Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Voluntarismo semipelagiano (IV) – Mais sintomas

Padre José María Iraburu.
Blog Reforma o apostasía, 16.02.2010.


Artigos anteriores desta série:

I. Semipelagianos antigos
II. Versões atuais
III. Sintomas

Tópicos deste artigo:

  • A vocação
  • É questão de generosidade
  • Deus te pede
  • Pode haver uma ortodoxia perfeita na vida da graça, a qual, em algumas questões, é expressada verbalmente de maneira imperfeita
  • Falem em católico da graça divina

– Mais sintomas por vir. Eu tenho todos eles!
– E Cristo o curará de todos com a graça de sua verdade. Você será novo.

O voluntarismo semipelagiano, como todas as doenças, tem muitos sintomas. E é conveniente que aqueles que sofrem sejam curados por Cristo, que lhes dá a graça de conhecê-los e vencê-los.

A vocação. Começo por aqui, porque na vocação está o começo de tudo. Deus, na ordem natural, chama ao ser cada criatura, e a mantém na existência. Deus, na ordem sobrenatural, chama à graça o homem caído: “das trevas vos chamou à sua luz admirável” (1Pe 2,9). Deus é “aquele que vos chama” (Gl 5,8: kalon) e nós cristãos somos “os chamados” (Rm 8,30: keklemenoi).

O chamado de Deus é absolutamente gratuito. E de Sua parte, “os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis” (Rm 11,29: karismata kai e klesis). Tudo na vocação é amor gratuito de Deus, que somente n’Ele tem sua causa. Ele elege desde a eternidade, chama com uma vocação dada no tempo – o chamado ao povo de Israel, a ser cristão, ao apostolado, ao casamento, ao caminho pessoal concreto –, consagra os chamados – batismo, ordem, casamento, profissão religiosa –, e envia à missão própria de cada vocação. Deus elege-chama-consagra-envia.

Tudo na vocação é dom gratuito do amor de Cristo: “é a voz do Amado que me chama” (Ct 5,2). Grande verdade absolutamente certa é que “todos os homens são chamados à união com Cristo” (Vat. II, LG 3). Mas é igualmente certo que os cristãos, os apóstolos, somos objeto de um chamado especial do amor de Deus para formar a Igreja, “sacramento universal da salvação” (LG 48; AG 1). As Escrituras afirmam isso muitas vezes: somos “escolhidos de Deus, santos e amados” (Cl 3,12). E essa eleição-chamada parte exclusivamente da eleição eterna de Deus. Nunca é determinada pelos bens que Ele mesmo colocou em homens ou povos. Quantas vezes o Senhor elege–chama ao menor, Israel, “o menor de todos os povos” (Dt 7,6-7); a mulheres estéreis; a pessoas que dificilmente contam para o mundo: “Considerai, irmãos, a vossa vocação, pois não há entre vocês” muitos nobres, poderosos, sábios, mas gente bem mais humilde, “para que ninguém possa se gloriar diante de Deus” (1Cor 1,26-29). Pois bem,

O voluntarismo semipelagiano, de acordo com sua teologia da graça, propõe a eleição vocacional como se Deus oferecesse aos cristãos igualitariamente os vários modos de vida, alguns mais adequados à santificação pessoal e outros nem tanto – embora todos sejam santos e santificantes – e como se depois seja já o cristão, segundo o grau de sua generosidade, quem decidirá seguir o mais perfeito ou o menos perfeito, embora também bom. Essa visão é uma terrível distorção da verdade das vocações, é a causa de erros vocacionais, de escrúpulos e de grandes sofrimentos. E deve-se reconhecer aí que é um erro tipicamente semipelagiano: Deus oferece a mesma graça a todos, e é a parte humana a que, tornando eficaz a graça, a parte divina, decide o que é mais ou menos perfeito. Em suma, não é Deus quem escolhe e chama gratuitamente, mas é o cristão que, aparentemente, “chama” a si mesmo segundo o grau de sua maior ou menor generosidade. Com uma preocupação inevitável se pergunta: “Que escolho?”

Quando terminei o ensino médio, minha mãe, com essa desculpa, me enviou para fazer Exercícios espirituais. E ainda me lembro como no final deles o padre pregador nos convidou a escolher a vocação. Em uma folha, traçando uma linha vertical no meio, colocaríamos de um lado e de outro os prós e contras que pudemos ver para a nossa santificação. A soma se fazia finalmente e o total resultante, paf, determinava nossa vocação concreta dentro da Igreja. Já então a mim aquilo me pareceu um espanto. E agora isso me horroriza ainda mais.

