Santo Agostinho
1. Há poucos dias celebramos o dia em que o Senhor nasceu dos judeus; hoje celebramos aquele em que foi adorado pelos gentios: A salvação, com efeito, vem dos judeus [1]; mas esta salvação chega até os confins da terra [2]. Naquele dia, adoraram-no os pastores, hoje os magos. A aqueles anunciaram-no os anjos, a estes, uma estrela. Uns e outros o aprenderam do céu quando viram na terra ao rei do céu para que fosse realidade a glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens de boa vontade [3]. Ele é, com efeito, nossa paz, quem fez dos dois um [4]. Assim que nasceu e foi anunciado se manifestou como a pedra angular; pouco tempo depois de nascer se revelou como tal. Já então começou a unir em sua pessoa a duas paredes de distinta proveniência, guiando aos pastores da Judeia e aos magos do Oriente, para fazer em si mesmo, dos dois, um só homem novo, estabelecendo a paz; paz aos de longe e paz a os de perto [5]. Donde aqueles, aproximando-se desde a vizinhança naquele mesmo dia, e estes, chegando desde bem distante no dia de hoje, assinalaram para a posteridade estes dois dias festivos; mas uns e outros viram a única luz do mundo.
2. Entretanto, hoje tenho que falar daqueles aos quais a fé conduziu a Cristo desde um país longínquo. Chegaram e preguntaram por Ele, dizendo: Onde está o rei dos judeus que nasceu? Vimos sua estrela no oriente e viemos adorá-lo [6]. Anunciam e preguntam, creem e buscam, como simbolizando os que caminham na fé e desejam a realidade. Não haviam nascido já anteriormente na Judeia outros reis dos judeus? Que significa que este seja reconhecido por alguns estrangeiros no céu e seja buscado na terra, que brilhe nas alturas e esteja oculto na humildade? Os magos veem a estrela no oriente e compreendem que nasceu um rei na Judeia. Quem é este rei tão pequeno e tão grande, que ainda não fala na terra e já publica sus decretos no céu? Contudo, em atenção a nós, que desejava que o conhecêssemos por suas Escrituras santas, quis que também os magos, aos quais havia dado tão inequívoco sinal no céu e a cujos corações havia revelado seu nascimento na Judeia, cressem o que seus profetas haviam falado dele. Buscando a cidade em que havia nascido o que desejavam ver e adorar, tiveram que preguntar aos príncipes dos sacerdotes; desta maneira, com o testemunho da Escritura, que levavam na boca, mas não no coração, os judeus, ainda que incrédulos, deram resposta aos crentes a propósito da graça da fé. Ainda que mentirosos por si mesmos, disseram a verdade em contrário. É muito pedir que acompanhassem aqueles que buscavam a Cristo quando lhes ouviram dizer que, por haver visto a estrela, vinham ansiosos adorá-lo? É muito pedir que eles, que lhes haviam dado as indicações de acordo com os livros sagrados, conduzissem-nos a Belém de Judá, e juntos viessem, compreendessem e adorassem? A verdade é que, havendo mostrado a outros a fonte da vida, morreram eles ressequidos. Assemelharam-se às pedras miliárias: indicaram a rota aos viajantes, mas eles permaneceram imóveis e inertes. Os magos buscavam para encontrar, Herodes para matar; os judeus liam em que cidade havia de nascer, mas não se atentaram para o tempo de sua chegada. Entre o piedoso amor dos magos e o cruel temor de Herodes, elos se fizeram vãos, depois de haver mostrado a cidade de Belém. Em troca, negariam a Cristo, que nela havia nascido, o que não buscaram então, mas viram depois, e lhe dariam morte, não quando ainda não falava, senão depois, já no uso da palavra. Mais ditosa foi, pois, a ignorância daqueles meninos aos quais Herodes, aterrado, perseguiu, que a ciência daqueles que ele mesmo, assustado, consultou. Os meninos puderam sofrer por Cristo a quem ainda não podiam confessar; os judeus puderam conhecer a cidade em que nascia, mas não seguiram a verdade do que ensinava.
