seus pensamentos e fatos, é mister que os fiéis tomem como regra do seu proceder a sabedoria política da autoridade eclesiástica. Ora, o governo da sociedade cristã pertence, logo depois do pontífice romano, aos bispos. Se eles não estão postos na eminência do poder pontifício nem por isso deixam de ser verdadeiros príncipes na hierarquia eclesiástica, e administrando cada um a sua Igreja, são como os principais operários na construção do edifício espiritual [7], e têm por coadjutores no ofício e ministério de suas deliberações aos seus clérigos. Essa é a organização da Igreja, que ninguém pode alterar e todos devem regular por ela o seu procedimento. Por isso, assim como no exercício do seu poder episcopal os bispos devem estar unidos à Sé Apostólica, assim também os membros do clero e os leigos devem viver e agir em estreitíssima união com os bispos.

54. Poderia suceder que algum prelado se preste a críticas, quer por uma conduta menos louvável que por sua maneira de pensar pouco plausível. Mas nenhum particular pode usurpar o ofício de juiz, que Nosso Senhor Jesus Cristo só concedeu ao pastor que propôs aos cordeiros e às ovelhas. Grave pois cada um em sua memória o sapientíssimo preceito de São Gregório Magno, que assim se exprime: “advirta-se aos súditos que não julguem temerariamente a vida de seus superiores, ainda quando sucedesse verem neles alguma ação repreensível, para que, enquanto justamente censurem ações más, não cobrem audácia contra eles, mas ainda mesmo em casos graves assim os julguem no secreto de sua consciência, que nunca se neguem a levar, por temor de Deus, o jugo de sua autoridade… porque as ações dos superiores não devem ser feridas com a espada da língua nem ainda quando parecem merecedoras de censura”.[8]

XX. Condições morais da ação

55. Todavia pouco aproveitarão esses esforços, se não se tomar um teor de vida conforme com a moral e virtudes cristãs. Da nação dos judeus disse a Sagrada Escritura: “Enquanto não pecaram contra o seu Deus, eram felizes; porque o seu Deus aborrece a iniquidade…; mas quando se desviaram do caminho que Deus lhes tinha mostrado… foram dispersos em batalhas por diversas nações” (Jt 5,21-22). Ora, a nação judaica era como um esboço do povo cristão e as suas vicissitudes passadas prefiguravam muitas vezes a verdade futura, como essa diferença que a bondade divina nos avantajou e enriqueceu de muito maiores benefícios, e que por isso mesmo os pecados dos cristãos são agravados com o crime de ingratidão.

56. A Igreja por si nunca e de nenhum modo é desamparada de Deus, e portanto nada tem que temer da iniquidade dos homens; mas as nações, que vão degenerando da virtude cristão, não podem contar com a mesma segurança. “O pecado faz miseráveis os povos” (Pr 14,34).

57. E se todas as épocas passadas têm experimentado em si a força e verdade dessa sentença, por que não havia de experimentá-la a nossa? Antes muitos indícios nos advertem que o merecido castigo está sobre nossas cabeças, e a mesma condição dos Estados modernos o confirma, pois consumidos de males intestinos vemos nós a maior parte deles, mas em segurança perfeita não vemos nenhum. Se as facções dos maus continuarem com audácia no encetado caminho, se, como com suas más artes e piores tenções vão grassando, assim chegarem a crescer em poder e influência, muito é de recear que venham a demolir, pelos fundamentos que a natureza assentou, todo o edifício social.

XXI. Insuficiência dos meios humanos

58. Para evitar perigo tão formidável não bastam os recursos humanos por si sós, mormente porque um grande número de homens, por terem repudiado a fé, sofrem em justo castigo de seu orgulho andarem cegos das paixões a procurar em vão a verdade; abraçarem por verdade o erro; terem-se em conta de sábios, quando “ao mau chamam bom, e ao bom mau, quando põem trevas por luz e luz por trevas” (Is 5,20). É preciso, pois, que Deus intervenha e, lembrado da sua bondade, lance olhos de misericórdia para a sociedade humana. Para esse fim, conforme já outras vezes recomendamos, é preciso empregar todo o zelo e perseverança, para que a divina clemência se deixe vencer de humildes súplicas, e renovar as virtudes próprias da vida cristã.