Outro caso ilustrativo. Quando jovem, assisti à profissão religiosa de uma amiga minha. E também me lembro da pregação do padre que presidiu a missa. Que louvor à generosidade dessa garota, para quem o mundo e a vida sorriem (aqui uma lista abrangente de suas qualidades) e que, no entanto, deixando tudo, seguirá a Cristo por um caminho austero e penitente!… etc. etc. etc. Já então a mim tudo aquilo me soava muito mal. Eu não sabia então que, simplesmente, ele era semipelagiano. Imagine você um padre que, em um casamento, louva a generosidade dessa jovem que, tendo tantos pretendentes excelentes, etc., veio a se casar com este (com este pobre diabo). É de supor que, ao final da cerimônia, os parentes do noivo entrariam na sacristia para repreender ao ministro do Senhor. 

– A fé católica nos ensina, pelo contrário, que Deus chama quem ele quer, quando quer e como quer. E que a vocação, qualquer que seja, é um dom precioso que o homem, com imensa gratidão, deve receber livre e meritoriamente, com a ajuda da graça divina, é claro. “Quem é que te faz preferível? O que tens tu que não recebestes?… Graças a Deus sou o que sou, e a sua graça, que está em mim, não foi vã, antes tenho trabalhado mais que todos eles; não eu, porém, mas a graça de Deus, que está comigo” (1Cor 4,7; 15,10). São Paulo, recém convertido, considera sua vocação como se deve: “Senhor, que devo eu fazer?” (At 22,10).

É questão de generosidade. A vocação – e toda obra cristã – é um dom de Deus, que o homem recebe. Se falamos o espanhol habitual, o generoso é o doador, não o que recebe. Se um homem doa uma grande herança a uma família numerosa que está falida, o generoso é o doador, não a família que recebe uma doação tão preciosa. E é isso que acontece em toda vocação e ação cristã. O generoso é Deus, que estando nós mortos pelos nossos crimes e pecados, escravizados pelo mundo e pela carne, cativos do diabo, “convivificou-nos em Cristo, por cuja graça fostes salvos” (Ef 2,1-10: leia-o inteiro). O generoso é Deus. Se, por exemplo, a um falta sabedoria, “peça-a a Deus e ser-lhe-á dada, porque Ele a todos dá liberalmente e sem censura” (Tg 1,5).

Vejamos o caso da vocação de um apóstolo. Cristo escolhe por pura graça a Mateus. Ele não o despreza, em sua condição miserável de publicano, idólatra da riqueza, excomungado de seu povo, mas o chama para deixar seu escritório de impostos e o consagra como seu Apóstolo, para enviá-lo a pregar e escrever o Evangelho. Graça, pura graça gratuita tem sido a eleição, a vocação, a consagração e a missão. E a graça de Cristo também foi o que moveu o coração de Mateus para poder segui-lo, aceitando sua ligação e deixando tudo. Onde está a generosidade de Mateus aqui? Louvemos a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo, que por pura graça fez deste pobre diabo um santo Apóstolo! “Segue-me. E ele, levantando-se, o seguiu” (Mt 9,9-13). Tudo foi graça. E por isso a primeira coisa que ocorre a Mateus – que era católico e não semipelagiano – é celebrá-lo em um grande banquete, no qual não seria nenhuma estranheza que tenha passado um pouco na bebida. Está feliz, louco de gratidão e alegria. E pensa que se alguém elogia sua generosidade pessoal, é esse que não está em sua sã consciência.

Há excelentes católicos que costumam usar a palavra generosidade ao falar da vocação e, logicamente, de qualquer outro assunto da vida espiritual. Muitos deles compreendem o mistério da graça perfeitamente católica, mas não escapam a uma contaminação da linguagem de origem voluntarista.

“É uma questão de generosidade”. “Você compromete sua própria salvação por falta de perseverança”. “Ele entrou no noviciado, mas não perseverou: faltou generosidade”. “Deus não se deixa vencer em generosidade pelo homem.” Ou seja: você propõe o bem, quanto maior melhor, e tem a certeza de que a graça de Deus, sendo uma obra tão boa, certamente virá em seu auxílio para que você possa vivê-la. Etc. Mas o que estão dizendo?… Tudo isso é semipelagianismo puro e simples. Quando esses católicos descobrirão que, mesmo que apenas na linguagem, são semipelagianos?

Deus te pede. Toda a vida cristã, toda, é movida pela graça de Deus, toda é graça, toda é um dom de Deus. É Ele quem “opera em nós o querer e o agir de acordo com o seu beneplácito” (Fp 2,13); de tal maneira que “quantas vezes obramos bem, Deus, para que obremosopera em nós e conosco” (Orange II, c.9). Agora, quando alguém  algo a outro, chamamos essa ação de doação, e não de petição. E quando alguém pede algo a alguém, sua ação é um pedido. É assim ou não é assim?… Pois bem, se Deus dá aos homens sua graça, sempre gratuita, movendo-os a querer e a fazer o bem, por que essa ação não é chamada de doação, como corresponde, mas em vez disso se diz que Deus pede ao cristão isso e aquilo? Qual é o sentido de falar que Deus pede a este que dê mais esmolas, a outro que se case, a outro mais que ingresse num mosteiro, etc.? “Sempre Deus pedindo”, em vez de “sempre Deus dando”, como é a verdade. Qual o sentido dessa maneira de expressar a vida espiritual na fé católica? “Receber, mais me parece isso, que darmos nós alguma coisa” (Santa Teresa, Livro da Vida 11,13). É tão difícil entender isso, ou melhor, crer?