3. A mesma estrela levou a os magos ao lugar preciso em que se encontrava, o menino sem fala, o Deus Palavra. Envergonhe-se já a necedade sacrílega e — por assim dizer — certa indouta doutrina que julga que Cristo nasceu sob o influxo dos astros, porque está escrito no Evangelho que, quando Ele nasceu, os magos viram no oriente sua estrela [7]. Coisa que não seria certa nem sequer no caso de que os homens nascessem sob tal influxo, posto que eles não nascem, como o Filho de Deus, por própria vontade, mas segundo a condição própria da natureza mortal. Agora, não obstante, dista tanto da verdade o dizer que Cristo nasceu sob o destino dos astros, que quem possui a reta fé em Cristo nem sequer crê que homem algum nasce dessa maneira. Expressem os homens vãos suas insensatas opiniões acerca do nascimento dos homens, neguem a vontade para pecar livremente, inventem a fatalidade para escusar seus pecados; intentem fiar também no céu os perversos costumes que os fazem detestáveis a todos os homens da terra e mintam fazendo-as derivar dos astros; mas veja cada um deles como pensa que há de governar não apenas sua vida, senão a sua família com alguma autoridade, seja qual for. Pois, se assim pensam, não lhes está permitido açoitar seus servos quando faltam ao próprio dever em sua casa sem antes se obrigarem a blasfemar contra seus deuses radiantes de luz no céu. Mas no que diz respeito a Cristo, nem sequer ajustando-se a suas conjeturas, vãs em extremo, e a seus livros, aos quais chamarei não fatídicos, mas falsos, podem pensar que nasceu sob a lei dos astros pelo fato de que, depois de nascer, os magos viram uma estrela em oriente. Neste fato Cristo se manifesta melhor como Senhor que como submetido a dita lei, pois a estrela não manteve no céu sua rota sideral, mas mostrou o caminho até o lugar em que havia nascido Cristo aos homens que o buscavam. Portanto, não foi ela que de forma maravilhosa fez que Cristo vivesse, senão que foi Cristo quem a faz aparecer de forma extraordinária. Tampouco foi ela que decretou as ações maravilhosas de Cristo, senão que Cristo a mostrou como outra entre suas obras maravilhosas. Ao nascer de uma mãe, mostrou à terra um novo astro do céu, Ele que, nascido do Pai, fez o céu e a terra. Quando Ele nasceu, apareceu com a estrela uma luz nova; quando Ele morreu, ocultou-se com o sol a luz antiga. Quando Ele nasceu os moradores do céu brilharam com nova dignidade; quando Ele morreu, os habitantes do inferno se estremeceram com novo temor. Quando Ele ressuscitou, os discípulos arderam com novo amor, quando Ele ascendeu, os céus se abriram com nova submissão. Celebremos, pois, com devota solenidade também este dia, no qual os magos, procedentes da gentilidade, adoraram a Cristo uma vez conhecido [8], como já celebramos aquele dia em que os pastores de Judeia viram a Cristo uma vez nascido [9]. Pois nosso mesmo Senhor e Deus escolheu os apóstolos dentre os judeus como pastores para congregar, por meio deles, os pecadores dentre os gentios que viriam a ser salvados.
[1] São João IV, 22
[2] Isaías XLIX,6
[3] São Lucas II, 14
[4] Efésios II, 14
[5] Efésios II, 14-17
[6] São Mateus II, 2
[7] Cf. São Mateus II, 2
[8] Cf. São Matues II, 1-11
[9] Cf. São Lucas II, 8-20
Traduzido por Leonardo Brum a partir da versão espanhola de Pío de Luis, OSA, disponível em: [http://www.augustinus.it/spagnolo/discorsi/index2.htm].
Abaixo, tem-se o texto da Missa da Festa da Solenidade da Epifania.