59. Em primeiro lugar, convém fomentar e manter a caridade para com Deus, a qual é o fundamento principal da vida cristã, e sem ela as outras virtudes ou não existem, ou não dão fruto. É por isso que o apóstolo São Paulo, depois de exortar os colossenses a fugirem de todos os vícios e a alcançarem o realce de todas as virtudes, acrescenta: “Mas sobre tudo isso revesti-vos de caridade, que é o vínculo da perfeição” (Cl 3,14). Sim, a caridade é realmente o vínculo da perfeição, pois quantos abraça, tantos une intimamente com o mesmo Deus, e faz que de Deus recebam a vida da alma para viverem com Deus e para Deus. Em segundo lugar, deve esse amor de Deus andar irmanado com o amor do próximo, porque os homens são como uma participação da infinita bondade de Deus, e trazem estampada em si a divina imagem. “Nós recebemos de Deus este mandamento: Que aquele que ama a Deus, deve também amar a seu irmão” (1Jo 4,21). “Se alguém disser: eu amo a Deus, e não deixar de ter ódio a seu irmão, é um mentiroso” (1Jo 4,20). A esse preceito da caridade chamou-o “novo” o divino legislador, não porque não houvesse lei anterior e a mesma natureza que obrigasse os homens a amarem-se uns aos outros, mas porque esse modo cristão de se amarem era verdadeiramente novo e inaudito no mundo. Realmente o amor com que Jesus Cristo é amado por seu Pai e com que ele ama os homens, esse mesmo é o que impetrou para seus discípulos e seguidores, a fim de poderem ser nele um só coração e uma só alma, assim como por natureza ele e o Pai são um. Ninguém ignora com que profundeza penetrou nos corações dos cristãos a força desse preceito logo desde o princípio, nem quais e quantos frutos produziu de concórdia, mútua benevolência, piedade, paciência e fortaleza. Por que os fiéis não hão de se aplicar a imitar os exemplos de nosso país? A mesma condição dos tempos em que vivemos não é pequeno estímulo à caridade. Visto que os ímpios renovam continuamente o ódio contra Jesus Cristo, fomentem os cristãos a piedade e renovem a caridade que é a mãe das ações generosas. Aquietem-se as discórdias, se as houver; emudeçam as contendas que dividem as forças dos combatentes sem proveito algum para a religião, e então, unidas as inteligências pela fé e os corações pela caridade, passe-se a vida cristã, como é justo, no amor de Deus e dos homens.

XXII. A educação no seio das famílias

60. Não queremos deixar de exortar especialmente os pais de família para que regulem, segundo esses preceitos, o governo de suas casas e a educação de seus filhos desde a mais tenra idade. A família contém em si os germes da sociedade civil, e é em grande parte no lar doméstico que se vai criando a sorte dos Estados. Tão verdade é isso que os que se propõem arrancá-los ao cristianismo, começam pela raiz, dando-se pressa a corromper a família. E não os demove de tão horrendo atentado a ideia da enorme injustiça que com isso fazem aos pais a quem pertence por direito natural dar a educação a quem deram a vida, direito que traz consigo o dever de ordenarem a educação e formação dos filhos ao fim para que Deus lhos concedeu. É, portanto, rigorosa obrigação dos pais trabalhar e lutar para repelir toda a usurpação nesta matéria e reivindicar para si exclusivamente o direito de educarem seus filhos com espírito cristão, como deve ser, e desviá-los, custe o que custar, daquelas escolas, onde estejam expostos a beber o mortal veneno da impiedade. Quando se trata da boa educação da juventude, nunca o trabalho é demais, por muito que ele seja. Nesse ponto são dignos de admiração universal muitos católicos de várias nações que, com grande despesa e maior constância, criaram escolas para a educação de seus filhos. Convém que tão belo exemplo seja imitado em toda a parte onde as circunstâncias o exigirem. Entretanto persuadam-se todos que, para a boa educação das crianças, tem a máxima importância a educação doméstica. Se a juventude encontra no lar doméstico as regras da vida virtuosa e uma como escola prática das virtudes cristãs segura está em grande parte a salvação da sociedade.

XXIII. Gravidade do dever de todo cristão

61. Cremos ter tocado as coisas principais, que nestes os católicos devem fazer ou evitar. – Resta agora, e a vós pertence, veneráveis irmãos, procurar que a nossa palavra se espalhe por toda a parte, e que todos compreendam quanto importa pôr em prática as doutrinas contidas nesta carta. O cumprimento desses deveres não pode ser coisa molesta e incômoda, porque o jugo de Jesus Cristo é suave e seu peso leve. Se, porém, algum ponto parecer mais duro de observar, procurareis com vossa autoridade e exemplo excitar em cada fiel brios maiores até sair vitorioso das dificuldades. Mostrai-lhes, como outras vezes fizemos, que estão em perigo os bens mais preciosos e mais dignos de estima; que para os conservar, todos os trabalhos são poucos, e que esses trabalhos terão tão grande recompensa, como é a que será fruto de uma vida passada cristãmente. Por outra parte negar-se a combater por Jesus Cristo, é combater contra ele, e o mesmo Senhor protesta que renegará nos céus perante seu Pai os que não o tiverem confessado perante os homens na terra (cf. Lc 9,26).

62. Quanto a nós, e por vós todos o dizemos também, faremos, enquanto nos durar a vida, que nunca e por nenhum modo venha a faltar neste combate nossa autoridade, nossos conselhos e auxílios. Do auxílio do céu, e auxílio muito especial, certo estamos que não faltará Deus com ele ao seu rebanho e aos pastores até serem debelados seus inimigos.

Animado desta confiança, em penhor dos dons celestes e de nossa benevolência, de todo o coração vos concedemos em Nosso Senhor a vós, veneráveis irmãos, ao vosso clero e a todo o vosso povo, a benção apostólica.

Roma, junto a São Pedro, aos 10 de janeiro de 1890, XII ano do nosso pontificado.

LEÃO PP. XIII

Transcrito do livro “Documentos de Leão XIII”, Coleção Documentos da Igreja, da Editora Paulus.


Notas

[1] Sto. Tomás, Summa theol. II-II, q.3, a.2, ad 2.

[2] Const. Dei Filius ad fin.

[3] Conc. Vatic. I, Const. Dei Filiusc. 3.

[4] Summa Theol., II-II, q. 5, a. 3.

[5] Summa Theol., II-II, q. 1, a. 10.

[6] Santo Tomás, Summa Theol., II-II, q. 47, a. 12.

[7] Santo Tomás, Quodlib.,I, a. 14.

[8] Regula Pastoralis, pars. III, c. 4.