Suponhamos que um diretor espiritual diga ao cristão que se lhe confia, atendendo às moções de graça que parece receber: “segundo o que você me diz, eu creio que Deus te pede que dupliques o tempo de oração”. O conselho poderá ser prudente e benéfico. Mas por que expressar sob a forma de petição? Não está mais de acordo com a verdade dizer: “parece que Deus quer dar a você a graça de dobrar sua oração”? No fundo, de uma maneira ou de outra, está dando o mesmo conselho, é verdade. Mas a primeira formulação se encaixa perfeitamente com o semipelagianismo, pode dar origem à soberba (“cumpri: dei a Deus o que me pedia”), ao escrúpulo também, e a outros efeitos negativos. Em vez disso, a segunda formulação fala como a Sagrada Escritura e a melhor Tradição católica sempre o fazem, e só pode produzir bons efeitos.

Esse “Deus te pede” isso e aquilo expressa mal a doutrina católica sobre a ação da graça. Mas faz todo sentido se se parte de uma teologia semipelagiana da graça. Segundo ela, Deus oferece sua parte (a graça) e “pede” ao homem que faça sua parte (a vontade livre), de tal maneira que, com a generosa colaboração da pessoa, a graça venha a ser eficaz na boa obra pretendida (noviciado, matrimônio, mais oração, etc.). Esta é a verdade. E não se ofendam se eu a digo, pois apenas pretendo que sejam “santificados na verdade” (Jo 17,17). Mas, por outro lado também, não se assustem

Pode haver uma ortodoxia perfeita na vida da graça, a qual, em algumas questões, é expressada verbalmente de maneira imperfeita. Trento disse que a concupiscência não é pecado, mas que “procede do pecado e ao pecado inclina” (Denz 1515). Pois bem, deve-se dizer aqui que o modo voluntarista de falar pode ocorrer, e ocorre com relativa frequência, em um marco doutrinal católico e santo. Mas convém reconhecer honradamente que é um modo verbal que procede do erro voluntarista e que a ele inclina. Reconheçamos com humildade que sempre trará em si ao menos o perigo de causar nas pessoas impressões voluntaristas negativas, mal entendimentos da ação de Deus no homem. Insisto: muitas vezes o marco doutrinal é na pessoa ou na comunidade tão claramente católico, que neutraliza em boa medida os efeitos negativos de uma maneira de falar certamente deficiente. Em boa medida… Nem sempre inteiramente.

Falem em católico da graça divina. Falem como falam as Escrituras e a Liturgia, os Concílios e os grandes Doutores da Igreja. Falem como tem feito todos os santos.

Bem, a verdade é que nem todos os santos usavam sempre e em tudo uma linguagem claramente católica da graça. Antes da doutrina da graça ser formulada dogmaticamente na Igreja, houve santos, como Fausto de Riez ou Vicente de Lérins, já o vimos, que falaram assim. Mais angustiante é que, após o erro semipelagiano ter sido reprovado pela Igreja, ainda existem alguns santos, sobretudo a partir do século XVII, que às vezes usam uma linguagem mais ou menos marcada pela noção voluntarista semipelagiana. Certamente, aqueles e esses santos, compreendem perfeitamente em suas mentes e corações a verdade da graça; caso contrário, não seriam santos. E ademais a linguagem espiritual que usam, como um todo, é claramente católica. Mas… mas algumas vezes essa linguagem espiritual é marcada por essas deficiências voluntaristas de seu tempo. Comprovaremos em alguns santos, com o favor de Deus.

José María Iraburu, sacerdote.


Traduzido por José Almeida Jr. a partir da publicação original em castelhano, disponível em https://www.infocatolica.com/blog/reforma.php/1002160441-64-voluntarismo-semipelagiano-3

Nota: esse artigo compõe uma série de cinco artigos sobre o voluntarismo semipelagiano – erro muito bem apontado pelo Padre José Maria Iraburu em seu blog – a qual publicamos aqui com o intuito de expor e afastá-lo dos católicos e apostolados hodiernos, conquanto divirjamos do pe. Iraburu ao tratar os lefebvrianos como cismáticos, como se vê em outros artigos do mesmo blog.